domingo, 22 de julho de 2018

O Direito Achado no Ver-o-Peso


O Direito Achado no Ver-o-Peso: a luta das erveiras-do-ver-o-peso e a proteção de seus conhecimentos tradicionais[1].

Renata Carolina Corrêa Vieira[2]

Na célebre obra “O que é Direito” (LYRA FILHO, 1982), Roberto Lyra Filho problematiza o conceito do que é o Direito. Para uma concepção monista, o Direito se traduz ao que é lei, ou seja, aquilo que é produzido pelo Estado. Para os positivistas, apenas a norma produzida a partir do aparato estatal é que possui validade, reconhecendo este ente como o único legítimo a enunciar o que é direito. Segundo Lyra Filho, “a lei sempre emana do Estado e permanece, em última análise, ligada à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada, fica sob controle daqueles que comandam o processo econômico, na qualidade de proprietários dos meios de produção” (LYRA FILHO, 1982, p. 3).

Assim, a lei não escapa de apresentar contradições. Muitas das vezes representa, a partir de um repertório ideológico do Estado, um antidireito, desprovido de qualquer validação social. Para o citado autor, o verdadeiro direito seria aquele que não se aprisiona ao conjunto de normas estatais, mas emerge a partir da sociedade civil, dos sujeitos coletivos de direito.

É nesse contexto, que o trabalho político e teórico de O Direito Achado na Rua consiste em “compreender e refletir sobre a atuação jurídica dos novos movimentos sociais e, com base na análise das experiências populares de criação do direito: 1. Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que anunciam direitos, a partir mesmo de sua constituição extralegal, como por exemplo, os direitos humanos; 2. Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3. Enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade” (SOUSA JUNIOR, 2017, p. 147).

Para o direito Achado na Rua, partimos da clareza política de que o direito para ser emancipatório passa, antes, por uma disputa pela sua apropriação e pela sua realização. A conjuntura atual nos oferece elementos que demonstram claramente que o próprio projeto de cidadania e democracia, inaugurado a partir da promulgação da Constituição de 1988, continua inacabado e interrompido.
Nesse sentido, José Geraldo de Sousa Junior justifica a militância ativa de O Direito Achado na Rua, ao afirmar que:

A luta agora é em favor da instauração plena da legalidade, sem, porém, que nos deixemos levar por um formalismo inócuo, que resulte da perda de direitos fundamentais a tão duras penas conquistados através de décadas. A atuação dos movimentos sociais e outros sujeitos coletivos de direitos, neste momento, continua a mostrar-se essencial para que a aplicação da Constituição não se volte contra o humanismo pretendido no momento revolucionário de redemocratização no Brasil” (SOUSA JUNIOR, 2017, p. 148).

O humanismo de O Direito Achado na Rua proposto por Roberto Lyra Filho devolve ao direito, pela mediação dos direitos humanos, a (re) construção de um espaço político que visa à formulação de um projeto de sociedade recriado pelas lutas sociais por dignidade. (SOUSA JUNIOR, 2017). O direito passa a ser, então, a partir de uma perspectiva emancipatória, como a "enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade” (SOUSA JUNIOR, 2017, p. 156).

A partir de um caso concreto, analisaremos as categorias de O direito achado na rua, identificando o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, delimitando o sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito, e, por fim, enquadrando os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar as relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão vivenciadas.

A Feira do Ver-o-Peso, situada na cidade de Belém/PA, é famosa por ser um reduto de encontro de saberes, ingredientes, especiarias, mercadorias, frutos, peixes, músicas, cheiros dos mais diversos povos tradicionais que habitam a região amazônica, especificamente, o estado do Pará. Neste local etnodiverso, encontra-se viva a cultura local a partir das trocas de experiências de feirantes, erveiras, pescadores, ribeirinhos, indígenas, que intercambeiam seus saberes e promovem a cultura e a cena local com visitantes que diariamente circulam por esse espaço.

Por volta de 2005, algumas feirantes do Ver-o-Peso relataram à Comissão de Biodireito da OAB/PA que foram procuradas por uma equipe da empresa Natura, em 2003, para obter informações a respeito de algumas ervas – breu-branco, cumaru e priprioca – utilizadas para a fabricação de produtos de cheiro, vendidas no Mercado do Ver-o-Peso pelas mesmas. Na ocasião em que foram abordadas, foi realizado um vídeo promocional do Projeto Tamanduá que visava colher informações a respeito de cheiros e fragrâncias que seria utilizado para o lançamento de um novo perfume da linha de produtos Ekos (CORRÊA VIEIRA, 2008).

O vídeo, além de apresentar o Mercado do Ver-o-Peso como um local que reunia toda a essência que eles buscavam (cheiros), demonstrava que ali também estavam presentes os conhecimentos em volta desses recursos naturais (cascas, raízes, folhas), enquanto o vídeo era gravado, as mulheres falavam para o que cada parte da planta servia. Foram gravadas entrevistas, em que as mulheres demonstravam as formas de manipulação das ervas que continham as fragrâncias, que seriam mais tarde utilizadas na fabricação de perfumes. Na ocasião, foi realizado apenas um contrato de voz e imagem com as erveiras, recebendo cada uma o valor de R$ 500,00 (quinhentos reais) pelas entrevistas feitas[3].

