Ludmila
Cerqueira Correia[1]
Murilo Gomes
Franco, Olívia Maria de Almeida[2],
Isadora Silveira
Xavier, Raymara Soares da Silva[3]
RESUMO
O Centro de Referência em Direitos
Humanos da Universidade Federal da Paraíba (CRDH/UFPB) desenvolve o projeto de
pesquisa e extensão “Cidadania e direitos humanos: educação jurídica popular no
Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira (CPJM)” desde o ano de 2012. Integra esse
projeto um grupo interdisciplinar de estudantes composto pelos cursos de
graduação em Direito, Psicologia, Serviço Social e Enfermagem. O cerne de
atuação do projeto é a realização de atividades de educação jurídica popular,
na perspectiva da educação em direitos humanos, direcionadas às pessoas em
estado de sofrimento mental internadas no CPJM, assim como seus familiares e
profissionais, presentes no cotidiano das relações institucionais. O projeto
adotou a metodologia da Educação Popular, teorizada por Paulo Freire, a fim de
estimular o processo de empoderamento de um grupo de pessoas que,
historicamente, teve uma série de direitos violados, bem como a
inacessibilidade a instrumentos e mecanismos de garantias de direitos. A partir
desses marcos metodológicos, torna-se possível a socialização e o
“desencastelamento” do saber jurídico e, ainda o apoio às pessoas em sofrimento
mental a assumirem o protagonismo na construção de seus próprios direitos,
auxiliando na mudança da realidade em que vivem. Conclui-se que o projeto tem
contribuído para os debates no campo da garantia dos direitos das pessoas em
estado de sofrimento mental, da conquista de novos direitos e da ampliação da
cidadania desse grupo social, com destaque para as pessoas internadas em
hospitais psiquiátricos.
Palavras-chave: Direitos Humanos; Educação Jurídica Popular;
pessoas em sofrimento mental; hospital psiquiátrico.
INTRODUÇÃO
O Centro de Referência em Direitos Humanos da
Universidade Federal da Paraíba (CRDH/UFPB) desenvolve projetos de pesquisa e
extensão desde o ano de 2010, que agregam temáticas como a mediação de
conflitos, a assessoria jurídica popular e o apoio psicossocial, funcionando
como espaço de promoção e defesa dos direitos humanos e reconhecimento da
produção jurídica dos sujeitos coletivos em espaços não estatais. Em abril de 2012 teve início o projeto
de extensão “Cidadania e direitos humanos: educação jurídica popular no
Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira”, composto por um grupo de catorze
estudantes de Direito. No ano de 2013, ingressaram estudantes de outros cursos
de graduação da UFPB: além de Direito, estudantes de Psicologia, Serviço Social
e Enfermagem.
Através da Educação Jurídica Popular em Direitos
Humanos, tal grupo realiza oficinas que desenvolvem temas relacionados aos
direitos das pessoas internadas no Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira (CPJM),
bem como dos seus familiares. Esse projeto identifica-se enquanto uma célula do
movimento da luta antimanicomial que problematiza a existência das instituições
psiquiátricas a partir do enfrentamento à cultura manicomial socialmente
disseminada.
O CPJM, situado na cidade de João Pessoa, no estado
da Paraíba, assim como outros manicômios, se caracteriza pela segregação das
pessoas em estado de sofrimento mental, contribuindo para a perda de suas
identidades e dos vínculos comunitários e sociais, o que consiste, portanto, em
violações de direitos humanos constitucionalmente garantidos.
No Brasil, observa-se que existem poucas pesquisas
referentes à aplicação da Lei nº 10.216/2001 e dos princípios da Reforma
Psiquiátrica, o que demonstra a necessidade de maior conhecimento das práticas realizadas
em instituições manicomiais e nos serviços substitutivos, assim como de um
debate que insira a comunidade acadêmica e os órgãos envolvidos na temática em
diálogo com a realidade social.
QUESTIONANDO O TRADICIONAL MODELO
JURÍDICO
Com o objetivo de romper com a naturalização das
diversas violações de direitos relacionadas ao internamento em hospitais
psiquiátricos e colaborar para o empoderamento dos sujeitos sociais
participantes das oficinas propostas, o projeto de extensão “Cidadania e direitos
humanos: educação jurídica popular no Complexo Psiquiátrico Juliano Moreira”
adotou como metodologia a Educação em Direitos Humanos e a Educação Popular.
