NELSON BARROS NETODE SALVADOR
É Carnaval em Salvador, e João Jorge
Rodrigues, 57, presidente do Olodum, crava: há um monopólio na divisão de
recursos na folia da Bahia, que é "terra de uma artista só" -Ivete
Sangalo.
Na força da cantora, o líder do
"bloco mais aclamado e conhecido no planeta", em suas palavras, vê um caráter
étnico: ela é branca.
A vinda a Salvador de atrações como
o sul-coreano Psy, diz, é mais um retrato de uma Bahia que não valoriza seus
artistas, sua negritude.
João Jorge falou à Folha na
sede do Olodum, em um belo sobrado encravado no Pelourinho. Em seguida, tinha
outra entrevista: com o americano Spike Lee, 55, que filma "Go Brazil Go!",
documentário sobre a ascensão econômica do país, que também vai abordar o Brasil
da perspectiva racial.
Sobre isso, ele sentencia: a capital baiana "é campeã mundial de apartheid". Sobretudo
nos dias de folia.
Mestre em direito público pela
Universidade de Brasília (UnB), João Jorge vai na contramão do discurso
dominante entre os envolvidos no Carnaval de Salvador.
Folha - Enquanto cresce a
participação popular em blocos de rua no Sudeste, o Carnaval é criticado na
academia e por referências do samba e do próprio axé.
João Jorge -
O Carnaval do país é um retrato do Brasil atual. Ele é um
Carnaval discriminatório, segregado, com mecanismos que reproduzem o capitalismo
brasileiro: a grande exclusão da maioria em beneficio de uma
minoria.
Seria ingenuidade esperar
que no Carnaval de Salvador, de São Paulo, do Recife ou do Rio nós tivéssemos
democracia, oportunidade, igualdade. Você passa 359 dias no ano praticando toda
forma de violência institucional, de racismo institucional, e você quer que em
seis dias o Carnaval seja democrático?
A situação é pior na
Bahia?
Aqui, ainda mais. Você tem um
segmento que tem os melhores patrocínios, maior visibilidade, todos os recursos.
Há cordas separando os blocos do povo.
Estamos falando da possibilidade de
o Carnaval ser mais generoso. Além de ser uma festa da alegria, proporcionar
também àqueles que fazem cultura ter apoios tão generosos quanto o de quatro
grupos. Mas é ilusão achar que isso mudará em curto prazo. Os atores que podiam
brigar por isso estão às vezes mais preocupados em fazer parte do
jogo.
O chamado 'Afródromo' ajuda
ou atrapalha o cenário? [a iniciativa de Carlinhos Brown e outras seis entidades
de criar um novo circuito, exclusivo para os blocos afro, estrearia neste ano,
mas foi adiada pela nova gestão na prefeitura]
O Olodum tem brigado muito para sair
mais cedo e poder ser visto pela televisão. Para que empresas patrocinem de
forma equitativa os blocos afros.
Ao mesmo tempo, eles resolveram
fazer algo separado. O que a sociedade mais quer é que os negros escolham um
gueto para ir e se afastem da disputa com eles. É como se soubéssemos o lugar em
que deveríamos ficar, em vez de aparecermos na Barra, no Campo
Grande.
Mais ainda: obriga o poder público a
ter gastos com outro circuito, quando os recursos poderiam ser distribuídos de
uma forma melhor.
Até que ponto o monopólio afeta a
festa, a música local?
A diversidade, que antes era a
riqueza do Carnaval, foi diminuindo, e hoje o Ilê Aiyê, o Filhos de Gandhy, a
Timbalada e o Olodum correm um pouco no meio disso.
Mas nos demais lugares você não tem
novidades. A Bahia virou a terra de uma artista só. Parece que os outros estão
todos mortos.
Isso mata os artistas emergentes,
mata os que estão trabalhando e, em vez de fortalecer essa própria artista, a
fulmina, porque é a galinha dos ovos de ouro aberta para pegar ovos. A festa faz
de conta que está enriquecendo uma pessoa, mas na verdade está empobrecendo uma
cidade, um Estado.
A pessoa é Ivete
Sangalo?
Sim, ela.
E como o senhor vê a vinda de
celebridades como o sul-coreano Psy, para ações publicitárias, com o discurso de
prestigiar o Carnaval?
Essa mudança, de a gente precisar de
elementos como esses, é uma coisa recente, tem 20 anos. Antes, as pessoas vinham
para participar, para conhecer o Carnaval de Salvador. Com o tempo, passou a
ser: 'Eu quero que você venha para você ser importante para o Carnaval'.
