O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Organizadores: SOUSA JÚNIOR, José Geraldo. et al. (Resenha)
Bruna
Martins Costa[1]
Em uma das primeiras
aulas da disciplina O Direito Achado na Rua, oferecida pelo professor
José Geraldo de Sousa Júnior nos programas de pós-graduação em Direito e
Direitos Humanos da Universidade de Brasília (UnB), compartilhei uma
inquietação sobre de que forma podemos nos reapropriar da rua. Parti do
entendimento de que ela foi expropriada, pelos conservadores, reacionários,
mantenedores do status quo, de quem tem na rua seu local de vida, de
lazer, de sobrevivência, de direito, como, por exemplo, movimentos sociais,
pessoas periféricas, camelôs, vendedores ambulantes, pessoas em situação de
rua, artistas, trabalhadores, etc.
Fui enredada em uma
armadilha: ao tentar costurar e fortalecer o pleito de retomada do espaço
público, tratei esse locus a partir de uma visão maniqueísta, como se
nós, pessoas de esquerda, progressistas, militantes, fossemos os bons,
enquanto os “usurpadores” seriam os maus. Vi-me traída em minha própria
inquietação, sob risco de endossar um discurso purista, supostamente
progressista.
O professor da
disciplina, José Geraldo de Sousa Júnior, trouxe para o debate, a partir do método
infradialético, de Roberto Lyra Filho, o apontamento de que a rua é a contradição,
é a tensão, é a impureza. Nós disputamos e tensionamos a rua, numa performance
simbólica. A rua é o “lá fora”, é onde mora o acontecimento. Na rua, não há
coisa alguma que não seja passível de contradição. É o espaço do privado querendo
ser público. É a “apropriação possessiva da normatividade”, conforme pontua Boaventura
de Sousa Santos.
A rua não é um lugar
cativo de O Direito Achado na Rua; ele extravasa esse limite. Ele pode
ser achado também nos becos, nas florestas, nos quilombos, nas favelas, nas
encruzilhadas, nos hospícios, nas aldeias, nos cárceres, nas águas dos rios e
mares. Os artigos que compõem essa coletânea nos dão uma pista sobre a
pluralidade dos lugares e territórios que são fonte de O Direito Achado na
Rua. Essa coletânea de textos também nos mostra que, mesmo tendo
transcorrido 30 anos do que podemos tomar, pedagogicamente, como seu “início”, O
Direito Achado na Rua continua relevante e atual.
O Direito como “expressão
de uma legítima organização social da liberdade” constitui o marco do projeto O
Direito Achado na Rua. Nascido no Brasil, durante os diálogos da Assembleia
Constituinte, no final da década de 1980, trata-se de um projeto que se pautou
na possibilidade de formulação de uma nova concepção de Direito, compatível com
a nova sociedade, que se desenhava no contexto pós-ditatorial como mais livre,
justa e solidária.
Hoje, a concepção de O
Direito Achado na Rua está diante de dilemas e desafios, que nos convocam a
assumirmos uma postura simultaneamente ativa e reflexiva (p. 19). Essa
coletânea é a reunião de artigos inter/multidisciplinares, produzidos a partir
da troca de experiências entre academia e rua, movimentos populares,
políticos e sociais, oportunizada pelo Seminário “30 anos de O Direito Achado
na Rua: o Direito como Liberdade”.
O mote do evento foi a
revisão dos conceitos teóricos e epistemológicos do movimento, desde sua
concepção até os momentos atuais, de modo a se projetar em novas formulações
teóricas e práticas, sem abandonar temas que há 30 anos tiveram sua relevância
reconhecida e sem os quais não é possível a formulação de um projeto de
sociedade livre, justa e solidária.
A presente obra se propôs
a refletir sobre o atual momento de crise paradigmática do Direito e da
sociedade brasileira, bem como entender os lugares de O Direito Achado na
Rua nesse contexto. Talvez, a pergunta de partida que, direta ou
indiretamente, norteia todos os artigos, e norteou as abordagens do Seminário,
consiste em: “No momento que se comemora os 30 anos do Direito Achado na Rua,
o que se pode dizer sobre o surgimento dessa proposta? Que contribuições ela
trouxe para o campo jurídico ao longo das três últimas décadas? (p. 20).
