quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O Caso Milton Santos: o desafio continua

Jorge Luiz Souto Maior(*)
Quando, em 2011, a sociedade brasileira se viu aturdida com o desfecho que foi dado ao caso Pinheirinho, em São José dos Campos, muita discussão se produziu a respeito dos fundamentos jurídicos da decisão judicial, que determinou a reintegração de posse do terreno onde estava instalada a comunidade, e da legalidade da ação policial que se seguiu, incluindo os métodos de ação.
Sem retomar todos os aspectos do debate, já bastante difundido, um argumento que insta retomar, para tratar do caso Milton Santos, é o de que o direito de propriedade, para ser preservado, não deve justificar atos de violência, promovidos pelo Estado contra o cidadão, pois cumpre ao Estado, igualmente, defender o direito à vida e a integridade de todos os cidadãos, constituindo, por si, uma violência retirar, à força, pessoas de suas residências, deixando-as ao relento e sem condições de uma sobrevivência digna, violência esta que se efetivaria para tentar reverter, de forma abrupta, uma situação fática constituída ao longo de anos, restituindo “limpa” a propriedade a seu dono.
Lembre-se, ainda, que a propriedade, juridicamente considerada, deve cumprir uma função social. Não se trata de negar o direito de propriedade, mas de compreender que do ponto de vista do direito a propriedade não se justifica em si, mas pela função social que cumpre, e que ao Estado democrático de direito social cabe, também, garantir a todos os cidadãos, por ações afirmativas, a dignidade (inciso III, do art. 1º., da CF), tendo sido relacionados, no artigo 6º da Constituição Federal brasileira, como Direitos Fundamentais, os seguintes valores: a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.
Em termos constitucionais, a própria ordem econômica, que deve ser fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: da função social da propriedade; da redução das desigualdades regionais e sociais; e da busca do pleno emprego (art. 170, caput, incisos II, III e VIII).
Não há como negar, portanto, que a ordem jurídica nacional esteja pautada pelos preceitos do Direito Social, cujos objetivos são: construir a justiça social e efetivar a democracia. Impera a concepção de um regramento que tem por conseqüência a melhoria da posição econômica e social de todos e a preservação da dignidade do sentido da elevação da condição humana.
No Direito Social, ao se fixar a prevalência da solução dos problemas postos pela questão social, que é abertamente reconhecida como tal, o postulado da justiça social aparece como condição de sustentabilidade de todo o sistema.
A função do Direito Social é distribuir a riqueza coletivamente produzida, para fins não apenas de eliminar, por benevolência, a pobreza, mas de integrar todos ao projeto de uma sociedade na qual todos possam, efetivamente, adquirir, em sua concepção plena, a cidadania, experimentando a beleza da condição humana, sendo certo que um dos maiores sentimentos que agridem o ser é a injustiça.
A defesa concreta da dignidade humana é a expressão máxima do Direito Social, na medida em que vislumbra a formalização das bases existenciais necessárias para que esses valores humanos sejam efetivados, sendo de se destacar que a maior relevância do Direito neste assunto diz respeito às pessoas que estão em posição inferiorizada na sociedade dos pontos de vistas político, cultural, social e econômico. A racionalidade imposta pelo Direito Social deve permitir que se vislumbrem as angústias, as dificuldades e as restrições que atingem todas as pessoas que integram a sociedade, sobretudo, as que são mais vulneráveis economicamente, incentivando a prática de atos voltados à efetiva defesa dos seus direitos.
No contexto enunciado, a Reforma Agrária apresenta-se como instrumento relevante tanto para que o Estado efetive suas obrigações jurídicas no campo social quanto para garantir que a propriedade, no âmbito rural, cumpra a sua função social, muito embora, ao longo de décadas, as forças políticas brasileiras tenham feito vistas grossas ao tema.
Juridicamente, se os proprietários têm o direito de defender seu patrimônio, não se pode olvidar que esta defesa se faz por intermédio do direito e é evidente que o direito se integra ao problema como um todo e não parcialmente, no limite restrito de um interesse. Assim, por aplicação do próprio direito, há de se verificar se a propriedade cumpre sua função social e em se tratando de uma propriedade rural, há de ser verificado o aspecto pertinente à produtividade (conjugação dos incisos XXII e XXIII, do artigo 5o., da CF e incisos II e III, do art. 170, CF, e conforme expressamente previsto no art. 184, da CF), gerando, como efeito jurídico possível, na hipótese de ser improdutiva, a desapropriação, mediante indenização prévia e justa (art. 184). Os incisos III e IV do art. 186 da Constituição Federal, além disso, condicionam o cumprimento da função social da propriedade agrária ao respeito das disposições que regulam as relações de trabalho e à exploração que favoreça ao bem-estar do trabalhador rural.
Pois bem, somando-se todos esses preceitos, não pode passar despercebido à sociedade brasileira o problema que envolve os moradores do assentamento Milton Santos, em Americana/SP. Neste caso, os moradores foram assentados no local, com a ciência do INCRA, em 2006, após o Presidente da República, Luís Inácio da Silva, ter assinado termo de concessão do terreno (sítio Boa Vista), para fins de reforma agrária, sendo que a perda da posse do terreno, pelos proprietários, estava ligada a dívidas trabalhistas e previdenciárias.
Após isso, o assentamento Milton Santos se instituiu, abrigando várias famílias, que passaram a conferir às terras uma função social relevante, inclusive no aspecto da produção de alimentos sem o uso de agrotóxicos. A comunidade ali instalada hoje é responsável pelo fornecimento de mais de 300 toneladas de alimentos para a região metropolitana de Campinas.