Inverteu. O Carnaval é que era importante para essas pessoas.
O pessoal pergunta: qual é a atração
deste ano do Olodum? É a banda Olodum. A banda mais internacional da Bahia: 37
países, quatro Copas do Mundo, tocou com os últimos 30 grandes nomes da música
mundial. Na visão de outros grupos, outros artistas, eles não são atrações no
Carnaval de Salvador, atração é o coreano, é a atriz da Globo.
A novidade do Olodum é o
samba-reggae, é a força biológica da música que a gente tem, a música de
protesto...
E existem novas músicas do Olodum
assim?
Tem, e atuais. Agora, qual rádio que
toca pagode, sertanejo e funk vai tocar música de protesto? Vou dar um exemplo
bem simples: ninguém consegue mudar a ordem do desfile de Salvador, porque foi
imposta pelo capital. A ordem é: quem tem mais
dinheiro.
Mas qual prefeito ou governador vai
dizer: "A gente banca o Carnaval, dá segurança, saúde, infraestrutura, gasta R$
84 milhões, e todos terão de cumprir a seguinte diretriz -será um desfile
alternativo, com um bloco afro, depois um afoxé e um bloco de trio. Um bloco
travestido e um trio independente. Em horários que todos possam aparecer na TV".
Quero ver qual autoridade da Bahia vai fazer isso.
E Claudia Leitte? Parte do
público e da crítica diz que ela tenta repetir Ivete, que não teria
identidade...
Não posso falar disso, porque esse é
um problema dessas cantoras, desse tipo de personalidade cuja força é o caráter
étnico. A força delas é que são cantoras brancas. Se elas se imitam ou não, não
posso dizer nada, é o mercado que elas escolheram. De serem cantoras brancas,
que dominam todo o mercado de publicidade, todo o mercado de shows, e que uma
compete com a outra.
Recentemente, uma delas colocou o
filho para subir no palco, e a outra fez o mesmo.
E tem a gravidez de cada uma, tudo
que é feito para gerar noticia. Estou preocupado inclusive com Spike Lee, para
ele não engravidar ninguém aqui nesse período [risos], para criar notícia,
entendeu?
Agora, um fato é importante: elas
exercem um papel importante na música brasileira e souberam dar um ar
profissional a isso que é uma resposta também às demandas da própria comunidade
negra. Você, com ótimas cantoras negras aqui, numa cidade de maioria negra, não
capitalizar isso é um erro estratégico. Para você ver a força do racismo e da
alienação. As cantoras negras da Bahia seriam milionárias nos EUA.
E os desfiles das escolas de
samba no Rio e em São Paulo?
Olha, eles foram importantes nos
anos 10 e 20 do século passado para formar uma cultura do samba. Depois, foram
engessados pelo modelo de desfile, pelo sambódromo e continuam sendo um
espetáculo maravilhoso... De ver. Mas sem participação ampla, e isso difere do
Recife, de Olinda e de Salvador.
Por isso o Rio está tendo essa
explosão de blocos de rua, mostrando que as pessoas cansaram desse modelo da
fantasia, das alas, da batida, de 90 minutos de desfile. Sem falar da guerra
publicitária, dos enredos patrocinados.
Em algum momento o Carnaval foi
uma festa popular?
Nunca, ainda não é e talvez não
seja. É uma festa de multidões, mas que tem uma repressão muito grande sobre
tudo. O Carnaval é extremamente limitado, onde se desfila, se bate foto, é
preciso pagar taxas. E não é isso que é vendido para o mundo.
Veja, um dos fenômenos mais
interessantes do Carnaval é a visibilidade da homossexualidade. Mas é também no
Carnaval em que os homossexuais são mais agredidos. Ao mesmo tempo em que parece
que a cidade fica liberal, receptiva ao outro, ela é extremamente
conservadora.
O Carnaval está migrando para ter os
bailes de novo, os camarotes, uma estrutura mais apartada ainda do que se
conseguiu ter nos blocos de trio nos horários de desfile.
Mas o Olodum segue
nela...
O Carnaval não é a salvação, não é o
fim do mundo. É algo importante para a civilidade que precisa emergir, mas não
se resolvem os problemas das cidades sem o confronto. O Carnaval é a cara da
sociedade. Só em um momento o brasileiro se mostra como ele é. É no
Carnaval.
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