O projeto referido visa a constituição de um espaço
horizontal e de uma cultura de cidadania e de participação que pretende dar a
voz a todos os envolvidos, concebendo-os enquanto sujeitos políticos
construtores de sua própria formação. Para tanto, pressupõe a quebra com a
relação autoritária presente no assistencialismo e no tradicional ensino
jurídico, e a construção do Direito que reconheça a atuação jurídica dos
sujeitos coletivos e suas experiências e conflitos.
Partindo da idéia de que a produção jurídica não
esgota a sua fonte unicamente no Estado, centro do poder político, tem-se a
perspectiva de construção descentralizada do Direito em espaços não formais e
antidogmáticos. Reconhecer essa produção implica em compreender o esgotamento
do modelo jurídico vigente, como traz Wolkmer (2001, XVII):
porquanto o modelo de cientificidade que
sustenta o aparato de regulamentação estatal liberal-positivista e a cultura
normativista lógico-formal já não desempenha a sua função primordial, qual seja
a de recuperar institucionalmente os conflitos do sistema, dando-lhes respostas
que restaurem a estabilidade da ordem estabelecida.
Esse modelo esbarra nos interesses coletivos e é
incompatível com a realidade social na medida em se preocupa com a legalidade
do processo em detrimento da justiça. Exemplo disso é evidenciado na escolha de
uma linguagem erudita centrada em procedimentos formais, nos quais os juízes
“escravos da lei” não assumem a responsabilidade pelos conflitos da sociedade
(DALLARI, 2007). O monismo jurídico consagra que “todo Direito é a criação do
Estado e, por conseguinte, todo Direito Estatal é Direito Positivo” (WOLKMER,
2001, p. 63,), e por seu caráter abstrato ele acaba se distanciando dos
sujeitos sociais e políticos.
Como afirma Aguiar, o Estado “legisla para si para
se fortalecer e não perecer e legisla para os outros grupos para exercer um
controle eficaz.” (1980, p. 48). A relação que se dá a partir do controle
estatal sobre os grupos sociais é ideológica e política, e o direito normativo
também, tendo em vista que o ordenamento jurídico se sustenta a partir do
interesse de grupos dominantes.
A dinamicidade social e seus conflitos delimitam
interesses que posicionam os sujeitos em lugares diversos, ora de dominantes,
ora de dominados. Nessa relação, percebe-se a instabilidade social e a
insuficiência do modelo de monismo jurídico, no qual o Direito não consegue
mais regular as resoluções de conflitos, tornando necessária uma nova forma de
lidar com a organização social.
Nesse sentido, tem-se a insurgência de uma produção
jurídica não associada com o Direito Positivo, nem tampouco com o Estado,
inclusive considerando a possibilidade de existência do Direito sem o aparato
estatal (WOLKMER, 2001). Visualiza-se uma soberania múltipla e plural, onde os
“destinatários de um ordenamento jurídico poderão ser a fonte de um outro
ordenamento jurídico” (AGUIAR, 1980, p. 48), e assim, reconhecer as
manifestações normativas informais e não estatais.
Este fenômeno de reconhecimento da multiplicidade
de práticas normativas nos espaços sócio-políticos configura o denominado
pluralismo jurídico, que se sustenta a partir das necessidades de organização
social e cultural. Este novo olhar rompe com a lógica centralizadora de que o
Estado seja fonte exclusiva da produção do Direito e admite a existência de
mais de uma realidade, de múltiplas formas de
ação prática e da diversidade de campos sociais com particularidade própria, ou
seja, envolve o conjunto de fenômenos autônomos e elementos heterogêneos que não
se reduzem entre si (WOLKMER, 2001, p. 172).
Ainda que informalmente os sujeitos coletivos
busquem soluções para os conflitos concretos, o aparelho burocrático estatal
continua como principal responsável pelo controle social formal. Sendo o
direito o operador desse poder controlador e disciplinador através do discurso
da violência, ele pode aniquilar a individualidade dos sujeitos a partir da
imposição de ações regradas, ligadas às normas jurídicas. É importante notar
que não somente o direito exerce técnicas de disciplinamento, mas também outras
ciências, como a psiquiatria e a psicologia. A respeito do poder disciplinador:
aqueles que se insurgem contra a
disciplina receberão contra si o tapa da mão pesada da sanção, os que não forem
aptos a se disciplinarem, pura e simplesmente, sofrerão a sanção da não
participação da vida econômico-financeira dos que se encontram sob a égide
daquele poder (AGUIAR, 1980, p. 69).