No final de 2012, no entanto, veio a notícia de que o direito à posse do terreno foi restituído aos proprietários na ação judicial, em razão de ter havido o pagamento da dívida da qual originou o ato processual expropriatório, tendo havido, na seqüência, a publicação de decisão judicial, determinando a desocupação.
Mas, a situação consolidada no local, que envolve a sobrevivência de várias pessoas e mesmo os projetos de vida que tiveram início com o apoio institucional do próprio Estado, não pode ser simplesmente revertida como se nada tivesse ocorrido. Afinal a situação presente envolve uma enorme gama de valores jurídicos, que não podem ser “apagados”, como se nunca tivessem vindo à tona.
A não visualização desse feixe de relações, aliás, é o que mais impressiona quando se trata, na nossa tradição cultural, de conferir validade a um valor: a propriedade. Ainda que se visualize o fundamento para restituir a posse, vez que a dívida, que pendia sobre o bem, foi quitada, não dá para, simplesmente, apagar da história todos os fatos que decorreram desde então, que fizeram incidir vários outros direitos de diversas outras pessoas, direitos estes igualmente garantidos pelo Estado e muitos deles inseridos na órbita dos direitos fundamentais. Não se pode esquecer, igualmente, que a ocorrência desses fatos se deu por responsabilidade dos proprietários, que detinham, à época, dívidas socialmente relevantes. Pagar, posteriormente, as dívidas não é ato suficiente para restituir os fatos ao estado em que antes se encontravam.
Nesse meio tempo, principalmente nos últimos seis anos, 68 famílias foram licitamente instaladas no local, investiram na produção, firmaram compromissos e estabeleceram seus projetos de vida. Devolver a posse das terras aos proprietários representa, ao mesmo tempo, interferir nessas outras esferas jurídicas, retirando dessas pessoas parte de suas vidas. Destaque-se que não se pode debitar a essas famílias, em nenhum aspecto, qualquer parcela de culpa pela situação, muito pelo contrário.
Então, cabe ao Estado cumprir a sua função política e jurídica de estabilizar a situação, conferindo a essas pessoas a titularidade da posse, com base nos preceitos jurídicos atinentes à Reforma Agrária, indenizando, de forma justa, os proprietários, até porque, em não o fazendo, estaria o governo agindo na contramão de sua obrigação, instituindo uma espécie de “antirreforma Agrária”, representada pela destruição de um assentamento, onde várias pessoas, coletivamente, vivem e produzem, promovendo-se, assim, a destruição de inúmeros valores sociais e humanos em favor de apenas um, a propriedade, desvinculada, inclusive, de qualquer motivação social.
Ainda que por absurdo se considere a possibilidade disso ocorrer, esse ato reverso da função social do Estado teria que ser, no mínimo, precedido do pagamento de indenizações, decorrentes dos prejuízos morais e materiais experimentados, a todos que se viram envolvidos numa situação que, hoje, apareceria como um engodo, patrocinado pelo INCRA e pelo então Presidente da República, Luís Inácio da Silva, sendo certo que o recebimento dessa indenização, diante da natureza alimentar que a integra, não pode ser submetido às iniciativas individuais de se recorrer ao Judiciário. As indenizações, ademais, precisam ser acompanhadas das obrigações de fazer pertinentes à moradia e demais meios de subsistência, como acesso à escola, ao trabalho etc.
Assim, na hipótese de se querer ir adiante com o processo de reversão do assentamento, o prejuízo mínimo necessário seria o do juiz, no próprio processo em que se discute a posse do bem, fixasse as obrigações que decorreriam ao Estado, que é parte no processo, vez que um dos interessados é o INSS, condicionando o cumprimento da reintegração à efetivação das medidas correspondentes, fixando desde já o valor das indenizações e o conteúdo das obrigações de fazer, com prazo específico, sob pena de, não sendo atendidas, declarar a expropriação do bem, fixando o valor a ser pago pelo Estado, a título de indenização, aos proprietários.
De todo modo, até por conta das muitas objeções de ordem processual que se podem vislumbrar com relação às proposições supra destinadas à imediata efetivação de indenizações aos assentados, o ideal é a preservação do assentamento e das relações jurídicas já consolidadas, levando adiante a desapropriação, para fins de Reforma Agrária, já iniciada.
Considerando o feixe de relações jurídicas envolvidas, o único efeito impossível de ocorrer é o que se anuncia da mera reintegração de posse, mediante ação policial, para retirada das 68 (sessenta e oito) famílias do local, afastando-as de seu sustento, conduzindo-as ao relento e negando-lhes a própria condição humana, com esquecimento de todos os fatos que as conduziram até o local e ao momento presente.
O desafio, no entanto, não está em encontrar fundamentos jurídicos para preservar os interesses envolvidos. O desafio é o de conseguir visualizar exatamente a ocorrência dessa contraposição jurídica de interesses, como se o direito de propriedade fosse o único valor a ser preservado, sobrepondo-se a qualquer outro interesse que, assim, nem jurídico seria.
A dificuldade é mais sociológica que jurídica. O que provoca nebulosidade na questão, turvando a vista, talvez seja o “medo” do que os exemplos das ações coletivas, iniciados por um processo de Reforma Agrária, produzam em termos multiplicadores, incentivando novas ações. Nesta perspectiva, importa muito mais destruir o assentamento do que, propriamente, defender a propriedade, até porque, conforme se anuncia, aos proprietários do terreno, onde se situa, ironicamente, o Sítio Boa Vista, propriedade é que não falta.


(*) Juiz do trabalho, titular da 3ª. Vara do Trabalho de Jundiaí. Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP. Membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

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