terça-feira, 3 de julho de 2018

O Estado decide quem pode viver e quem pode morrer

A população negra e pobre, além de ter seus direitos retirados em grande escala, são os que mais morrem no Brasil

Brasil de Fato | São Paulo (SP)
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Há pouco tempo foram publicadas duas importantes fontes de dados sobre a violência na cidade e no campo brasileiro: o Atlas da Violência, publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP); e o Caderno de Conflitos no Campo 2017, publicação da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Ambas publicações revelam aumentos e recordes de violências e mortes, que nos permitem fazer uma articulação entre Capitalismo, Patriarcado e Racismo, quando além de indicar as regiões, estados, faixa etária, circunstâncias ou fatores, apontam também quem são os homens e as mulheres mais atingidas: moradores de periferias, jovens negros e mulheres, camponeses, indígenas, quilombolas e ribeirinhos em regiões de conflito com o agro-hidronegócio.
Os números nos revelam como se articula o Racismo Institucional no Brasil tendo na clivagem entre negros/as e brancos/as, a evidenciação de como os primeiros ainda estão distantes de experimentar uma democracia de fato.
É importante observar os dados institucionais, como os trazidos pelo Atlas da Violência, apesar de ter números alarmantes, ainda não conseguem dar conta de uma realidade onde são comuns as violências cometidas pelo Estado, por exemplo, por meio da violência policial, quando se utiliza dos autos de resistência.
O Estado não mata só quando atira na vereadora Marielle Franco, mulher negra, lésbica, periférica e socialista, ele mata sobretudo, porque cotidianamente deixa morrer, seja nas filas dos hospitais públicos, seja encarcerando nas prisões ou não efetivando a Reforma Agrária no país. Mata porque se ausenta em solucionar conflitos que assassinam quem luta pela regularização dos territórios indígenas e quilombolas.
É nesse cenário, que os dados da CPT colocam 2017 com o registro de maior número de assassinatos no campo dos últimos 14 anos. Cerca de 71 pessoas foram assassinadas em conflitos no campo. Dez a mais do que em 2016 e o maior registrado desde 2003, quando se computaram 73 vítimas. Números assustadores e crescentes do cenário de violência vivido por povos do campo em luta por direito a terra no país.
“A carne mais barata do mercado é a carne negra”
A população negra e pobre, além de ter seus direitos retirados em grande escala, especialmente com as crises e as reformas, são os que mais morrem nas cidades brasileiras. Homens e mulheres negras estão no centro do projeto de extermínio entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios de negros cresceu 23,1%. No mesmo período, a taxa entre os não negros teve uma redução de 6,8%. Cabe também comentar que a taxa de homicídios de mulheres negras foi 71% superior à de mulheres não negras. Em relação aos dez anos da série, a taxa de homicídios para cada 100 mil mulheres negras aumentou 15,4%, enquanto que entre as não negras houve queda de 8%.
O Atlas da Violência chama de juventude perdida o conjunto de dados e violências que revelam uma escala em aumento sobre a população com a faixa etária entre 15 a 29 anos, nas regiões nordeste e norte, destacando que, entre homens de 15 a 19 anos, os homicídios são a causa da morte de 56,5% destes. Sergipe é o estado que tem o maior número de mortes de jovens no país, onde, a cada 100 mil homicídios, 64,7% são jovens. De modo geral, as violências contra a população negra (pretos e partos) aumentou em 23,1% nos últimos 10 anos.
Sobre a violência contra as mulheres, os dados demonstram que os homicídios, feminicídios (reprodutivo – mortes decorrentes de aborto voluntário; doméstico - ocorrido no domicílio; e sexual - Agressão sexual por meio de força física.) e estupros, podem ser fruto de processos anteriores de violências visíveis e não visíveis, como violência psicológica, patrimonial, física ou sexual. Esse último, 68% dos registros são estupros de menores de idade (faixa etária de até 13 anos), o que revela como a violência doméstica e familiar também tem crescido, pois os agressores são, em maioria, pessoas do convívio próximo, pais, padrastos, etc. Além das violências serem recorrentes e comumente acontecerem nas casas e lares das menores.
É importante ressaltar que em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no país, o que representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras. Em dez anos, observa-se um aumento de 6,4%.
A intervenção militar ora vigente no estado do Rio de Janeiro, já é presente na vida de muitas pessoas que moram nas periferias de todo país e as alternativas que o Estado dá para a vida de territórios compostos, majoritariamente, por pessoas negras e pobres, continuam sendo programas de Segurança Pública. O relatório aponta que em 2012, o Rio de Janeiro encerrou uma fase de diminuição consistente das taxas de homicídios, algo que vinha acontecendo desde 2003. A partir de 2012, observou-se uma oscilação nos indicadores de letalidade violenta, sendo que em 2016 houve forte crescimento nos índices.
