domingo, 15 de novembro de 2015

Direito e Sociedade: mais uma reflexão*
 João Paulo Aguiar Moreira**

1. Introdução
       Este ensaio tem por objeto lançar luzes sobre algumas categorias relevantes do Direito e, nesse bojo, apontar as eventuais contribuições que esses esclarecimentos podem oferecem para renovar a relação entre Direito e Sociedade. Alertamos o leitor, de antemão, que a presente empreitada tem um ponto de partida preciso: a constatação de que o Direito, enquanto experiência normativa – no sentido mais amplo possível da palavra –, está inserido no campo das “ciências sociais aplicadas”, a qual, por sua vez, se insere no macrocampo das humanidades. Daí se depreende que o Direito nada mais é do que um pequeno ponto na imensidão do mar das dinâmicas sociais, razão pela qual o jurista que se dedica tão somente à exegese dos intermináveis códigos falha na missão de captar as implicações sociais de sua própria atividade, implicações estas que podem conduzir à própria reformulação dos conceitos de Direito e juridicidade . Em outras palavras, é preciso que o jurista se situe na sociedade de forma consciente. Não fazê-lo significa elitizar a prática jurídica, incorrendo no objeto da crítica feita por Karl Loewenstein por ocasião de sua Teoría de la constituición a respeito do que ele chamou de “erosão da consciência constitucional” :
“O direito constitucional se converteu para o leigo em uma ciência oculta; seu conhecimento está reservado a uma minoria de juristas profissionais na prática e na burocracia governamental. E não pode ser de outra maneira. As constituições são cada vez mais complicadas. As decisões políticas confirmadoras são domínio dos políticos; para sua execução são chamados tão somente os técnicos constitucionalistas e especialistas. A massa da população perdeu seu interesse na constituição, e esta, portanto, seu valor efetivo para o povo. Este é um dado indiscutível e alarmante. Os documentos constitucionais, bem pensados e articulados, foram considerados na época de sua primeira aparição como a chave mágica para a ordenação feliz da uma sociedade estatal. Hoje, manipulada pelos políticos profissionais, a constituição cessou de ser uma realidade viva para a massa dos destinatários do poder.”

2. Estado Democrático de Direito: paradoxo aparente
    
     Umas das formas de propiciar uma reaproximação entre Direito e Sociedade pode ser encontrada na adequada compreensão daquilo que chamamos de Estado Democrático de Direito. Este diz respeito a uma articulação interna entre Direito e Política, isto é, entre Constituição e Democracia. Por certo, umas das mais notórias análises sobre o tema pode ser encontrada na obra de Jurgen Habermas. Em “Era das Transições” , o autor procura demonstrar como o paradoxo suscitado pelo conceito é, tão somente, aparente; e como, na verdade, a compatibilização entre soberania popular e império das leis é não só possível, mas necessária na fundamentação do Estado Moderno.
     Sua análise parte da apresentação da relação entre o princípio democrático – que, sob uma ótica clássica, pode ser definido como a expressão da vontade ilimitada dos cidadãos reunidos – e o Estado de Direito que, por sua vez, parece estabelecer limites à autodeterminação soberana do povo, posto que a “supremacia das leis” exige que a formação democrática da vontade não se coloque contra os direitos humanos agora positivados na forma de direitos fundamentais. O império das leis se antepõe ao império do povo, suscitando a seguinte indagação: os direitos subjetivos de liberdade dos cidadãos ou os direitos de participação política dos cidadãos democráticos?
      A resposta de Habermas objetiva tratar os dois princípios como “co-origiários”. Aproximando essa relação àquela entre autonomia privada e pública, objetiva-se demonstrar que ambas são complementares, uma vez que assim como o uso adequado de uma autonomia pública, garantida por direitos políticos efetivos, só pode ser firmada por intermédio de uma independência na vida privada – direitos subjetivos em direção a direitos de participação política –, as cidadãos tomados como agentes na sociedade só podem usufruir de sua devida autonomia privada se fizerem uso de sua autonomia política – direitos de participação política em direção a direitos subjetivos. Nesse sentido, a amarra unificadora – entre os founding fathers e as gerações posteriores – que legitima os processos vigentes “consiste na prática comum a que recorremos, quando empreendemos esforços para atingir uma compreensão racional do texto da constituição” (HABERMAS, 2003, p. 167). De fato, no intuito de conferir legitimidade às leis que emanam de um conjunto institucional, é preciso que tal instituição tenha sido elaborada legalmente, de forma que os ordenamentos referentes a eleições, representações, associações, propriedade e etc. devem ter sido fruto de um processo comunicativo democrático, livre de distorções tanto no campo formal legislativo, quanto na sociedade participante como um todo. Logo, qualquer ato constituinte deve abrir “a possibilidade de um processo ulterior de tentativas que a si mesmo se corrige e que permite explorar cada vez melhor as fontes do sistema de direitos” (HABERMAS, 2003, p. 167).
     Sob esta ótica, Habermas pretende comprovar que a própria noção de direito fundamental nos remete a um processo de autolegislação – e portanto, uma espécie de autotutela permanente. Apoiando-se nas teorias contratualistas, o autor assevera que as pessoas, ao se reunirem com o objetivo de firmar um contrato social, percebem que devem, antes de darem origem a qualquer forma de ordenamento prático, definir o sentido desta prática, ou seja, a prática constitutiva limita-se, em um primeiro momento, a refletir sobre o sentido específico do projeto e, a partir daí, explicitá-lo. A conclusão que se toma é a de que nesse cenário hipotético de gênese conceitual dos direitos fundamentais, revelam-se, do próprio processo constitutivo, algumas exigências que, inevitavelmente, são colocadas como autolegislação democrática que se estrutura pelo dito “caminho do direito”. O princípio democrático somente pode ser concretizado em sintonia com a ideia de Estado de Direito, pois ambos encontram-se numa relação de implicação material: a relação entre autonomia do cidadão do Estado e a autonomia do cidadão da Sociedade é a de que uma não pode ser realizada sem a outra.