O Direito Achado na
Rua se articula a partir de dimensões prática e teórica. A sua origem
remonta à proposta formulada por Roberto Lyra Filho da chamada Nova Escola
Jurídica Brasileira (NAIR), embasando-se em uma teoria crítica do direito
eminentemente brasileira, com raízes na sociologia e filosofia jurídica que
adotam perspectiva dialética. Um importante marco desse projeto é a revista Direito
e Avesso, de 1982.
Nesse contexto, Lyra
Filho articula seu pensamento com outras obras e outros intelectuais
brasileiros e estrangeiros, especialmente Hegel e Marx, na tentativa de elaborar
uma nova concepção do Direito, que emerge das ruas como espaço concreto de
manifestação e como metáfora da esfera pública democrática.
Outro importante marco
do pensamento de O Direito Achado na Rua é o programa Introdução
crítica ao direito: O Direito Achado na Rua, de 1987, organizado por Sousa
Júnior. Trata-se de um curso que ocorreu utilizando a ferramenta das cartas para
a formação e comunicação de pessoas dos mais diversos lugares, resultando na
produção de artigos de figuras expressivas nos campos da filosofia e sociologia
crítica do direito, e das ciências sociais, em um momento de profunda
transformação do direito, do Estado e da sociedade brasileira, uma vez que tudo
isso ocorria simultaneamente ao processo da realização da Assembleia
Constituinte.
A utilização das cartas
como ferramenta de concretização desse projeto me trouxe à memória a
metodologia utilizada por Paulo Freire para dialogar com seus alunos. De forma
mais ou menos proposital, O Direito Achado na Rua bebeu na fonte
freireana. Conforme uma anedota trazida em um dos escritos introdutórios desta
coletânea sobre a qual me debruço, Nita Freire, colaboradora e viúva de Paulo
Freire, contatou Sousa Júnior com o intuito de identificar possíveis
intersecções entre o pensamento do educador, forte numa pedagogia de autonomia,
e o direito emancipatório, uma vez que buscavam reconhecer e privilegiar o
potencial popular, a vivência cotidiana do sujeito em seu processo de
aprendizado e de feitura do direito.
No início da década de
1990, o projeto O Direito Achado na Rua adquiriu o caráter de curso de
extensão, sendo realizado a partir da UnB, colocando em diálogo setores
críticos do campo jurídico. Alguns dos desdobramentos da atuação extensionista
estão agrupados nos livros da série que antecedem esta obra. Se neste material o
foco é apresentar o percurso desse projeto-movimento ao longo de seus 30 anos,
em outros volumes foram tratados, especificamente, temas como direito do
trabalho, direito agrário, direito à saúde, direito das mulheres, justiça de
transição, direito à comunicação e informação, e direito urbanístico.
Pode-se dizer que nessa
coleção se desenvolve uma teoria eminentemente brasileira da relação entre Direito
e movimentos sociais, em suas mais diversas expressões temáticas, o que
constitui o marco teórico-prático da contribuição e impacto de O Direito
Achado na Rua para a práxis do direito no Brasil.
Diante da materialidade
da realidade contemporânea que se impõe, desafiadora e demandante, talvez
possamos pensar nessa comemoração de 30 anos como o ápice do projeto-movimento,
em virtude de seu amadurecimento, sua abertura para a transformação, sua
capacidade de autorreflexão e revisão.