Pode-se dizer que 2016 marcou o final de um período positivo para o estado e a capital, com grandes eventos internacionais. O final das Olimpíadas demarcou essa transição, quando a falência econômica e política deram a tônica ao novo cenário que passa pela política de higienização social dos territórios urbanos promovendo a exclusão e segregação social, de uns em detrimento de outros, além de abrir caminhos para especulação imobiliária através da remoção da população de seus territórios, tais medidas estão fundamentadas no Racismo institucional que coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações.
No campo, um povo cansado de guerra
Historicamente no Brasil, a terra ocupa um papel central na disputa da luta de classes. Desde o período colonial, a matriz política consolidada, afirma a terra como propriedade privada, que até hoje encontra-se em posse nas mãos do agronegócio, da elite latifundiária. Logo, também é histórica a luta dos povos, dos camponeses pelo direito à terra e junto a isso, o intenso massacre dos mesmos. O Caderno de Conflitos no Campo da CPT aponta 2017 com o registro de maior número de assassinatos no campo dos últimos 14 anos.
Os dados indicam um aumento assustador relacionados à violência no campo. As tentativas de assassinatos subiram 63% e as ameaças de morte 13% em relação ao ano anterior. O número total de conflitos em 2017 foi de 1.431, menor que em 2016, quando ocorreram 1.536. Em 2017, o número corresponde a um assassinato a cada 20 conflitos, enquanto em 2016, correspondia um assassinato a cada 25 conflitos. O índice do ano passado é maior do que em 2003, quando os 73 assassinatos ocorreram num total de 1.639 conflitos.
As tentativas de assassinato passaram de 74 para 120 – um crescimento de 63% e um número que corresponde a uma tentativa a cada três dias. As ameaças de morte aumentaram de 200 para 226. O número de pessoas torturadas passou de 1 para 6. Os relatos dos acontecimentos pontuam altos níveis de brutalidade.
Porém, o que faz 2017 entrar na história com um índice tão macabro são os massacres. Foram cinco massacres com 31 vítimas. Em relação aos outros anos, em 1985 foram notificados 10 casos e seis em 1988 — desde então não se registrava, num único ano, mais do que dois massacres.
A impunidade como pilar das violências
Ao trazer os dados destes dois documentos relacionando as informações queremos colocar em evidência que tanto no campo, quanto na cidade, a impunidade segue como um dos pilares que sustenta essa violência. Ou seja, quando o Estado não é mão que atira, é a mão que nega políticas públicas e a efetiva resolução jurídica justa e necessária.
Entre os 1.431 casos de conflitos no campo, que resultaram em 1.904 vítimas, apenas 113 (8%) foram julgados, com 31 mandantes e 94 executores condenados. Dos números totais, 658 ocorreram na Região Norte, somente no Pará são 466.
É importante destacar que, em um período de ruptura política como este em que vivemos, a produção de dados como esses deve apontar sobretudo para iniciativas e alternativas que responsabilize o Estado, ao mesmo tempo em que devemos desnaturalizar as violências e o projeto de extermínio que articulam o racismo e o patriarcado, seja no campo ou na cidade.
Neste sentido, com o avanço do conservadorismo no Brasil, as implementações de políticas antipopulares afetam diretamente a vida da classe trabalhadora, em especial, as mulheres, os negros e negras, as pessoas transexuais, travestis, lésbicas, gays e bissexuais. Pois, embora os corpos das “minorias” não sejam contabilizados, o sangue derramado hoje no Brasil tem raça “cor”, gênero e orientação sexual, tal fato é perceptível pela crescente violência com crueldade no ano de 2016 para a população LGBT.
Segundo relatório da ONG Grupo Gay da Bahia, em 2017 a média de assassinatos registrados para população LGBT foi de 445 mortes. No ano de 2016 foram 343 assassinatos, equivalente a 0,95 morte por dia, perfazendo aumento de 30%. Além disso o documento revela que 37% das mortes ocorreram dentro da própria residência, 56% em vias públicas e 6% em estabelecimentos privados.
As denúncias quando dimensionadas na perspectiva de raça e cor, pretos e pardos totalizam 39,9% das vítimas; seguidos por brancos, com 27,5%; amarelos e indígenas. Os dados da população preta e parda quando somados perfez 40,55% das vítimas, seguida pela branca 26,84%, sendo que quanto ao perfil racial por categoria sexológica, observa-se que as transexuais e travestis negras são maioria (38%), seguidas dos gays (31%) e lésbicas (21%).
Logo, quando apontamos que o Estado decide quem pode viver e quem pode morrer, é considerando todas as esferas envolvidas nas alianças por este construída, que envolve os interesses de diversos setores da sociedade, e tem na impunidade o principal agente mantenedor da violência em sua forma estrutural. Encarar isso como um assunto de responsabilidade pública e de interesse da sociedade, enfrentando além das consequências, sobretudo, as causas, como a ausência de políticas democráticas de garantia dos direitos sociais, é uma das saídas para atenuar o atual quadro de violência, seja no campo ou na cidade.



*Iris Pacheco, Jornalista negra, Sem Terra e integrante do Grupo de Estudos sobre a Questão Étnico-racial e a Questão Agrária do MST.
*Emilia Joana, Advogada negra e militante do Levante Popular da Juventude
* Maysa Mathias, Agrônoma, LGBT negra Sem Terra e integrante do Grupo de Estudos sobre a Questão Étnico-racial e a Questão Agrária do MST.

Fonte: https://www.brasildefato.com.br/2018/07/02/artigo-or-o-estado-decide-quem-pode-viver-e-quem-pode-morrer/

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