Destaque-se que as tradicionais ciências se configuram
enquanto disciplinadoras e podem também exercer sanção, mesmo que implícita,
sobre os sujeitos. Muitas vezes, a internação de um “louco” num hospital
psiquiátrico a partir de um discurso de tratamento representa a aplicação da
“mão pesada da sanção” da psiquiatria e da psicologia sobre o corpo e a
liberdade do indivíduo. Esta sanção se disfarça enquanto prática “humana” e
“caridosa” de cuidado que mistifica ideologicamente o fato de que a própria
sociedade aprisiona e regula todos os comportamentos, estabelecendo o que se
considera normal e o que se desvirtua disso (AGUIAR, 1980).
DIREITO
NO HOSPÍCIO: CONTRIBUIÇÕES DA EDUCAÇÃO JURÍDICA POPULAR EM DIREITOS HUMANOS
O conceito de “educação bancária” atribuído
por Paulo Freire (1987) à forma tradicional de se educar se refere a uma
relação de poder que consiste na transferência de conhecimento de uma pessoa
detentora do saber para outra que não o possui. Não estando apartada de outras
relações interpessoais políticas e econômicas presentes na sociedade, essa
“transferência de informação” que tem sido chamada de “educação” não só
configura a polarização entre indivíduos opressores e oprimidos, mas também
serve de instrumento de manutenção para que essas outras relações de dominação
históricas continuem existindo.
A experiência da educação bancária não
raramente se faz presente no cotidiano das salas de aula dos cursos de
graduação[4]
da UFPB em que estão matriculados(as) os(as) estudantes que compõem o projeto
“Cidadania e Direitos Humanos: Educação Jurídica Popular no Complexo
Psiquiátrico Juliano Moreira”. Para escapar dessa realidade e não repeti-la na
atuação enquanto extensionistas, os(as) estudantes apostam na metodologia da
educação jurídica popular, que viabiliza a construção coletiva de um
conhecimento cujo conteúdo tenha como base os direitos humanos.
Ressalte-se que essa prática se contrapõe
radicalmente ao modelo tradicional de educação, não somente porque trabalha com
temas ligados aos direitos e às garantias fundamentais, mas, sobretudo, porque
está politicamente voltada ao auxílio no processo de empoderamento do grupo
historicamente oprimido das pessoas em sofrimento mental, com destaque para
aquelas internadas em hospitais psiquiátricos (também chamados de hospícios ou
manicômios).
Segundo Zenaide (2013, p.2), “a educação em
direitos humanos objetiva, entre outros aspectos, afetar a naturalização das
violações aos direitos humanos” e esse é o compromisso dos(as) extensionistas.
Desde março de 2012, com o início do projeto, a educação jurídica popular tem
se apresentado como uma estratégia para a aproximação do direito a essas
pessoas, visando “propiciar o protagonismo dos sujeitos frente ao Direito”
(REDE NACIONAL DE EDUCAÇÃO JURÍDICA POPULAR, 2009).
O referido projeto busca realizar suas
atividades sempre compreendendo todas as pessoas que, voluntariamente, nelas se
envolvem, como sujeitos fundamentais em sua construção e titulares de plena
capacidade para serem porta-vozes de si mesmos. Nesse sentido, apostando na
possibilidade de interlocução e aprendizado mútuo entre extensionistas e
usuários, familiares e profissionais ligados ao CPJM, as oficinas são
construídas coletivamente e tratam de questões como: o direito à igualdade e
não discriminação, à liberdade, à comunicação, os mecanismos de garantia de
direitos, institucionalização, políticas públicas, organização do Estado,
atuação do sistema de justiça e de segurança na questão das drogas, além dos
serviços substitutivos de saúde mental.
O projeto atua ainda no reconhecimento de
mecanismos de acesso à justiça e seu fortalecimento, interna e externamente ao
Complexo Psiquiátrico, como Ouvidorias e órgãos dos sistemas de Saúde e de
Justiça. A metodologia das atividades, desde o seu planejamento, execução
e avaliação, proporciona, através de uma escuta diferenciada, a captação de
demandas oriundas do público alvo nas oficinas, que vão orientar as discussões
e estudos do grupo relacionados às violações e mecanismos de garantia de
direitos das pessoas em sofrimento mental internadas em hospitais
psiquiátricos.
