segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Povo de Rua: um Grito de Esperança por Justiça e Paz*




                                                 José Geraldo de Sousa Junior
Reitor da UnB (2008-2012), membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília

                Na conclusão de seu estudo preliminar apresentado à Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília, com o objetivo de abrir perspectivas de compreensão para orientar o agir da entidade, o professor Melillo Dinis do Nascimento, depois de elaborar uma consistente cartografia do processo de formação e de desenvolvimento da cidade, expõe os desafios que precisam ser confrontados em face de sua  funcionalidade.
                Trata-se, diz ele, de dar-se conta da “crise da cidade, de seus serviços, de um modelo de sociedade, de sua economia, de suas instituições, de sua política, de uma cultura, de seu meio ambiente, de sua juventude, de uma gente...” e descortinar pressões “por mudanças, por esperanças, por diálogos...e por justiça e paz!”.
                A referência a esperança e diálogo é uma resposta imediata à convocação feita pelo Papa Francisco em sua recente visita ao Brasil. De fato, Sua Santidade, propondo um “diálogo construtivo”, apto a reabilitar a própria Política, acentuou o seu valor metodológico para enfrentar dificuldades de nosso presente social, que nos deixam atônitos, sobre as tarefas solidárias que nos interpelam: “Entre a indiferença egoísta e o protesto violento, há uma opção sempre possível: o diálogo. O diálogo entre as gerações, o diálogo com o povo, a capacidade de dar e receber, permanecendo abertos à verdade”.
                Ainda não podemos dizer totalmente superada entre nós a tentação de tratar a questão social como questão de polícia. A resposta à ocupação da cidade pela população pobre continua, hoje, a considerar esses espaços interditados à livre circulação dos subalternos, destituídos dos direitos modernos e da cidadania republicana.
                Quando prefeito de São Paulo o ex-Presidente da República Washington Luís, justificava a criação de parques na cidade (Várzea do Carmo, 1916), pela necessidade de higienização moral da cidade, livrando-a da “vasta superfície chagosa, escalavrada, feia e suja”, formada pelos “restos inomináveis de vencidos de todas as nacionalidades em todas as idades, todos perigosos”.
                Desde então, as políticas de restauração ou de revitalização dos centros urbanos são, em boa medida, prisioneiras da tentação administrativa de livrar a cidade das populações de rua, segundo essa lógica, dificultando o seu acesso aos espaços de uso – viadutos, praças, marquises – com edificação de obstáculos arquitetônicos e com repressão direta.
                A recusa de reconhecimento aos direitos de uso da cidade faz-se também na forma de um fascismo societal desumano, com a violência do extermínio na forma de chacinas frequentemente divulgadas e de atos de barbárie, como a queima de mendigos. Essas práticas tornam as classes sociais iguais apenas na intolerância e no desprezo aos excluídos não percebidos em sua alteridade e vistos, assim, na lógica econômica do egoísmo como excedentes e, portanto, descartáveis.
                É certo que o protagonismo social age por preservar o direito republicano, mesmo na pobreza, do uso da cidade, como expressão de cidadania. Não só as populações de rua se organizam para defender seu modo de vida e suas formas de apropriação e de uso da cidade, como se constituem alianças, entre elas e as organizações da sociedade civil, para garantir esses direitos.
               
Dessas alianças surgem proposições para novas abordagens do problema, firmes na convicção da necessidade de diálogo confiante entre os moradores e trabalhadores de rua, convencidos de que seu modo de vida tem que ser considerado no processo de inclusão social.
                Insere-se nessa perspectiva de aliança a ação pastoral à qual é solidária a Comissão de Justiça e Paz, firme no objetivo de fazer avançar a motivação da Pastoral do Povo da Rua e dos Grupos Eclesiais que atuam junto à população de rua na Arquidiocese de Brasília, sobretudo em função do aumento constante dos casos de violação dos direitos das Pessoas em Situação de Rua (PSR) e Catadores de Material Reciclável (CMR), especialmente quando se descortina um cenário de incremento nocivo de ações decorrentes da gestão de megaeventos esportivos que estão se realizando e ainda se realizarão em nossa cidade.
                É preciso não perder de vista a reserva de dignidade que humaniza o sujeito que se encontra na condição de povo de rua, circunstancialmente, recentemente ou até permanentemente, e as dificuldades que acabam por afetar a sua realidade, como nos recorda um morador de rua, licenciado em pedagogia na UnB ao final de 2012, em seu trabalho de conclusão de curso (As Dificuldades dos Moradores de Rua no Distrito Federal de se Inserirem por Meio da Educação Formal). Em seu texto, Sérgio Reis Ferreira revela essa dramática realidade de exclusão social vivenciada por esse segmento da população, “na perspectiva da violação de direitos e das estratégias de sobrevivência desenvolvidas”.
                Daí o relevante trabalho que no Distrito Federal vem sendo implementado pela Secretaria de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda – SEDEST, atenta ao núcleo altamente promissor de possibilidade alavancadora do engajamento produtivo desse segmento. Com efeito, como demonstra a pesquisa “Renovando a Cidadania” (HTTP://noticias.r7.com/distrito-federal/noticias/71-dos-adultos-moradores-de-rua-do-df-trabalham-para-o-proprio-sustento-20121119.html), das 2.512 pessoas que vivem em situação de rua no Distrito Federal, 71% dos adultos trabalham para o próprio sustento, sendo que os casos de drogadição são minoria e, o maior percentual (23,3%), diz respeito a pessoas que romperam vínculos familiares.
                Importante é que as abordagens rejeitem estratégias de recolhimento forçado, ou seja, de retirada compulsória dos moradores de rua, não só pela violência que elas carregam, como pela falta de complemento social em termos de programas públicos (saúde, atendimento a usuários de drogas, abrigos, atenção à família, educação, alternativas de produção financiadas), mas pela absoluta ausência de perspectiva emancipatória que abra tais abordagens a uma cultura de cidadania e de direitos.

* Uma versão reduzida deste texto foi publicada com o titulo Grito de Esperança por Justiça e Paz na edição de 05/09/2013, pág. 21, Seção Opinião, do Correio Braziliense

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