quarta-feira, 24 de dezembro de 2025

 

Território Livre – Marcos da Memória da UnB – Residência Artística Erica Ferrari

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Território Livre – Marcos da Memória da UnB – Residência Artística Erica Ferrari. / Organização, Alex Calheiros, Estefânia Dália, Erica Ferrari e Gregório Soares. – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2022. 68 p.

https://www.editora.unb.br/downloads/Cat%C3%A1logo_Territ%C3%B3rio_Livre_DIGITAL2024.pdf

 

 

No dia 12 dezembro, em cerimônia na Reitoria da UnB foram entregues os prêmios de direitos humanos (Anísio Teixeira) e de educação em direitos humanos (Myreia Suárez), em cerimônia presidida pela Reitora Rozana Naves (https://noticias.unb.br/8249-premios-de-direitos-humanos-da-unb-conheca-as-iniciativas-vencedoras-em-2025).

O Prêmio Anísio Teixeira – IV Edição (2025) premiou três iniciativas, uma em cada categoria: Igualdade, diversidade e não discriminação: Caleidoscópio – Profª Viviane de Melo Resende (IL/UnB); Saúde, meio ambiente e bem-estar: População em situação de rua em Brasília: avaliação da presença de transtornos mentais e demandas por saúde – Profª Andrea Donatti Gallassi (FCTS/UnB) e Democracia e participação: Projeto Formação Comunitária em Direitos Humanos (projeto desenvolvido em parceria com o Conselho Nacional de Direitos Humanos, o Ministério dos Direitos Humanos e o Setor de Direitos Humanos do MST – Prof. José Geraldo de Sousa Junior,  Profª Tatiana Rampin (FD/UnB) e Prof. Antonio Sérgio Escrivão Filho. Em nome do projeto recebeu a distinção Ayala Ferreira, coordenadora nacional da área de formação em direitos humanos do MST.

Já o Prêmio Mireya Suárez – IV Edição (2025) contemplou e agraciou cinco categorias: Educação básica: LeiA – Leitura e Ação Lúdico-Pedagógica – Prof. Erlando Reeses (FE/UnB); Educação superior: Ubuntu: Frente Negra na Ciência Política da UnB – (IPOL/UnB); Educação em contextos não escolares: Território Livre: Marcos da Memória – Estefania Dália; Educação para profissionais dos sistemas de justiça e/ou segurança: Guia do Transtorno do Espectro Autista – Matheus Rudo; e Educação e mídia: Memória e Ditadura Militar no DF – Prof. Matheus Gamba Torres

Pelo Prêmio Myreia Suárez DH 2025 – Território Livre: Marcos da Memória, falou o historiador Paulo Parucker. Ele começou por agradecer a oportunidade, com o registro também da passagem de 10 anos desde que esteve na mesma cerimônia para apresentar a público a síntese do Relatório final da CATMV-UnB, então premiada.

Sobre a CATMV/UnB – Comissão Anísio Teixeira de memória e Verdade da UnB, e do belíssimo e consistente Relatório que produziu, remeto a meus comentários em https://estadodedireito.com.br/relatorio-da-comissao-anisio-teixeira-de-memoria-e-verdade-da-universidade-de-brasilia/.

Na sua manifestação Prarucker recuperou da UnB – o projeto inicial (Anísio/Darcy): artes integradas ao conhecimento acadêmico, não como apêndice ou anexo mas como parte do todo: sensibilização, mobilização, transformação.

No tema, relembrou o Golpe de 1964 – para assinalar o projeto interrompido (referência a Roberto Salmeron). 1964, 1965, … 1968: invasões, prisões, demissões, perseguições, mas também brava resistência: “Território Livre” da UnB (expressão tomada das lutas anti-coloniais na Ásia, na África, nas Américas).

Aqui também remeto à recensão que fiz sobre o livro de Salmeron –  https://estadodedireito.com.br/a-universidade-interrompida-brasilia-1964-1965/ – principalmente à reedição comemorativa de 2012, ano do jubileu (50 anos) da UnB, na qual insiro um prefácio.

Depois Parucker fez remissão à Justiça de Transição, assinalando seus 4 pilares:  a) estabelecimento da verdade e memorialização; b) reparação (vítimas, familiares, sociedade); c) responsabilização judicial dos perpetradores de graves violações DH;  d) transformação das instituições para não-repetição. DH e Direito à Memória e à Verdade.

Com efeito, esses pilares estão designados com qualificada fundamentação e referências autorais fortes em Sousa Junior, José Geraldo de. O direito achado na rua: introdução crítica à justiça de transição na América Latina / José Geraldo de Sousa Junior, José Carlos Moreira da Silva Filho, Cristiano Paixão, Lívia Gimenes Dias da Fonseca, Talita Tatiana Dias Rampin. 1. ed. – Brasília, DF: UnB, 2015. – (O direito achado na rua, v. 7), obra paradigmática que pode ser consultada aqui: https://www.gov.br/mj/pt-br/central-de-conteudo_legado1/anistia/anexos/direito-achado-na-rua-vol-7_pdf.pdf.

