quarta-feira, 16 de abril de 2014

Pedir desculpas é apenas o início (**)


JOSÉ CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO *

Sabendo que o ministro da Defesa está empenhando todos os seus esforços para tornar as nossas Forças Armadas mais democráticas e permeadas pelo comando civil, gostaria de comentar a declaração por ele dada no dia 27 de março, veiculada em O Globo. Disse ele que “o Estado brasileiro, ao pagar as indenizações, já, de certa maneira, pediu desculpas por tudo o que ocorreu”.
De fato, a Comissão de Anistia, sempre que reconhece o direito à reparação de alguém que foi perseguido político pelo Estado brasileiro ao longo da ditadura civil-militar, no momento em que profere o resultado da apreciação feita do requerimento de anistia, faz simbolicamente o pedido de desculpas em nome do Estado brasileiro pelas perseguições, prejuízos e violências praticadas, no que efetua também uma reparação moral e política. Na nossa Constituição a anistia tem o sentido de reparação. É preciso, porém, entender neste gesto não o esgotamento das ações do Estado democrático de hoje para confrontar a herança autoritária do Estado ditatorial de ontem, mas sim o reconhecimento público da ilegitimidade do golpe e da política sistemática de perseguição que foi implementada a partir dele.
Reparar economicamente pessoas que em decorrência da perseguição política perderam seus empregos por anos a fio, forçadas ao exílio, presas ou torturadas, expulsas dos bancos escolares, é o mínimo que o Estado deve fazer, mas não é tudo. A Comissão de Anistia já manifestou em várias ocasiões o seu entendimento, convergente com o avanço, estudo e efetivação do campo da justiça de transição no mundo todo, de que a reparação das vítimas diretas não se separa do direito de acesso de toda a sociedade aos documentos públicos produzidos pela ditadura, bem como do direito de que sejam investigados os crimes contra a humanidade perpetrados e responsabilizados os agentes públicos que os praticaram, além da necessária reforma institucional. Exatamente por isto a Comissão tem sido parte atuante na luta da sociedade brasileira por verdade, memória e justiça.
É necessário lembrar para não repetir. É preciso demarcar claramente na arena pública e institucional o repúdio da sociedade democrática à instrumentalização do Estado para a repressão generalizada da sociedade e para a prática de crimes de lesa-humanidade como a tortura e o desaparecimento forçado. É fundamental alterar a cultura institucional das nossas forças de segurança pública no sentido de que a tortura, o autoritarismo e a brutalidade são admissíveis e normais, restando impunes ontem e hoje.
O problema não é ter havido um agente público que torturou, mas sim uma organização pública que não só permitiu a tortura, mas a comandou como política de Estado. Para que possamos realmente nos distanciar deste Estado de barbárie, que segue ainda vivo em seus enclaves e entulhos autoritários, e assumirmos uma posição de princípio para uma sociedade menos violenta, é preciso que comecemos a responsabilizar os crimes da ditadura. Um pedido de desculpas oficiais das Forças Armadas também ajudaria muito, afinal foi ela a instituição que em 1964 assumiu a linha de frente na ruptura com a ordem democrática.
* Vice-presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça
** Artigo originalmente publicado no jornal Zero Hora, edição de 16/4/2014

José Carlos Moreira da Silva Filho
Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS (mestrado e doutorado)
http://lattes.cnpq.br/0410429186457225; integra o coletivo organizador do novo volume (7) da Série O Direito Achado na Rua - Introdução Crítica ao Direito e à Justiça de Transição na América Latina.

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