Lênio Streck
Da voz das ruas à consciência e assim por diante: as falsas “ditricotomias”
Durante o affair “Embargos Infringentes”, forjou-se
uma falsa “ditricotomia”: ouvir a voz das ruas ou a voz da lei (ou a
consciência individual, do tipo “faço o que acho o certo”). Nada mais
ficcional do que isso. Além do fato de que os ministros do STF por vezes
sustentam uma tese e, em outras, a tese inversa. Veja-se, nesse
sentido, o voto do ministro Roberto Barroso no MS 32.326 (caso Donadon),
em que apelou textualmente, como motivo para não chancelar a existência
de um Deputado presidiário, cumprindo pena de mais de 13 anos, em
regime inicial fechado: “A indignação cívica, a perplexidade jurídica, o
abalo às instituições e o constrangimento que tal situação gera para os
Poderes constituídos legitimam a atuação imediata do Judiciário”.
Dias
depois, ao aceitar os Embargos Infringentes, disse o contrário: “A
verdade não tem dono. A única coisa que um juiz pode fazer, em meio ao
vendaval, é ser leal a si mesmo e ao Direito tal como ele o compreende. À
sua consciência.” Ou seja: antes, a indignação cívica é fundamento;
logo depois, não mais o é.
Só por aí já poderia desenvolver
páginas e páginas. Veja-se que o ministro Celso de Mello, por exemplo,
para sustentar seu voto de desempate e, com isso, “anunciar” a vitória
da lei sobre a voz das ruas, disse que o STF deve ficar imune às
pressões das ruas e ater-se apenas à tecnicidade da lei. OK, mas, o que é
isto, a tecnicidade da lei? A lei tem vida própria? O Direito é feito
de “normas gerais” que contém de antemão todas as respostas?
Vários
artigos foram publicados nas redes sociais, contendo argumentos com
perguntas do estilo “o STF deve julgar pela consciência, pelas ruas ou
pela lei?”. Por que essa “ditricotomia” (ou contraposição) é falsa? O
professor Marcelo Cattoni, da UFMG, e eu vimos discutindo isso há muito
tempo. Com efeito.
As oposições “voz da lei versus voz das ruas” ou “voz da consciência versus voz das ruas”, ou ainda, “voz da lei versus
voz da consciência”, são reducionistas e fragilizam o Direito. É como
discutir se a legitimidade vem do pluralismo das ruas ou simplesmente do
direito posto pelo parlamento (ou pelo STF, no seu Regimento Interno)
ou pelas consciências dos intérpretes autênticos (ou inautênticos). Com
efeito, se é certo que o Direito não deve ser reduzido à vontade
não-mediada institucionalmente de maiorias e/ou minorias conjunturais,
por outro não pode ser reduzido à mera estatalidade
político-burocrática, muito menos àquilo que dizem que ele é (Realismo
Jurídico). Afinal, as decisões estatais no Estado Democrático de Direito
só são válidas se garantirem suas pretensões
democrático-constitucionais.
É claro que todo o Direito é público,
não resta dúvida quanto a isso. Mas o público não se reduz ao estatal,
no Estado Democrático de Direito, e está numa relação pública de
complementaridade e interdependência entre público e privado.
Assim
é que a coerência normativa exigida pela integridade do/no direito é de
princípios (exigências do hoje), e não meramente de regras (convenções
do passado). Disso se pode dizer que, se o Direito não nascer na(s)
rua(s), se a legalidade não nascer também das reinvindicações populares,
a partir de demandas sociais diversas, e não se sustentar com base em
razões que sejam capazes de mobilizar os debates públicos, pela atuação
da sociedade civil e dos setores organizados da sociedade, e assim, sem
uma perspectiva generalizada, universalizada, instaurada pelas lutas por
reconhecimento e por inclusão social e econômica, não ganhar os fóruns
oficiais do Estado, não ganhar o centro do sistema político, e não se
traduzir em decisões participadas, como falar em legitimidade
democrática?
Dito de outro modo: é na mediação discursiva entre a
informalidade e a formalidade, garantida num nível institucional pelos
processos deliberativos constitucional e democraticamente
institucionalizados, legislativos, administrativos e jurisdicionais, que
o poder político/jurídico é gerado comunicativamente e a legitimidade é
gerada através da legalidade...
