quinta-feira, 13 de março de 2014

A importância da advocacia popular para a realização da justiça





Patrick Mariano Gomes (*)



No dia 3 de julho de 1894, na cidade de Chicago, nascia o maior advogado de todos os tempos dos Estados Unidos da América. Nesta data, aos 37 anos e titular da carreira jurídica mais proeminente do País – Chefe do departamento jurídico da Estrada de Ferro Chicago e Noroeste – Clarence Darrow resolveu dar uma guinada total na sua vida, pedir demissão do emprego e ir defender os líderes do Sindicato Ferroviário Americano, dentre eles, Eugene Debs.


A Estrada de Ferro Chicago Noroeste era a empresa que empregava 2 milhões de trabalhadores e sua capitalização era de  10 % de toda a renda bruta do País. As ferrovias fixavam os preços que os fabricantes deveriam receber por suas máquinas, os fazendeiros por sua produção e determinavam quais cidades deveriam prosperar e quais entrar em decadência.


A indústria de ferrovias controlava parte do Congresso Nacional, os Tribunais, elegia governadores e prefeitos e subornava legisladores. A partir deste emprego, Clarence poderia perfeitamente e, sem dificuldade, se tornar Governador, Senador ou qualquer outro cargo jurídico que quisesse.   


A razão para um ato que, a primeira vista, parece um desatino, foi uma crise de consciência. Darrow era um liberal e humanista. Sensível, portanto, aos problemas sociais do seu tempo. O diálogo entre o presidente da empresa e seu advogado é bem interessante. Vejamos.


- Ninguém vai refrescar-se amanhã em Chicago – disse com voz dura. – Acabei de ler o interdito da Corte de Circuito contra os grevistas, hoje de manhã. O despacho não só transforma em ato criminoso o fato de um homem entrar em greve, mas considera crime punível com a prisão sugerir que alguém faça o mesmo.


- Esse interdito vai evitar derramamento de sangue e a destruição da propriedade – replicou Hughitt, lacônico.


- Pois eu pensava que este fosse um país livre. Pensava que os homens tinham o direito de interromper o trabalho quando não achassem satisfatórias as condições. Se o próprio governo que elegeram lhes diz que é ilegal fazer greves, que devem trabalhar dentro das condições que os empregadores acham conveniente conceder-lhes, ou então ir pra a cadeia, neste caso eles não são melhores que os escravos. Se esta é realmente uma democracia, aquele interdito é ilegal.


O diálogo transcorre interessantíssimo e marca o início do livro “O advogado da defesa”, de Irving Stone, leitura obrigatória para quem quer se aventurar pelos caminhos do direito. O patrão de Darrow pondera que o Sindicato não teria condições para pagá-lo e diz que na empresa ele poderia ficar rico. Mas o advogado já havia decidido a escolher o lado dos trabalhadores.


Sair de uma vida cômoda e reconfortante materialmente e optar por enfrentar a mais poderosa empresa dos EUA, bem como todo seu aparato midiático e estatal, foi o que fez de Darrow um advogado popular e o colocou no rol dos grandes cidadãos da história dos Estados Unidos da América.


Os trabalhadores das estradas de ferro sofriam com condições precárias de trabalho. Jornada exaustiva, acidentes, baixos salários, etc. Aos poucos, decidiram se organizar e tentar fazer frente a essa evidente exploração dos seus corpos. Resolveram cruzar os braços e manifestar.


Uma das frases clássicas de Darrow é que O direito, tal como é geralmente praticado, é uma profissão idiota. É inteiramente desprovido de idealismo e quase indigente em matéria de ideias reais.


De fato, vivemos uma certa paralisação das profissões jurídicas no que toca ao idealismo à vontade de transformar a realidade em que vivemos.


O positivismo, ainda e infelizmente presente na educação jurídica, faz com que saiam da faculdade técnicos frios e insensíveis quanto aos dramas humanos. O carreirismo das funções públicas e a disputa pela advocacia de mercado faz com que grande parte dos profissionais do direito não se sensibilizem contra a injustiça.


Em um país desigual como o Brasil em que 1% dos proprietários rurais detém 47% das terras e em que, infelizmente ainda, não conseguimos igualdade na educação, racial, de gênero e de moradia urbana, tomar posição e decidir como se portar perante o mundo em que se vive é algo não só necessário para o estudante de direito, como imprescindível.