Para além da repercussão que o projeto de
extensão tem causado dentro da instituição manicomial, é importante ressaltar a
colaboração do mesmo para a formação acadêmica e pessoal dos(as) extensionistas,
uma vez que a educação em direitos humanos há de cumprir o importante papel de
contribuir para a valorização do ser humano, enquanto ser completo, histórico,
político, cultural, afetivo, axiológico, e de promover o despertar da sua
consciência enquanto tal (GUIMARÃES, 2012).
O constante trabalho coletivo que envolve a
interação entre estudantes de vários cursos e rompe com a lógica de mercado
individualista e de concorrência tem promovido a ressignificação da produção do
conhecimento científico ao passo que amplia as possibilidades de atuação do
projeto dentro e fora do hospital. Quanto a isso, é notável a diferença entre
as “duas fases” [5]
do projeto. A primeira, em 2012, contou majoritariamente com estudantes do
curso de Direito. A segunda, em 2013, está sendo marcada pela
interdisciplinaridade entre quatro áreas do conhecimento, sendo possível
constatar uma maior possibilidade de atuação, impulsionada pelo fortalecimento
do grupo e que tem ligação direta com a recomposição do coletivo. A respeito
disso, Costa e Sousa Júnior propõem o “Direito Achado na Rua” como
possibilidade de um conhecimento que supere a distância entre a teoria e a
prática e que busque a conexão entre os saberes científicos:
A interdisciplinaridade se impõe como forma de
compreender e explicar o mundo sem estar presa a “caixas” ou “gavetas”. Embora
não negue a importância do aprofundamento e da especialização, a tentativa de
construção de um conhecimento específico não pode fazer com que se saiba cada
vez mais de muito pouco, o que significa nada saber. Vale observar que a
interdisciplinaridade busca uma coesão de saberes diferentes (Direito,
Economia, Política, Psicologia, Sociologia, etc.). (COSTA e SOUSA JUNIOR, 2009,
p. 24).
A utilização da
perspectiva do “Direito Achado na Rua”, que diz respeito ao reconhecimento da
produção jurídica a partir dos movimentos sociais, bem como a sua
ressignificação e adaptação às reivindicações populares aprisionadas no
ambiente do hospício, têm sido realizadas nas atividades de extensão propostas
pelo referido projeto. O impedimento institucional à possibilidade de reivindicação
de direitos no espaço público decorrente do aprisionamento de uma pessoa em uma
instituição psiquiátrica fechada afeta diretamente o exercício da cidadania.
Uma vez que a liberdade, compreendida enquanto prerrogativa para a luta por
direitos (SOUSA JUNIOR, 2008), não está acessível para os(as) usuários(as) do
CPJM, essa situação não impede que essas pessoas sejam titulares da capacidade
de serem cidadãs, mas dificulta demasiadamente esse processo.
Nesse sentido, o projeto apresenta-se enquanto uma extensão
universitária cuja práxis é comunicativa, do modo como explicitado na obra de
Freire (GUIMARÃES, 2012) e que possibilita, entre outras coisas, a quebra do
monopólio do conhecimento das ciências, com destaque para o Direito. Essa
realidade só tem sido possível porque, aliada à extensão, a educação jurídica
popular propõe uma reflexão crítica sobre a efetividade do princípio da função
social, inerente à educação e, consequentemente, à Universidade.
A extensão universitária configura-se como
oportunidade do saber científico desenvolver-se com sua abertura para a
sabedoria posta em prática na dinâmica social. Na medida em que se realiza a
extensão universitária, sobretudo voltada para a cidadania e para os direitos
humanos, a sociedade ganha por desenvolver processos de autonomia na sua luta
emancipatória, e a universidade ganha ao aprender com a comunidade formas de
realização da justiça social. (COSTA e SOUSA JUNIOR, 2009, p. 23).