3. Direito e limites da racionalidade

     A relação entre Direito e Sociedade diz respeito, em certa medida, a um confronto entre saber técnico autorizado e vida prática. O processo de formação e aplicação de leis que tem por objetivo reger uma infinidade de condutas sociais multifacetadas por intermédio da edição de enunciados normativos unilaterais. Nessa esteira, somos remetidos aos limites da racionalidade humana.
      Interessante análise a respeito das implicações do juízo unilateral de edição de leis pode ser observada no artigo “Racionalização do Ordenamento Jurídico e Democracia” , de autoria de Menelick de Carvalho Netto. Neste, o procura-se tecer considerações acerta dos desafios que se colocam no caminho para a efetivação de direitos na realidade das dinâmicas sociais.
      Partindo do aparente conflito entre democracia e constitucionalismo já explorado, suscitado pela ideia de que quanto mais democrático for um regime político, menores serão os limites constitucionais impostos à vontade popular imperante – e vice-versa –, Carvalho Netto ressalta que ambos os princípios se complementam; supõem-se mutuamente. Isso de torna claro por meio da constatação de que “a democracia só é democrática se for constitucional” (CARVALHO NETTO, 2003, p. 83), posto que a vontade ilimitada da maioria que não encontra barreira no princípio contramajoritário nada mais é do que ditadura, do mesmo modo que “o constitucionalismo só é constitucional se for democrático” (CARVALHO NETTO, 2003, p.83), uma vez que a apropriação do texto constitucional para moldar o povo como se objeto fosse configura autoritarismo.
      Nesse sentido, defende-se que o constitucionalismo detém um caráter democrático intrínseco que desautoriza qualquer tentativa de se incluir nele experiências autoritárias ao longo da história. Nesses malfadados momentos, outorga-se um documento autodenominado “Constituição” que, ao invés de representar um núcleo garantidor de liberdades contra o autoritarismo dos governantes e a supremacia da maioria, funciona como um instrumento de opressão que privatiza o poder político. Fica claro que:

“somente um ordenamento jurídico principiológico, constituído por normas gerais e abstratas que passaram pelo crivo democrático da aceitabilidade de todos os afetados, ou seja, por um processo legislativo democrático, é capaz de transformar a legalidade em produtora de legitimidade” (CARVALHO NETTO, 2003, p.86).