Para Parucker, lembrar é resistir: memorializar as graves violações DH (torturas, sequestros, prisões, assassinatos, ocultação de cadáveres, espionagem, e também as lutas de resistência).

E foi nesse diapasão que aludiu à Convocatória Residência Artística Território Livre: (2012-2015: CATMV-UnB e relatório); (2019 Edital DEX; seleção: nov/2019, Érica Ferrari; previsão: abril/2020); (Pandemia março/2020); (Residência remota/virtual, 2º semestre de 2020: lives, debates, entrega do projeto: marcos de memória); (2022, publicação do Catálogo 2022); (Editais SDH/UnB – Prêmios: 2024, CATMV-UnB; 2025, Resid.Art.Território Livre).

E, finalmente, ao projeto premiado: marco de memória a ser instalado no campus, replicado em pontos diversos, não como elemento único e monumental na paisagem mas em pontos diversos e menores, lugares de memória que incentivem o encontro e a troca de experiências, visando passado e futuro. Lugares de abrigo do corpo (corpo que, na repressão, foi espaço de privação e dor, e na democracia  é território livre e palco de encontro), acentuando o quanto a proposta incide nas várias formas do fascismo que seguem vivas, também a luta pela liberdade e pela democracia segue viva e pulsante: lutas intergeracionais, para poder seguir, disse ele, “sorrindo”, porque “A vida presta”.

A manifestação de Paulo Parucker, em si e pelo tema distinguido pela premiação, me instigou buscar o material a ele referente inteiramente exibido na publicação objeto deste Lido para Você, que aproveito para fazer acessível por meio do link que leva a seu inteiro teor.

Em todo caso, extraio do texto, em registro do próprio Paulo Parucker, um excelente esboço do que representa a publicação:

Com a edição do presente catálogo, fica assinalado mais um passo, pequenino que seja, na caminhada coletiva em prol da Memória e contra o Esquecimento. Graves violações de direitos humanos foram cometidas, por agentes públicos ou não, durante a ditadura, atingindo violentamente a comunidade universitária e, de modo peculiar, algumas pessoas, grupos e entidades.

Variadas formas de luta, resistência e oposição à ditadura foram colocadas em movimento. “Se lembrar é um dever”, o relatório da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB (CATMV-UnB) pode até sinalizar uma etapa do dever cumprido. Mas, o registro, apenas, é pouco: lembrar não basta.

É preciso diversificar os meios de levar adiante essa história, evitando que ela se restrinja a notas repousadas numa estante remota. Trata-se de trazê-la viva para, sob as luzes e sombras do presente, enfrentar as inquietações e desafios que não cessam de nos confrontar no tempo.

Desde que se encerraram, formalmente, os trabalhos da Comissão da Verdade da UnB, em abril de 2015, com a divulgação do seu relatório final, algumas e alguns dos membros seguiram articulando pequenas ações de publicidade dos esforços da CATMV, inclusive um projeto de memorialização no campus.

O início desse trabalho de memória foi cogitado para se dar, circunscritamente, no estacionamento da Associação dos Docentes da UnB (ADUnB), próximo de onde, cinco décadas antes, situou-se o “Barracão da FEUB”, espaço institucional e histórico de mobilização estudantil. Especulou-se dar forma a um parlatório de cimento, ou algo nessa linha, que pudesse se constituir numa marca (de memória), tornando presentes memórias tão caras.

A ação, pensada desde fins de 2018 e reelaborada em seus limites e propósitos, recomposta e redimensionada, acabou por ser alinhavada no âmbito da Diretoria de Difusão Cultural do Decanato de Extensão da UnB, em registro colaborativo com pessoas da CATMV-UnB, da ADUnB, da alta direção universitária e de outras interfaces.

A Convocatória Residência Artística Território Livre, cujo nome evoca estratégias da luta anti-imperialista do Vietnam, dos anos 1960, e suas ressonâncias no movimento estudantil – e igualmente na repressão ditatorial contra ele desencadeada -, dialoga com essa construção coletiva.

Esse chamamento veio a público no dia 31 de maio de 2019, no bojo de um debate, organizado por militantes da memória e das lutas estudantis.

O ato-debate aconteceu, propositalmente, na entrada centro-norte do Instituto Central de Ciências da UnB – o charmoso “Minhocão” – num espaço caro às lutas dentro da universidade, o chamado “Ceubinho” – brilhante solução arquitetônica de estada e de passagem no campus Darcy Ribeiro, ela mesmo um peculiar lugar-testemunho.