Portanto, já de pronto afasto
essa “ditricotomia”, pela incindibilidade entre direito e fatos e entre
interpretação e aplicação. Mas, quero avançar. E enfrentar outra questão
que corre paralela.
Legalistas versus pragmatistas?
Leio em O Globo artigo de Eduardo Jordão e Diego Werneck Arguelles, intitulado O STF observado.
O artigo é interessante, porque critica o modo como as votações são
conduzidas, como, por exemplo, ocorre a incidência da pressão da opinião
pública. Os articulistas mostram a instabilidade dos compromissos dos
membros do STF, verbis: “Legalistas convictos buscam soluções
muito além do texto da lei. Históricos pragmáticos, orgulhosos de sua
flexibilidade e bom senso, tratam as palavras da lei como se delas não
pudessem se desvencilhar”.
Tenho “batido” nessa tecla de há muito.
Tenho denunciado essas “idas e vindas” nas posições dos ministros (e
não só deles). Por vezes, a letra da lei... em outras, os limites
semânticos são implodidos... Em todos os meus livros denuncio essa
problemática. Mas não se trata apenas de opor, como de certo modo
fizeram os dois articulistas, “legalismo versus pragmatismo”,
até porque não há dados consistentes acerca de quem são os “legalistas” e
quem seriam os “pragmatistas”. Isso seria simplificar a discussão.
Seguramente, há munição para os dois lados, afinal, o decisionismo é um
animal camaleônico e imprevisível. Ele usa o Anel de Giges (quando quer,
desaparece sem deixar rastros). É o predador implacável da integridade e
coerência do Direito. E sem integridade e coerência dos intérpretes, de
nada serve a Constituição. Talvez fosse isso que os articulistas
quisessem dizer. O que deve ser frisado é que há algo mais profundo e
que esconde essas falsas “ditricotomias” “consciência versus voz das ruas versus lei.
Refiro-me
à ausência da discussão acerca de uma teoria da decisão. Ou seja, para
além do problema de “como se interpreta”, que por si já é um problema
(basta ver o uso abundante da metodologia de Savigny misturada com
componentes da jurisprudência dos valores e dos interesses), tem-se a
questão de “como se decide”. Dessa arte, quero registrar, de novo, que
toda essa problemática da fragmentação das decisões — e, portanto, da
falta de coerencia e integridade detectável nessas idas e vindas entre
“legalismos e pragmatismos” — advém do fato de que recepcionamos
equivocadamente (no mínimo) cinco teses ou posturas, conforme explitei
na coluna passada (clique aqui para ler).
Mas
é a quinta recepção que me parece a mais perigosa, porque demonstra uma
algaravia mais explícita, uma espécie de “flambagem transteorética”.
Refiro-me à mera tentativa de superação do tal “legalismo” exatamente
por posturas pragmáticas ou proto-pragmáticas, algumas delas
envernizadas sob o rótulo de neoconstitucionalismo, em que simplesmente
se (re)coloca a moral no direito a partir dos princípios entendidos
como...valores. Bingo. E o resultado é desastroso, ou seja, na medida em
que a moral é contingente, cada juiz ou membro de tribunal “repõe” a
moral no Direito a partir de seus pressupostos pessoais (donde a minha
crítica à questão da “consciência”...!). Despiciendo lembrar que há
centenas de dissertações, teses e livros que caem nessa armadilha.
Veja-se que para além da operacionalidade stricto sensu,
a doutrina indica “o caminho” para a interpretação, colocando a
consciência ou a convicção pessoal como norteadores do juiz,
perfectibilizando essa “metodologia” de vários modos. Ou seja, criou-se
uma falácia naturalizada, pela qual é “normal” que o judiciário decida
conforme o que cada membro pensa a respeito do direito... E isso
“aparecerá” de várias maneiras, como na direta aposta na: a)
interpretação como ato de vontade do juiz ou no adágio “sentença como sentire”;
b) interpretação como fruto da subjetividade judicial; c) interpretação
como produto da consciência do julgador; d) crença de que o juiz deve
fazer a “ponderação de valores” a partir de seus “valores”; e)
razoabilidade e/ou proporcionalidade como ato voluntarista do julgador;
f) crença de que “os casos difíceis se resolvem discricionariamente”; g)
cisão estrutural entre regras e princípios, em que estes
proporciona(ria)m uma “abertura se sentido” que deverá ser preenchida
e/ou produzida pelo intérprete.