A realização quinzenal de oficinas tem
promovido o contato direto dos extensionistas com a realidade manicomial e suas
contradições. Não raramente, essa interação oferece mais conteúdo educativo do
que aquele que os(as) estudantes têm experienciado em sala de aula. Sobretudo
porque a prática da extensão consegue aliar a fundamentação teórica do projeto
com a realidade social, enquanto o conhecimento produzido em sala de aula, em
geral, encerra-se em teorias sem repercussão prática. Por exemplo, a partir do
que foi estudado pelos extensionistas, percebeu-se que as demandas jurídicas
oriundas do CPJM estavam ligadas a violações de direitos humanos e, ainda, que
tais demandas colocam em cheque a efetividade do direito ao acesso à justiça
(CORREIA et al., 2013).
Sendo tuteladas pelo Direito enquanto
incapazes, essas pessoas têm o seu cotidiano marcado pela negação de suas
existências enquanto sujeitos de direito. O silenciamento forçado de seus
conflitos pelas várias formas de violência proporcionadas pela internação, com
destaque para a medicalização, insere essas pessoas em um contexto de
vitimização e expõe a fragilidade dos sistemas de saúde, justiça e segurança do
Estado.
O ponto de partida para a realização das
atividades do projeto tem sido provocar as pessoas que participam das oficinas
com reflexões oriundas de dispositivos lúdicos e dinâmicos, como filmes,
músicas, poesias, dinâmicas de grupo, ilustrações, pinturas, técnicas de Teatro
do Oprimido [6],
etc. A opção de se trabalhar com a arte viabilizou a realização de uma peça de
teatro, um telejornal, a simulação de um processo eleitoral, dentre outros.
O trabalho com a educação em direitos humanos
possui uma dimensão relacionada à solidariedade que, segundo Freire (1987), não
deve ser confundida com a mera interiorização e racionalização de culpa. A
capacidade de efetivação do princípio da alteridade frente às situações de
opressão proporciona o impulsionamento da luta pelo respeito aos direitos
humanos, posto que a violação ao direito de uma pessoa deixa de ser encarada
enquanto uma situação particular para se tornar uma agressão à
coletividade. A tarefa de educar para o “nunca mais” (ZENAIDE, 2013)
exige esse tipo de comprometimento. Portanto, compreende-se que todo o
investimento em educação em direitos humanos desenvolvido pelo projeto de
extensão almeja contribuir para que o CPJM não mais exista, visto que a plena
garantia dos direitos das pessoas ali internadas só será possível em um cuidado
extra-hospitalar, tal qual preconiza a luta antimanicomial.
Em se tratando dos direitos das pessoas em sofrimento
mental, é importante ressaltar que os mesmos não se encerram na seara da saúde.
A maioria das pessoas internadas no CPJM são economicamente marginalizadas,
além da vulnerabilidade culturalmente imposta e atrelada ao transtorno mental.
Para além da íntima relação entre loucura e pobreza, a análise dessa realidade
denuncia que o lugar do hospital psiquiátrico esteja sendo reforçado não só
pelo cuidado ofertado em saúde mental e utilitarismo da defesa social, mas
porque essa instituição supre a carência daquilo que se entende por “mínimo
existencial” de muitas pessoas. Por exemplo, ainda que de forma precarizada, o
CPJM proporciona moradia, alimentação, higiene, atenção à saúde, etc. Quanto a
isso, cabe trabalhar a acepção de Paulo Freire (1987) sobre o “medo de
liberdade” que se contrapõe ao empoderamento que o grupo de extensão estabelece
enquanto objetivo. Esse conceito é um desafio para a prática da educação
popular em direitos humanos e se expressa de forma recorrente na realidade das
pessoas que trabalham ou que estão internadas no hospital psiquiátrico. Ele se
traduz, por exemplo, no receio de que a instituição, mesmo sendo opressora,
deixe de existir e junto com ela, acabem as provisões que ela oferece.
Mais um desafio à atuação do projeto se
expressa em outros dois conceitos também trabalhados por Freire (1987) em seu
livro Pedagogia do Oprimido, são eles o enquadramento de indivíduos em “ser
mais” e “ser menos”. Ressalte-se que a complexidade dessa relação afasta a
possibilidade de reducionismos maniqueístas. O primeiro diz respeito ao polo
oprimido da relação de poder ou ainda àquele que luta pela humanização e quebra
da relação de opressão. Resta ao segundo conceito o papel da violência e
opressão.