A obra se divide em
nove sessões temáticas – “30 Anos de O Direito Achado na Rua: desafios da
teoria crítica do Direito no Brasil e na América Latina”; “Teorias Críticas dos
Direitos Humanos”; “Pluralismo Jurídico e Constitucionalismo Achado na Rua”; “O
Combate ao Racismo e ao Patriarcado: a Epistemologia Jurídica Afro-diaspórica e
Feminista”; “Educação para a Paz e Práticas Emancipatórias de Mediação de
Conflitos – 30 anos do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos
(NEP)”; “Expansão Judicial, Direitos Humanos e Acesso à Justiça no Brasil”; “O
Direito Achado nos Rios e nas Florestas: Conflitos Socioambientais, Direitos
Indígenas e de Povos e Comunidades Tradicionais”; “Movimentos Sociais e os
Desafios da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular”; “Direito como Liberdade:
Perspectivas para um Novo Projeto de Sociedade” -, além de trazer textos
prefaciais que reúnem artigos balizadores para as seções subsequentes, seja
pela inspiração teórica, seja pela inspiração prática.
O Direito Achado na
Rua é, até os dias de hoje, uma das principais referências no campo crítico
do Direito brasileiro, tanto é que tem sua influência e incidência perdurando e
se imiscuindo nos espaços de formação de intelectuais, profissionais e até
mesmo de “leigos” que exercem cotidianamente sua ocupação no campo do Direito. Este
volume é a expressão do trabalho que vem sendo executado ao longo de 30 anos
pelo projeto de formação em direitos com lideranças sociais e juristas, no
campo da assessoria jurídica e advocacia popular, e das carreiras estatais do
sistema judicial. Trabalho esse que fomenta a interlocução entre espaços
sociais e institucionais, na medida em que busca compreender os problemas
jurídicos a partir da perspectiva dos sujeitos coletivos,
[...] realizando
a tradução social e política do Direito na forma de interlocução crítica e
interpeladora das respostas estatais (em sentido político, econômico e
sobretudo judicial), sem se deixar encantar pelo fetiche ou mito da via
judicial e das suas instituições como plataforma prioritária de solução de
conflitos, considerados em suas mais diversificadas expressões, dimensões e
intensidades econômicas, sociais, políticas, étnicas e culturais (p. 23-24).
A ideia é que esta resenha
figure como um prelúdio dos seminários que acontecerão ao longo da disciplina
ministrada nos primeiros meses deste ano de 2022. Dessa forma, destaco a
importância da existência de seções marcadamente voltadas tanto para a apresentação
de experiências plurais de O Direito Achado na Rua, como de epistemologias
e metodologias contra-hegemônicas. Fica evidente que a luta de grupos
historicamente marginalizados e vulnerabilizados deram frutos também no meio
acadêmico, uma vez que essas epistemologias e metodologias diversas firmaram seu
lugar de direito nesta obra.
Aproveito, ainda, para
endossar a relevância de incorporarmos permanentemente essas abordagens
antirracistas, feministas, anti/de(s)coloniais, subversivas, emancipadoras, à
nossa crítica ao direito conservador vigente, e à nossa produção, acadêmica,
profissional e cidadã, do direito crítico e contrário ao status quo
vigente.
Estamos, aqui, juntas,
juntos, juntes a esta obra pensando as possibilidades de reinvenção de um
repertório que, de forma mais ou menos intuitiva, de forma mais ou menos
formalmente aprendida e apreendida, tem O Direito Achado na Rua como
ferramenta central de articulação. Trata-se de uma grande oportunidade, pois
temos diante de nós um instrumental com trajetória consolidada,
significativamente maduro, que, entretanto, não incide em obsolescência. Ao
contrário, conforme podemos ver nos textos compilados, O Direito Achado na
Rua está cada vez mais atual.
REFERÊNCIA
SOUSA JÚNIOR, José Geraldo et al. O
Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade.
Brasília: OAB Editora; Editora UnB, 2021. (Volume 10).
[1] Doutoranda em Direito pelo
Programa de Pós-Graduação da Universidade de Brasília (PPGD/UnB). Mestra
(PPGD/UFRJ) e bacharela (UFSC) em Direito. Integrante da International
Research Network on Global Enforced Disappearances (ROAD) e do grupo de
pesquisa e extensão Mulheres Encarceradas, vinculado ao LADIH/UFRJ.
E-mail: brubmcosta@gmail.com.
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