Uma das opções possíveis para quem quer, com sua profissão e seus conhecimentos, contribuir para o País mais justo e digno para todos é a advocacia popular.


O fundamental aqui, neste ponto, é a sensibilidade para com as injustiças. O estudante precisa se indignar quando se depara com uma situação de injustiça. Se você, ao ver alguém pobre na rua pedindo comida e não se sensibiliza, creio que essa minha fala terá sido em vão. Da mesma forma, se um estudante de direito vê um pobre apanhando de um policial na rua e nada lhe ocorre; ou se a imagem de um jovem negro sem as roupas, todo lesionado por agressões físicas e preso por um cadeado no pescoço, no aterro do flamengo, e nenhuma indignação lhe desperta, me desculpe, você não será um Clarence Darrow.


Porque cada um e cada uma de vocês podem se tornar agentes da transformação da social. E isto pode se dar independente da profissão que escolher. Seja promotor, defensor, juiz, oficial de cartório, etc. Desde que tenha essa capacidade de se indignar contra as injustiças. O curso de direito oferece um leque de possibilidades de atuação. Quero falar aqui da opção da advocacia popular.


A advocacia popular. 


O advogado ou advogada é um ser indignado por essência e sua atuação é marcada pela luta por justiça.


A profissão exige uma certa dose de altruísmo, abnegação e entrega. Sim, porque o advogado ou advogada toma as dores alheias como suas e age para amenizá-las ou extirpá-las.


Muitas vezes se colocará nesta ação contra todos. Como um Dom Quixote, corre o risco de ser confundido com a pessoa com quem defende, de ser defenestrado pela mídia e se tornar impopular. Profissão para poucos, mas que nos dá um retorno imaterial imensurável.


Não há como descrever a emoção de você devolver a liberdade para uma pessoa. O advogado é, também, psicólogo, porque precisa entender os dramas humanos como poucos. Só esta compreensão é que faz com que você aceite o desafio de enfrentar “o sistema” na defesa do próximo.


Por isso, tão importante quanto aprender a técnica do direito é compreender a alma humana. Suas contradições, seus equívocos e seus dramas. Enfim, tentar compreender a complexidade do ser humano. Isto vocês não encontrarão nos livros de direito. Se quiserem saber onde estará isso eu diria: na vida, na literatura, na poesia, na história, na sociologia, na economia...


O direito é a parte mais fácil do aprendizado, qualquer tolo aprende. Vocês verão como é fácil saber os artigos do código, se Tito matou Mélvio, essas baboseiras todas que estão nos manuais. Quero dizer com isso que formar técnicos que repetem fórmulas é muito fácil. Difícil é entendermos o porque estamos aqui e qual o nosso papel enquanto cidadão e cidadã na construção de nossa sociedade.


Por isso que clássica frase de Clarence Darrow, o maior advogado de todos os tempos, continua atual:


O direito, tal como é geralmente praticado, é uma profissão idiota. É inteiramente desprovido de idealismo e quase indigente em matéria de ideias reais.


Vocês podem me perguntar: ah, tá certo, Darrow foi o maior advogado dos EUA, quero saber o que diz o maior do Brasil.


Eu ficaria extremamente emocionado se vocês me desafiassem desta forma.


Apresento então, para vocês, o maior advogado brasileiro de todos os tempos: Evandro Lins e Silva.


E o que diria ele de conselho a quem, como vocês, iniciam a caminhada no curso de direito? Está lá no livro fundamental para vocês lerem que é “O salão dos passos perdidos”.


Vejamos(1):


Na introdução desse livro, recomendo aos jovens que leiam, leiam tudo o que lhes cair nas mãos, romance, história, poesia, tudo. É muito importante isso. Por vezes, quando vou à tribuna - digo isso naquele livro A defesa tem a palavra - uso o que eu li como fonte de inspiração. No famoso caso Doca Street, reli Servidão humana, de Somerset Maugham, para mostrar o terrível drama do Phillip abandonado pela Mildred. Sempre usei o que pudesse sugerir uma metáfora para o julgamento. Numa defesa, é preciso que haja também a apresentação de alguma coisa nova. Era minha preocupação, nos julgamentos, trazer alguma novidade, não fazer uma mera repetição de julgamentos anteriores.


Evandro Lins e Silva, assim como Clarence Darrow, teve uma vida longa e profícua. Nasceu em 18 de janeiro de 1912, na cidade de Parnaíba/PI.  Formou-se na Faculdade Nacional de Direito no Rio de Janeiro.