A partir desse panorama, o projeto de
extensão se enquadra enquanto “ser mais” e a instituição psiquiátrica enquanto
“ser menos”. Dessa relação de contraposição emerge o sentimento de inquietação
dos(as) extensionistas, oriundos(as) de um Centro de Referência em Direitos
Humanos, em testemunhar frequentemente situações de violações aos direitos
humanos. Esse sentimento funciona como importante elemento que reforça o
comprometimento do projeto em contribuir para o fechamento dos hospitais
psiquiátricos a partir de uma atuação que compreenda bem a dinâmica hospitalar
para poder, assim, desmantelá-la.
Para além do que foi produzido nas oficinas,
no que se refere aos resultados que o projeto tem alcançado, é importante
ressaltar o papel estratégico da educação em direitos humanos na captação de
demandas do CPJM, as quais vêm sendo supridas em atuações extra-hospitalares.
Por exemplo, a provocação à Defensoria Pública para que atue assessorando
juridicamente os casos de cumprimento de medida de segurança, articulações que
mobilizaram o Ministério Público e a Vara de Execuções Penais a autorizarem a
saída temporária de pessoas internadas no hospital, contatos com o Desembargador
Ouvidor do Tribunal de Justiça da Paraíba.
O segundo ano de atuação do projeto tem sido
marcado por uma maior inserção no hospital, evidenciada pela aproximação com
algumas categorias de profissionais, de modo a, inclusive, ser pensado um
cronograma de formação em direitos humanos junto aos trabalhadores que será
posto em prática ainda em 2013. O estabelecimento de vínculos com alguns
usuários(as) do hospital tornou-se fortalecido em virtude das recorrentes
atividades do projeto na instituição e essa afinidade tem repercutido
diretamente na qualidade das oficinas. Outra conquista importante do projeto se
deu pela aproximação estratégica com a direção do CPJM, que passou a reconhecer
o papel político do Centro de Referência em Direitos Humanos em diligenciar casos
emblemáticos de graves violações a direitos. A diretoria do hospital passou a
detectar esses casos e a encaminhá-los para análise dos(as) extensionistas como
uma forma de não se omitir em razão dos conflitos existentes na instituição.
Compreender o hospital psiquiátrico enquanto
dispositivo que operacionaliza e responde à necessidade de defesa social se faz
necessário para que se possa fechá-lo. Entendimentos como esse consideram a
amplitude do fenômeno cultural da manicomialização e denotam que ele não se
limita à instituição psiquiátrica e está disseminado socialmente. O propósito
do projeto em execução naquele Complexo Psiquiátrico vai além de reconhecer o
Direito achado no hospício, pois pretende que ele sirva
de instrumento para a desconstrução da realidade manicomial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A compreensão da multiplicidade de práticas do
Direito e o reconhecimento da construção do Direito em um hospital psiquiátrico são premissas da atuação do projeto de
extensão “Cidadania e Direitos Humanos: Educação Jurídica Popular no Complexo
Psiquiátrico Juliano Moreira”, que integra o CRDH/UFPB.
A
partir da crítica ao academicismo, cabe à extensão universitária uma atuação
que não se limite ao estudo do panorama teórico e esteja vinculada ao diálogo
com a sociedade. Assumindo esse desafio, o referido projeto se utiliza da
educação jurídica popular em direitos humanos como estratégia de aproximação à
realidade manicomial, o que tem repercutido em uma série de críticas ao
conservadorismo científico e às instituições estatais. A inserção dos(as) extensionistas nesse contexto está pautada na
compreensão de que a loucura interpretada enquanto doença mental nem
sempre existiu. Portanto, o processo histórico e cultural de construção desse e
de outros conceitos violadores de direitos, como o da periculosidade, são
levados em consideração nas atividades do projeto.
A
educação jurídica popular em direitos humanos tem se revelado enquanto
metodologia que auxilia no processo de empoderamento dos sujeitos, propondo a
possibilidade de uma ressignificação crítica das ciências e de suas
repercussões no cotidiano das pessoas internadas no CPJM. A partir da negação à
cultura manicomial que emerge de movimentos como a reforma psiquiátrica, os(as)
extensionistas têm colaborado na afirmação e construção dos direitos das
pessoas em sofrimento mental e compreendem que a participação dessas pessoas é
indispensável nos processos que almejam a transformação da realidade em que
vivem. Do ponto de vista da comunicação, as atividades do projeto objetivam a
dialogicidade e inclusão de todas as pessoas que, voluntariamente, estejam
dispostas a participar.