Sigo, então. Por vezes, parece — e
isso me preocupa sobremodo — que pesquisadores do Direito resvalam na
aceitação-institucionalização da “vontade” como fundamento da decisão
(por exemplo, quando se coloca frente a frente “legalismo e
pragmatismo”, já se está, inexoravelmente, no olho do furacão). Algo do
tipo “já-que-os-ministros-decidem-como-querem,
segundo-e-seguindo-suas-ideologias-e/ou-preferencias-pessoais-ou-as-respectivas-consciências
(seja lá o que isso quer dizer)”, temos (nós, a doutrina) que estudar
essas suas preferencias para argumentarmos estrategicamente... Ou,
ainda, “devemos nos limitar a produzir as melhores condições para a
livre emanação da vontade do intérprete, ou entender os momentos
inoportunos para sua manifestação...”. Assim, se o juiz ou ministro
gosta de estrogonofe, devemos fazer de tudo para que a ele seja servido
esse prato no dia do julgamento. Se ele torce para o Flamengo, não
devemos pedir liminar no dia seguinte à demissão do Mano Menezes... Peço
que me incluam fora dessa. Se a aplicação do Direito é um ato de
vontade, ele não é mais Direito. É um jogo de poder. E nesse banquete, a
choldra fica de fora. Só participam os do andar de cima, os que tem
acesso à katchanga (real). Como somos paradoxais no Brasil,
pois não? Falamos tanto em democracia e, no entanto, ao fim e ao cabo,
jogamos tudo nos braços da moral, da política e da economia. Do Direito,
nada resta. Aliás, para quem não entendeu isso ainda: quem sustenta que
a interpretação jurídica é um ato de vontade ou coisa do tipo “a
decisão está na consciência do intérprete”, está dando um tiro no pé... a
não ser que o defensor da ideia tenha o poder de decidir. Se, por
exemplo, um advogado pensa assim, a pergunta que deve ser feita ao
causídico é: para que você serve, afinal? O mesmo se deve perguntar a
quem escreve ou tem pretensões doutrinárias... Afinal, se tudo se
resolve na consciência ou na vontade do sujeito-intérprete, tudo o que
você fizer será supérfluo. Peço perdão pela minha rudeza. Não quero
retirar a ilusão de tanta gente...
Sigo. E o faço para dizer que,
pensar que a decisão judicial é (ou não passa de) um ato de vontade (de
poder), é, sem tirar nem por, dar razão à Kelsen (na parte da aplicação
do direito, ou seja, no “andar de baixo” de sua teoria — peço,
encarecidamente, que os leitores leiam as poucas páginas do famoso 8º
capítulo da Teoria Pura do Direito). E é também dar razão a juristas
como Richard Posner, um pragmati(ci)sta da cepa, que odeia princípios e
acha que a autonomia do Direito não serve para nada. Só que isso
transforma o Direito em uma mera racionalidade instrumental, algo à
disposição do intérprete. Mais do que isso, trata-se da derrota da
teoria do direito e a vitória da retórica (ou da mera retórica). O
direito se transforma em um jogo de cartas marcadas, como já denunciava
Warat há décadas.
Decisão é, mesmo, um ato de vontade?
Vou tentar mostrar isso de outro modo. Há algum tempo, fiz um
debate com o penalista da escola crítica do Direito Penal brasileiro, o
estimado Paulo Queiroz. Ele havia publicado um artigo (O que é direito? — clique aqui para ler) que me assustou sobremodo, em que dizia: “sempre
que condenamos ou absolvemos, fazemo-lo porque queremos fazê-lo, de
sorte que, nesse sentido, a condenação ou a absolvição não são atos de
verdade, mas atos de vontade”.
E disse mais o penalista baiano:
“parece evidente que, ordinariamente, por mais que tenhamos motivos,
legais ou não, para condenar, condenamos porque queremos condenar e
porque julgamos importante fazê-lo; inversamente: por mais que tenhamos
motivos, legais ou não, para absolver, absolvemos porque queremos
absolver e julgamos importante fazê-lo”.
