Diego Nardi
Vivemos em um mundo separado por
muros. Dimensão concreta da exclusão, o muro é a condição da emergência e do
avanço de discursos de ódio que, para além dos partidos de extrema direita,
parecem povoar o imaginário daqueles/as que almejam segurança.
Separam-se casas e ruas.
Separam-se bairros e escolas. Separam-se centro e periferia. Separa-se a cidade
e separam-se as cidades. Separam-se estados, países, regiões e continentes.
Muros, milhares deles, todos os dias erguidos na concretude do espaço habitado
ou nos discursos de deslegitimação de subjetividades outras fundadas em uma não
identidade com nossa tradição e que resiste (ou tenta resistir) a ela. Muros
erguidos pelo silêncio. E por trás dos muros que ajudam a construir, pessoas
buscando o conforto e a segurança que o convívio com o estranho, o estrangeiro,
lhe priva pela insistente recusa em/incapacidade de confiar na precedência da
solidariedade humana, como diz Bauman. Desamparados/as, construímos distâncias
intransponíveis entre.
E o desejo inscrito nos muros é o
de afastar o mal-estar causado pela presença do estrangeiro.
Ser estrangeiro é ser um não
pertencente. O estrangeiro traz em si a marca do estranhamento que faz dele
sujeito e ao qual é sujeitado. Em seu movimento, o estrangeiro se fixa, ainda
que precariamente, em espaços aos quais não pertence diretamente, e que lhe
privam da rede de referências que constituem seu orientar no mundo. Longe do
conforto e proteção da morada, o estrangeiro passa a caminhar nesses espaços
desconhecidos e, aos poucos, preenche as distâncias com significados.
A cidade para o estrangeiro não
se apresenta como uma totalidade ou com a referencialidade com a qual se
apresenta a um local. Cada nova rua integra-se ao que antes era vivido com um
todo. O estrangeiro vaga pela cidade, estranhando-a. Mas a cidade não é um puro
espaço vazio: ela é o lugar habitado por aqueles/as com os/as quais ela não
compartilha a mesma rede de referenciais.
Diferentes identidades, diferentes usos do espaço urbano.
Percorrer a cidade é sujeitar-se
a encontros, encruzilhadas, cruzamentos. Um profundo mal estar. O não
pertencente, o estrangeiro, é o inesperado, a irrupção do estranho, daquele
diante do qual não se sabe o que falar, como se portar, afinal, deve-se ou não
se deve tocar, olhar, sorrir, cumprimentar? Ao passo que o estrangeiro mesmo,
deslocado pelo não pertencimento e privado da rede de referenciais comum aos
nativos, vê-se desorientado e, também, estranho.
Ser estrangeiro é, atualmente,
ser desconfiado. É nele que exorcizamos esse mal-estar com o qual não sabemos
lidar, consequência do fato de ser o estrangeiro dono de uma opacidade
perturbadora, cuja “presença em nosso campo de ação sempre causa desconforto e
transforma em árdua empresa a previsão dos efeitos de uma ação, suas
possibilidades de sucesso e insucesso”.
Esse mesmo estrangeiro que foi
figura central das primeiras experiências urbanas da baixa idade média, e cuja
própria condição, muitas vezes, conferia-lhe o respeito necessário para que os
destinos de uma cidade lhe fossem confiados, vê-se agora acuado em guetos e
cada vez mais impossibilitado de convivência comum nos espaços onde se fixa:
sobrepõem-se cidades, trajetórias que muitas vezes se cruzam, mas nunca se
encontram.
Viver dentro de muros, pertencendo
a um “ambiente uniforme – em companhia de outros ‘como nós’, com os quais é
possível ‘se socializar’ superficialmente, sem correr o risco de ser
mal-entedido e sem precisar enfrentar a amolação de ter de traduzir um mundo de
significados em outro” (BAUMAN, Confiança e Medo na Cidade) nos priva das
capacidades “necessárias para lidar com a diferença” (idem).
Recusamos o mal-entendido e o
mal-estar que com ele vem. Não sabemos lidar com distâncias culturais, não
sabemos traduzir mundos sem calá-los, não permitimos aos outros mundos a
palavra. Identificamos nós mesmos o estrangeiro e, nessa divisão, erguemos
nossos muros.