Assim
como a luta antimanicomial, o referido projeto compreende que os direitos das
pessoas em estado de sofrimento mental não se encerram na seara da saúde. Nesse
sentido, o compromisso político com o fim das instituições psiquiátricas tem
possibilitado articulações extra-hospitalares que repercutem diretamente nos
resultados alcançados pelo projeto e afetam diretamente a cultura manicomial.
Por fim,
vale destacar que os desafios contemporâneos à luta antimanicomial estão sendo
estudados e problematizados pelos(as) extensionistas integrantes do mencionado
projeto de extensão, que vêm buscando impulsionar a afirmação e a construção
dos direitos das pessoas em sofrimento mental internadas no Complexo
Psiquiátrico Juliano Moreira através da educação jurídica popular em direitos
humanos.
REFERÊNCIAS
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Alfa-Omega, 1980.
CORREIA, L. C. (et al.). Direitos humanos no manicômio: problematizações em torno do acesso à
justiça. Revista Responsabilidades. Minas Gerais, v. 2, n.2 Setembro de
2012 a Fevereiro de 2013. Disponível em: <http://www8.tjmg.jus.br/presidencia/programanovosrumos/pai_pj/revista/volume-2-n2.html>.
Acesso em: 27 abr. 2013.
COSTA, A. B.; SOUSA JUNIOR, J. G.
de. O Direito Achado na Rua: uma ideia em
movimento. In: COSTA, A. B. (et
al.) (Org.). O Direito achado na rua: Introdução crítica ao direito à saúde.
Brasília: CEAD/UnB, 2009.
DALLARI, D. de A. O Poder dos Juízes. 3 ed. São Paulo:
Saraiva, 2007.
FREIRE, P. Pedagogia
do Oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
GUIMARÃES, L. M.
M. Um diálogo de renovação: Extensão Jurídica Popular e Educação em direitos
humanos. Feira de
Santana, 2012. Monografia (Graduação em Direito). Universidade Estadual de
Feira de Santana.
REDE NACIONAL DE
EDUCAÇÃO JURÍDICA POPULAR. Carta de Princípios. João Pessoa, 2009. Disponível em:
<http://rnejp.wordpress.com/carta-de-principios-da-rnejp/>. Acesso em: 01
mar. 2013.
SOUSA JÚNIOR, J.
G. de. Direito como liberdade: o Direito
achado na rua: experiências populares emancipatórias de criação do Direito. Brasília, 2008.
Tese (Doutorado em Direito). Universidade de Brasília. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/dados/teses/a_pdf/tese_jose_geraldo_direito_achado_rua.pdf>. Acesso em:
01 mar. 2013.
WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico: Fundamentos de uma nova
Cultura no Direito. 3. ed. São Paulo: Alfa Ômega, 2001.
ZENAIDE, M. N.
T. Educação em Direitos Humanos e
Educação – Experiências da Universidade Federal da Paraíba. Disponível
em:
<http://www.dhnet.org.br/educar/1congresso/016_congresso_nazare_zenaide.pdf>
Acesso em: 26 mai. 2013.
[1]
Advogada popular. Doutoranda em Direito pela
Universidade de Brasília. Mestra em Ciências Jurídicas pela Universidade
Federal da Paraíba (UFPB). Professora Assistente do Departamento de Ciências
Jurídicas da UFPB, do qual é assessora para assuntos de extensão. Coordenadora
do Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB e do Grupo de Pesquisa e
Extensão Loucura e Cidadania. ludcorreia@gmail.com
[2]
Estudantes do curso de graduação em Direito da
UFPB e integrantes do Grupo de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania.
[3]
Estudantes dos cursos de graduação em
Enfermagem e Serviço Social da UFPB e integrantes do Grupo de Pesquisa e
Extensão Loucura e Cidadania.
[4] Direito, Serviço Social, Psicologia e Enfermagem.
[5] O projeto de extensão foi aprovado nos editais do
Programa de Extensão da Universidade Federal da Paraíba (PROBEX/UFPB) nos anos
de 2012 e 2013.
[6] As técnicas
do Teatro Oprimido abrangem a prática de jogos, exercícios e técnicas teatrais,
com o objetivo de estimular a discussão e a problematização de questões do
cotidiano, para uma maior reflexão sobre as relações de poder. Augusto Boal
sistematizou o Teatro do Oprimido, que tinha como maior objetivo a
transformação da realidade.
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