Veja-se: embora
substancialmente a contribuição crítica de Queiroz seja inegável, neste
ponto corre o risco de provocar retrocessos democráticos nas
manifestações processuais de Promotores, Juízes e Ministros do STF. No
livro O Que é isto – decido conforme minha consciência, rebato
essa tese de Queiroz, que, aliás, não difere daquilo que o ministro
Marco Aurélio tem dito acerca do interpretação do Direito (a de que a
interpretação é um ato de vontade — por exemplo AI 252.347 e AI 218.668,
ou seja, nem mais, nem menos do que diz Kelsen no 8º Capitulo de sua
TPD).
Como contraponto, sustento que acreditar que a decisão
judicial é produto de um ato de vontade (de poder) nos conduz
inexoravelmente a um fatalismo. Ou seja, tudo depende(ria) da vontade
pessoal (algo do tipo “se-o-juiz-quer-fazer,-faz; se-não-quer,
não-faz...!). Logo, a própria democracia não depende(ria) de nada para
além do querer de alguém...!
Eis o meu repto, meio solitário, bem
sei. Tudo o que venho escrevendo serve para dizer: “Fujamos disso”!
Aliás, a hermenêutica surgiu exatamente para superar o “assujeitamento”
que o sujeito faz do objeto (aliás, isso é o que é a filosofia da
consciência... – ou a sua vulgata voluntarista!). Toda a minha aula de
terça-feira à noite foi sobre isso: sobre o paradoxo que representa o
Direito. Se se achar que a decisão é um ato de vontade de poder, então
não deveríamos apostar no Direito. Deveríamos apostar na política, na
sociologia, nas estratégias, na guerra, em qualquer coisa. Ora, o
Direito foi feito justamente para se opor e controlar o poder, a
política, etc. Se ele for um instrumento de poder, pessoal ou coletivo,
ele não é Direito... Ele é arbítrio. E arbítrio é o contrário de
Direito. Por isso, ser jurista é ser otimista. Meu amigo Paulo Queiroz e
os que pensam como ele (por exemplo, o ministro Marco Aurélio), são
pessimistas. Fatalistas. Kelsen também foi um pessimista. Por isso ele
relegou a aplicação do direito a um ato de segundo nível, a mera
“política jurídica”. Não penso que deva ser assim. Ou sejamos todos
políticos. Azar será daqueles que não tem poder... Se me entendem o que
quero dizer!
Por que o Direito é, hoje, a soma de todos os nossos medos?
Ao longo dos anos, minha preocupação tem sido exatamente com o
debate contemporâneo “democracia-constitucionalismo”. São compatíveis?
Orgulhosamente, digo: Sim! Porque sou um otimista. Mas disso exsurge um
dilema: para impedir que a jurisdição constitucional, pelo qual se
controla a constitucionalidade, seja transformada em uma
judiciariocracia, é fundamental que controlemos as decisões judiciais.
Isso implica abandonar as teses que sustentam o poder discricionário
(que não passa de um ato de vontade). Democracia e discricionariedade
são incompatíveis. Daí que é espantoso — mas muito espantoso — que os
projetos dos Códigos Processuais mantenham esses anacronismos (como, por
exemplo, a livre apreciação da prova). É espantoso que se queira commonlizar o direito brasileiro sem uma adequada teoria que trate da decisão judicial.
Para
ser mais claro e simples: de que adianta (ou de que adiantou) colocar
na Constituição (e na legislação) as conquistas de todos os matizes se,
no momento da concretização, dependemos da vontade individual ou de uma
dada vontade individual (ou do que diz a consciência)?
Pergunto:
tem sentido o país parar e ficar em suspenso esperando que um ministro
desempate uma votação e não sabermos o que ele irá dizer? Suspense!
Pergunto:
que Direito é esse que não nos fornece o mínimo de previsibilidade?
Quer dizer que, se estivéssemos discutindo o aborto e o placar estivesse
em 5x5, teríamos que ficar torcendo — dependendo de que lado
estivéssemos — pelas crenças pessoais de sua excelência? Ou torcer para
que seu almoço ou seu dia tenham sido do seu agrado? Torcer pela bondade
dos bons?
Demo-cracia é isto? Mas, então, o que é isto, a democracia?
PS: se me perguntarem o que é isto, a dogmática jurídica dominante, respondo, em uma linha: é a soma de todos os nossos medos!
Felicidades. E boa sorte. De novo!
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