A derrubada dos muros passa,
talvez, pela aceitação do mal-entendido como uma dimensão indispensável das
relações sociais. Ao invés da recusa, voltemo-nos a incorporação do
mal-entendido como uma possibilidade verdadeira de diálogo, pois é a partir
dele que contextos referenciais distintos entram em contato e se diferenciam
por que falam ao invés de serem falados, abrindo a possibilidade de uma
tradução que seja capaz de devolver a fala cujas representações tentam roubar.
Para Boaventura, a tradução
“consiste no trabalho de interpretações entre duas ou mais culturas (...) com
vista a identificar preocupações ou aspirações semelhantes entre elas e as
diferentes respostas que lhes dão”. A tradução é, sobretudo, uma capacidade,
entendida não como uma habilidade inata, mas, antes, como uma conquista
realizada pela disposição em viver junto, em não recusar a diferença pelo
mal-estar que ela gera diante da opacidade que se traduz na possibilidade do
mal-entendido. Inexistindo a disposição política pelo viver junto sem supressão
das diferenças, a tradução é uma impossibilidade. Dito isso, fundamental é
nunca perder de vista a dimensão política da tradução. Afinal, o mal-entendido
nada mais é que o resultado do choque entre distintas perspectivas, distintos
lugares de fala, distintas referências sociais, e, sobretudo – em um mundo
pós-colonial – o choque entre perspectivas marcadas por relações desiguais de
poder. Dentro de uma perspectiva pós-colonial, ao se buscar desconstruir os
lugares privilegiados, as distintas perspectivas devem permanecer,
desestabilizando narrativas totalizantes e evidenciando as contradições que
marcam as identidades opressoras. É justamente a permanência e a relação entre
diferentes perspectivas - situação que
emerge a partir do mal entendido – que a tradução busca negociar.
A tarefa política da tradução é
não apenas permitir que as vozes subalternas resistam à tradução perversa da
qual são alvo, mas, sobretudo, através da resistência a essas traduções,
possibilitar que a auto-tradução seja possível. Além disso, é fundamental
permitir que o acerto acerca das intepretações e dos significados que surgem a
partir do esforço compartilhado de tradução sejam negociados a partir de
lugares não privilegiados. Aqui não se trata do tradutor. Ele deve sair de cena
para que haja a possibilidade da construção política conjunta a partir do
mal-entendido. Só há tradução sem tradutor.
A tradução é nada mais que esse
esforço em possibilitar que o político surja não como exercício do poder, mas
como uma possibilidade real de desconstruir os limites que separam o externo e
o interno de uma narrativa que pretende centralizar em si seu fundamento ao
impor limites que, todavia, no momento mesmo em que são fixados, já se
desestabilizam e fazem de sua pretensão um projeto falho. À tradução, cabe
romper com os limites das cadeias e contextos pré-determinados, permitindo
cadeias de significações infinitas que se formem a partir dos usos das palavras
dentro de contextos compartilhados. Com isso, supera-se princípios de
classificação asfixiantes, onde o mal-entendido que emerge da opacidade (o qual
se manifesta, sobretudo, na linguagem) possa dar espaço a novas formas de
contar histórias (subtraídas).
Talvez, o que a tentativa de
tradução nos revela é que aceitar o mal entendido para superá-lo requeira, de
fato, a construção conjunta de um sistema de referência totalmente novo, pois,
somente assim, poderemos nos defrontar coletivamente com “a difícil
aprendizagem de nomear o mundo” da qual já falava Paulo Freire.
No entanto, suspeito que o mal
entendido é insuperável: é ele o próprio movimento de superação que nos
permitirá construir consensos sem os quais viver junto é uma real
impossibilidade, sem os quais não nos será permitido ser estrangeiro diante um
dos outros e, apesar disso, pertencermos a uma comunidade. Em outras palavras,
manter o mal-entendido como possibilidade de negociação de sentidos, mas uma
possibilidade despojada de um mal-estar que nos prende dentro de tantos muros.
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