Foi jornalista e advogado do júri, tendo defendido inúmeros presos políticos durante o Estado Novo de Vargas. Também exerceu cargos públicos como chefe de Gabinete do governo João Goulart e ministro do Supremo. Foi cassado pelo AI5 e retornou à advocacia.


Aos 88 anos, fez a defesa do líder sem terra José Rainha Junior, em júri realizado em Vitória/ES. Atendendo a pedido de Pilar Del Rio, esposa de José Saramago, aceitou a causa e conseguiu a absolvição do líder sem terra.


Evandro Lins, sempre tomou partido. Advogou de graça para militantes sociais e líderes populares.


Outro grande advogado, Sobral Pinto, também nunca cobrou honorários de presos políticos e virou mito, sendo um dos grandes nomes brasileiro do século passado.


Tanto um, como outro, demonstraram ao longo de suas carreiras, uma profunda sensibilidade e compaixão pelo outro. E mais, empregaram sua profissão e seus conhecimentos em prol de uma causa.


Muitos advogados e advogadas se destacaram ao defender presos políticos durante a ditadura militar. Não se intimidaram diante da violência e do autoritarismo do regime. Por demandar um texto só sobre o tema, resolvi destacar os dois maiores expoentes.


A advocacia popular nos últimos anos no Brasil. 


No contexto pós-democratização de 1988, portanto, já sob o estado de direito democrático, a advocacia popular se volta para a defesa dos chamados movimentos sociais, atores políticos que surgem com mais força a partir dos anos de 1990, quando passam a exigir os direitos previstos na Constituição de 1988 como terra, trabalho e moradia.


Com isso, a reforma agrária, urbana, a demanda pelo reconhecimento das terras quilombolas e questão indígena acabou sendo a tônica das causas populares no Brasil de 1990 até os dias atuais.


Em 1994, advogados desses movimentos, ligados a sindicatos de trabalhadores rurais, tendo em vista que se notava certa semelhança nas estratégias de criminalização dos integrantes desses movimentos, resolveram criar a RENAP – Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares.


Desde então, cerca de 600 profissionais, advogados e advogadas populares desses movimentos, se articulam em rede para discutir teses, trabalhando em conjunto para contribuir na efetivação dos direitos desses trabalhadores.


Os desafios da advocacia popular.


Um dos maiores desafios para a advocacia popular é a questão financeira. Como grande parte desses movimentos não dispõem de muitos recursos, não raro muitos advogados e advogadas realizam trabalho voluntário ou, contam com o básico salarial para se manter.


Atualmente, muitos advogados e advogadas populares se tornaram professores de universidade ou acabam atuando em outras causas para conseguir se manter.


Preconceito.


Tomar partido de uma forma de advocacia popular implica saber que além da causa em si e, da mera questão técnica, o advogado terá que lidar contra a pressão da mídia e o preconceito de juízes, promotores, policiais e até cartorários.


Tome-se o exemplo de uma ocupação de terras. Os grandes meios de comunicação de massa, por pertencerem à classe dominante no País, criam a imagem de que aqueles trabalhadores sejam vândalos, perigosos, baderneiros, etc.


Não raro, o advogado na defesa desses clientes, sofre esse preconceito quando vai exercer sua profissão. E não só dos atores jurídicos, mas também as vezes da própria família que não compreende o porque de se defender tais cidadãos.


No livro sobre Clarence Darrow isso fica bem claro quando ele resolve defender Eugene Debs. Como as empresas de ferrovias possuíam grande poder econômico, pautavam os jornais da época e tentaram demonizar os líderes trabalhistas e, também, o seu advogado.


Atualmente, assistimos no Rio de Janeiro, o caso do advogado que trabalhava com o deputado Marcelo Freixo. É a mesma situação de Darrow.


Nossas classes dominantes têm medo que o povo passe a exigir seus direitos constitucionalmente previstos e não se eximem de fazer de tudo para impedir que isto ocorra.


Por isso que o advogado ou advogada que resolva entrar para esta área deve saber que as questões ou as causas que ele defenderá não se resolverão somente com a técnica e que vocês serão muitas vezes derrotados. Em grande parte dos casos o direito assiste seus defendidos, mas o componente político é o determinante para o sucesso ou insucesso da causa.