Após o lançamento do vídeo, algumas feirantes começaram a perceber que o valor da priprioca, matéria prima para elaboração de seus produtos, encareceu e rareou no mercado, afetando diretamente a economia local,  o que depois foi identificado com o fato de que a empresa passou a comprar tal produto direto da fonte produtora local.  

Diante de tal contexto de espoliação, as erveiras do ver-o-peso passaram a reivindicar seus direitos de proteção ao seu conhecimento tradicional. A disputa travada passou não apenas pela proteção de seus saberes, mas também (e, principalmente) do próprio reconhecimento como sujeito coletivo de direito, uma vez que dentro da categoria “povos tradicionais” sua condição de feirantes situadas em feiras urbanas não se encaixariam dentro dos conceitos clássicos do campesinato e de povos tradicionais, utilizados pelas ciências sociais.

A existência de instrumentos internacionais que protegem o conhecimento tradicional, como a Convenção 169 da OIT e a Convenção de Diversidade Biológica, bem como a Medida Provisória Medida n.º 2.186-16/2001, vigente à época, asseguram uma mínima proteção ao detentor do conhecimento tradicional, determinando que o acesso ao conhecimento tradicional deve-se dar por meio de consentimento prévio livre e informado e mediante a repartição de benefícios com os lucros gerados a partir do acesso ao conhecimento.

Porém, no caso das erveiras do ver-o-peso, a disputa estava no próprio reconhecimento de sujeitos detentores do conhecimento acessado, uma vez que a sua natureza urbana e difusa seriam óbices para o reconhecimento da sua condição de povos tradicionais.  A problemática em torno da definição do que vem a constituir “povos tradicionais” é matéria amplamente debatida na antropologia social, não havendo sequer uma definição da terminologia, que varia desde “comunidades locais”, “populações tradicionais”, “povos tradicionais”, etc. (MOREIRA, 2017).

O caso das erveiras-do-ver-o-peso é um claro exemplo em que podemos situar as categorias do Direito Achado na Rua. Temos como espaço político, no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos, a própria feira do Ver-o-Peso, espaço este público (a rua), em que os sujeitos sociais interagem, a partir de suas práticas e vivências sociais, enunciam seus direitos – tanto o de serem reconhecidos como sujeitos coletivos de direitos, como o de proteção aos conhecimentos tradicionais que transitam diariamente neste local. A institucionalidade também se demonstra como um espaço político de enunciação dos direitos dessa comunidade local. Foi após a representação à Comissão de Biodireito da OAB/PA, que o caso chegou ao Ministério Público Federal, quando houve a celebração de um termo de Ajustamento de Conduta entre a Natura e a Associação VER-AS-ERVAS, que passou a representar o coletivo das erveiras do ver-o-peso, garantindo o pagamento de multa pelo acesso indevido, bem como repartição dos lucros auferidos a partir dos produtos lançados à base de priprioca.  

O sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito se constata a partir do coletivo de mulheres detentoras dos conhecimentos tradicionais que se encontram no Mercado do Ver-o-Peso – denominadas erveiras-do-ver-o-peso -,  considerada atualmente como sujeito detentor de conhecimento tradicional. Diante de tal condição, a partir de suas práticas sociais criadoras de direitos, estabelecem novas categorias jurídicas capazes de estruturar relações solidárias de uma sociedade alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação e de opressão entre as pessoas e na qual o direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade.

Assim, concluímos a partir da análise deste caso que as categorias jurídicas de O Direito Achado na Rua se revelam atuais e paradigmáticas para a enunciação de um direito emancipatório. Nas palavras de Roberto Lyra Filho, "o Direito não é; ele se faz nesse processo histórico de libertação enquanto desvenda progressivamente os impedimentos da liberdade não lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos", até se consumar, vale repetir, pela mediação dos direitos humanos, na “enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”. (SOUSA JUNIOR, 2017).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. 11 ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.

MOREIRA, Eliane Cristina Pinto. A Proteção jurídica dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade: entre a garantia do direito e a efetividade das políticas públicas. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Pará, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido. Belém, 2006. 246 f.

CORREA VIEIRA, Renata Carolina. Amazônia e o conhecimento tradicional associado à biodiversidade: da ameaça ao reconhecimento do direito. Principais entraves e avanços para a construção de um sistema jurídico de proteção eficaz.  2008. Trabalho de Conclusão de Curso (Monografia) – Curso de Direito, Universidade Federal do Pará, PA, 2008.

SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Concepção e Prática de O Direito Achado na Rua: plataforma para um Direito Emancipatório. In: Cadernos Ibero-Americanos. Direito Sanitário, Brasília, pgs. 145-158, abr./jun, 2017.


[1]Ensaio apresentado como requisito avaliativo para o Módulo I “El Pluralismo Juridico hallado em la calle”, ofertado pelo Professor José Geraldo de Sousa Júnior, no curso “Pluralismo Jurídico Igualitário e Descolonización”, do Instituto Internacional de Derecho y Sociedad – IIDS.
[2] Mestranda em Direitos Humanos do Programa de Pós Graduação em Direitos Humanos e Cidadania (PPGDH/UNB). Especialista em Direito Ambiental (UNAMA) e Relações internacionais (Unb). Assessora Jurídica no Tribunal Regional Federal da Primeira Região. Membro do grupo de pesquisa O Direito Achado na Rua.
[3] Dados retirados do processo administrativo 1.23.000.001252/2006-08 (MPF/PA) e no site do Ministério do Meio Ambiente: www.mma.gov.br.

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