      Nesse ponto, voltamos nossa atenção para a questão da pós-modernidade e para a superação do mito da razão moderna que seria capaz de revelar verdades universais. Assumindo a tese de que as leis científicas – assim como aquelas que emanam de um ordenamento jurídico – são, por definição, temporárias e invariavelmente refutáveis, Carvalho Netto defende que essa mesma incerteza se reflete no campo do direito, o qual passa a se voltar para o futuro na certeza de que será descumprido – sanção. O Direito, sob a ótica do Estado Democrático, surge como um espaço vazio; não esgotável. A própria Constituição se apresenta como essa moldura de um processo contínuo de aquisição, modificação e transformação de direitos fundamentais que nunca pode se fechar, ao risco de eliminar o próprio constitucionalismo da Constituição.
     Atestando o caráter móvel e aberto que o Direito carrega, o trabalho hermenêutico de aplicação do texto jurídico nas situações práticas – individuais e concretas – assume extrema importância. Sob este espírito, devemos abandonar a ótica clássica de aplicação mecânica da lei, que via no silogismo simples – o juiz como “boca da lei” – a chave para a concretização da experiência normativa. Abandonando o ideal de primazia da racionalidade humana, devemos elaborar princípios mais operacionais, sem nunca se esquecer de assumir a elasticidade da aplicação de normas gerais e abstratas diante da complexidade da vida.
     Dessa evidência advém a precariedade das decisões judiciais no bojo de uma sociedade republicada constitucional que já de deparou com o “fato do pluralismo”.
     Ousamos acrescentar, ainda, que a prevalência do Poder Judiciário no paradigma do Estado Democrático de Direito se dá, entre outros fatores, em função da constatação da provisoriedade da racionalidade humana – aqui entendida como esse duplo empreendimento de (I) procurar solucionar os conflitos que se põem e (II) manter visível a noção de que qualquer solução, por mais debatida que seja, é constitutivamente precária e estupidamente insuficiente.

4. Conclusões parciais e possíveis direcionamentos

    Uma valorosa tentativa de dar forma aos apontamentos supracitados pode ser observada na Escola do “Direito Achado na Rua”. Cuida-se de movimento nascente das discussões de um grupo de intelectuais reunidos no movimento Nova Escola Jurídica Brasileira, que encontra em Roberto Lyra Filho seu principal expoente. Tratando-se, inclusive, de proeminente linha de pesquisa do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), o Direito Achado na Rua é, acima de tudo, um projeto transformador. Debruça-se sobre a tarefa de reconciliar prática e teoria para fundar novas possibilidades de pensar o Direito para além dos reducionismos irrefletidos desse ramo do conhecimento ainda contaminado com traços do positivismo de outrora.
      Por se situar no interstício entre Direito e Sociedade, o Direito Achado na Rua se constitui em iniciativa em permanente atualização, na medida em que a dinâmica social não descansa em apresentar novas e resignificadas demandas. Sob este prisma, a principal contribuição que o movimento oferece diz respeito a toda uma renovação da atividade jurídica tomada epistemologicamente, a qual, por intermédio de uma mudança de perspectiva a respeito de seus próprios conceitos, procura operar uma transição entre uma concepção autopoiética de Direito, estanque e independente, para uma visão do fenômeno jurídico-normativo multidimensional, capaz de dar cabo dos outputs sociais.
     Iniciativas dessa natureza são absolutamente necessárias no bojo da superação do projeto positivista para o Direito.
     No mais, damos cabo do presente ensaio imbuídos da pretensão de dar início a um debate permanente em torno da relação entre Direito e Sociedade. Nas palavras de Roberto Lyra Filho , a filosofia jurídica precisa transformar o dogma em problema “mas, para isso, tem de abandonar as distinções metodológicas, segundo as quais fica de pé a artificial separação dos saberes sobre o Direito” (LYRA FILHO, 1980, p. 42).

* Artigo publicado na Revista Jurídica, Seccional da OAB do Distrito Federal, ano 2, n. 6, novembro de 2015, págs.54-57. Sobre essa publicação o autor me enviou a seguinte mensagem:

Professor José Geraldo,
Fui seu aluno de graduação na disciplina "Sociologia Jurídica" no semestre passado. Na ocasião, o senhor estipulou como uma das atividades da disciplina a produção de artigo científico sobre um dos livros que estudamos ao longo o semestre. Este artigo deveria estar de acordo com os parâmetros da chamada de artigos científicos da revista da OAB/DF, de forma que pudéssemos fazer a submissão de nossos trabalhos para publicação.
Pois bem! Meu artigo foi selecionado e publicado na edição de novembro do periódico. Fui o único graduando selecionado!
Assim, venho por meio dessa mensagem parabenizar a iniciativa de "forçar" os alunos à investirem em produção de trabalhos dessa natureza. Além disso, gostaria de agradecer o senhor pela oportunidade: se trata de minha primeira publicação! Estou muito satisfeito!
No mais, registro meus votos de estima e admiração por sua pessoa. Obrigado!
Atenciosamente,
João Paulo A. Moreira.
** O autor é graduando em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília - UnB

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