Vale aqui o ensinamento de Darcy Ribeiro:


Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil  desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.


No entanto, a advocacia popular, apesar das derrotas, é cheia de grandes vitórias. Muitas causas são ganhas e se tornam referências pela abnegação desses defensores. E uma vitória nesses casos, não é só uma vitória pessoal, mas de toda a causa.


É algo que o advogado ou advogada precisa entender desde logo. Você é um instrumento da luta. Apenas mais um instrumento. Nunca será “o principal instrumento”. Isso exige certa dose de desprendimento e humildade. Características raras no mundo competitivo da advocacia.


Da mesma forma, aprender a trabalhar em coletivo. A advocacia, como se assemelha a um duelo entre partes contrárias acaba por fortalecer a ação individual. Nas causas populares isso se quebra um pouco, porque existe uma ação solidária entre profissionais.


A importância da advocacia popular para a realização da justiça


Em um país tão desigual como o Brasil, a advocacia popular assume um papel imprescindível para realização da justiça.


Justiça em seu sentido mais amplo. Infelizmente, ainda é preciso lutar contra o arbítrio estatal, a violência policial, a má distribuição do saber, da terra, da moradia. Ainda se negam direitos aos índios e aos quilombolas. Daí que a ciência do direito pode ser empregada para manter as coisas como estão ou para transformá-las.


Aí é que mora a decisão fundamental para quem inicia um curso de direito. Nomes como Clarence Darrow, Sobral Pinto e Evandro Lins e Silva optaram por tentar contribuir para a transformação social. E vocês?


Essa Universidade, formada por Darcy Ribeiro e Roberto Salmeron, foi símbolo da luta por um novo País. Nesses corredores aos quais vocês passarão muitas horas das suas vidas tem a marca de sangue do arbítrio estatal.


Em umas das várias ocupações deste campus pela polícia e pelo exército, o estudante Valdemar Alves Silva foi atingido por um tiro na cabeça, perdeu um olho tendo ficado vários dias entre a vida e a morte. E o que fazia ele? Apenas estudava, assim como vocês!


Outro estudante, assim como vocês agora, que acabou sofrendo com a estúpida ação da Ditadura Militar foi Honestino Guimarães.


Em dezembro de 1973, um general em Brasília deu autorização para Maria Rosa, sua mãe, visitar Honestino no Pelotão de Investigações Criminais (PIC) de Brasília, no Natal. Ela avisou parentes e amigos, preparou ceia e presentes, mas no dia da visita, 24 de dezembro de 1973, depois de uma longa espera, avisaram-na de que Honestino não estava no PIC. 


Somente no dia 12 de março de 1996 teve seu óbito oficialmente reconhecido, sendo laureado pela UnB no ano seguinte com o Mérito Universitário.


Em sua homenagem, a principal organização estudantil da Universidade de Brasília se chama Diretório Central dos Estudantes Honestino Guimarães. Também em sua homenagem, o Grêmio Estudantil do Centro de Ensino Médio Elefante Branco, onde estudou, e o centro acadêmico do curso de Geologia da Universidade Federal do Ceará levam seu nome.


O livro A universidade interrompida – Brasília 1964-1965, Roberto Salmeron, Editora UnB, 1999, 476 páginas é, também leitura obrigatória para vocês que, agora, pisarão o mesmo chão em que pisaram Valdemar e Honestino Guimarães.


Viver implica em escolhas. Como bem disse Guimarães Rosa:


Viver é muito perigoso... Porque aprender a viver é que é o viver mesmo... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa... O mais difí­cil não é um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra.


Creio que um dos maiores dons que deve ter o advogado ou advogada popular é uma certa dose de amor e de loucura, porque quem ama se entrega. E não há como escolher esse caminho sem se entregar a uma causa ou aos dramas do outro.




Peço permissão para encerrar, lembrando Guimarães Rosa:


Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente - o que produz os ventos. Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.


Obrigado!


(1)  O Salão dos Passos Perdidos, depoimento ao CPDOC. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Fundação Getulio Vargas, 1997. Disponível para dowlound em: http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/6737
(*)  O artigo abaixo é de autoria do advogado Patrick Mariano Gomes, integrante da RENAP – Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares e mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB e serviu de base para apresentação em evento do Centro Acadêmico de Direito da Universidade de Brasília-CAdir-UNB, para recepção de calouros e calouras em 11.03.2014.
 



 

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