quarta-feira, 10 de junho de 2015

Loucamente (Cartas do Mondego)

Coimbra, 10 de junho de 2015.

Poucos dias após chegar a Portugal, pude experimentar uma das exposições mais instigantes que já visitei. Sim, eu disse experimentar, pois trata-se de uma exposição interativa, que te convida a experienciar a loucura em algumas das suas dimensões.

“Loucamente”**, o nome da exposição, que tem como objetivo abordar o bem-estar da mente e discutir publicamente a saúde mental e o seu impacto social e pessoal, situa as pessoas visitantes no universo da loucura de maneira criativa, responsável e participativa.
Nas quase três horas em que ali estive, observei o maior diferencial de uma exposição dessa natureza e com um tema nada fácil: a desconstrução do estigma da loucura a partir do reconhecimento das diferenças e das vozes dos sujeitos que vivenciam a loucura.
Jogos interativos, vídeos, glossários, simulações, máscaras, sons, maquetes, cenas da vida real dramatizadas, quadros, boletins informativos, espelhos, músicas, testemunhos de pessoas em sofrimento mental, dança, desenhos, expressão corporal, rádio e até o pêndulo de Foucault, dentre outros instrumentos, foram utilizados para construir/reconstruir o percurso da loucura e dos tratamentos na área da saúde mental ao longo da história, trazendo para o centro do debate as próprias pessoas em sofrimento mental. São seus testemunhos, suas produções, suas falas ou representações das mesmas, suas expressões, sensações descritas por elas e um tanto de outras coisas, que guiam cada visitante daquela exposição.

            Houve apenas uma coisa que estranhei em meio a tantos instrumentos e metodologias utilizados: o espaço que trazia informações sobre cada tipo de transtorno mental (a partir da classificação tradicional médica), suas características e tipos de tratamento. Não que não seja importante esse tipo de informação, mas a forma escolhida acabou destoando da proposta da exposição, que destacou a loucura como uma experiência, um modo de estar no mundo, e não como doença mental. De qualquer forma, tal abordagem não se sobrepôs aos demais espaços da
exposição, os quais despertavam maior interesse do público e contribuem para desconstruir o estigma que ainda hoje recai sobre as pessoas em sofrimento mental.
        
    Percebo, assim, que algo tão caro ao Movimento da Luta Antimanicomial no Brasil foi possível ver ali: somente se muda a percepção sobre a loucura quando há uma mudança sociocultural. A exposição “Loucamente” contribui significativamente para essa dimensão. 
Para concretizar os direitos advindos com a Reforma Psiquiátrica no Brasil, oriunda das mobilizações do Movimento da Luta Antimanicomial, não basta haver mudança no campo das políticas de saúde ou da legislação. Ou mudamos nós e o nosso olhar e ação sobre a loucura, ou não mudaremos nada. 


* Ludmila Cerqueira Correia é doutoranda em Direito, Estado e Constituição no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília, integrante do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua, bolsista CAPES em estágio doutoral no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, professora do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba e Coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Loucura e Cidadania (Centro de Referência em Direitos Humanos da UFPB).


** A exposição “Loucamente” está aberta à visitação no Pavilhão do Conhecimento Ciência Viva, em Lisboa, Portugal, até setembro de 2015. 

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