Passados 42 anos, rememorava-se o início da histórica greve de 1977, na UnB, marco temporal relevante a ligar os acontecimentos da Universidade e de Brasília à agitada conjuntura nacional de então, e ao processo de hesitante distensão política do regime, após mais de uma década de repressão violenta: vivia-se o retorno de manifestações estudantis e populares pela volta das liberdades democráticas.

Vale acrescentar, às várias camadas dessa história, os tempos bicudos do presente, de ataques ao pensamento, à educação, à universidade; tempos de militarização do serviço público, de saudação oficial a torturador, tempos de negacionismo obscurantista.

E, contra isso, seguir lutando. Lançado o edital, tratou-se do processo de seleção de proponente para, no transcurso de uma breve residência artística, achegar-se a essas memórias, discuti-las, reelaborá-las e apresentar seu projeto de memorialização. A experiência, com as contingências ligadas à Covid-19, foi vivida em chave remota, via internet, redes sociais, webinários, lives, gravações. Em pauta, um projeto factível de monumento ou obra artística no campus, a partir de orçamento módico, tendo no horizonte margem para projeto mais amplo, no sentido de sinalizar, espacialmente, algumas marcas de memória.

Penso que, em relação ao resultado concreto da seleção, a Convocatória Território Livre foi bastante bem sucedida, nomeadamente na escolha de Erica Ferrari e, depois, no segundo semestre de 2020, na conclusão da residência artística com debate e apresentação dos produtos, nos termos do instrumento de chamada.

Celebro, assim, a estimulante troca de informações, apreciações, experiências e visões de mundo, possibilitada pelo ambiente virtual durante os dias de pandemia. Saúdo, com muito gosto, os interessantes projetos artísticos, afinal apresentados, e torço para que, oportunamente, ganhem materialidade e atuação no labor memorial. Sobre o sucesso, o catálogo fala por si mesmo.

Em vez de agradecimentos nominais, e ante a circunstancial restrição sanitária a efusivos abraços, deixo uma afetuosa saudação a tanta gente com quem temos compartilhado essa caminhada, que segue. Um pé depois do outro. Entre memórias e utopias.

A estrutura do catálogo se sustenta pelo sumário conforme os temas que a organizam:

Território Livre – Um marco de diálogo e criação

Breve memória de um processo de memória

O exercício constante da memória

Comissão de seleção e curadoria

Registros de uma Residência: memória, resistência e virtualidade

A artista selecionada

Território Livre

Projeto Laboratório-Memória

 

E ponho em relevo como chave de leitura da obra, a apresentação que prepararam os professores Alex Calheiros (Departamento de Filosofia da UnB) e Gregório Soares (Departamento de Artes Visuais da UnB):

A Lei nº 3.998, de 15 de dezembro de 1961, que autoriza a criação da Fundação Universidade de Brasília e o seu Plano Orientador, tinha como princípio a garantia do livre exercício de cátedra, da diversidade de pensamento, de liberdades científica, artística, cultural e política. Assim, no texto de sua criação, a Universidade de Brasília afirmava sua absoluta autonomia didática e científica. Mas, não tardou muito tempo, o país, e com ele suas instituições, em especial as educacionais e culturais, foram duramente perseguidas. São inúmeros os relatos e documentos que comprovam os momentos de terror, pelos quais a UnB passou. Sucessivas ocupações, interferências em suas atividades científicas, demissões e perseguições, fatos que deixaram marcas profundas. Como forma de afirmar a sua essência, entre 1964 e 1985, quando a Universidade viu sua autonomia ser mais gravemente ameaçada, surge entre os discentes a expressão: “UnB: Território Livre”. A sentença, que se espalhou pelas paredes da UnB, resgatada pela memória de uma fotografia emblemática numas das tantas conversas com a Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade, parceira de primeira hora desta iniciativa, tornou-se o ponto de partida para convocar a comunidade a pensar um passado que, de tempos em tempos, volta a assombrar a liberdade de reflexão e criação, própria da instituição.

Como forma de reafirmar a Universidade de Brasília como espaço de liberdade, a Diretoria de Difusão Cultural do Decanato de Extensão da UnB e a Associação de Docentes da UnB, resgataram, portanto, a expressão “TERRITÓRIO LIVRE”, mote norteador da residência artística que teve como objetivos o resgate da memória e a criação de espaços de debate e reflexão de um momento histórico vivido pela universidade que, no nosso entender, deve ser sempre renovado. Não permitindo, assim, que atitudes como aquelas, de silenciamento, praticadas por seus algozes, não se perpetuem de nenhum modo, no presente.

O material reunido aqui é o resultado do conjunto de ações promovidas pela residência e serve de registro sobre os debates ocorridos, ao longo dos processos reflexivo e criativo. Por meio dos encontros propositivos, em torno da memória da resistência universitária e afirmação de sua autonomia no presente, é que foram dadas as condições para que se apresentassem os marcos produzidos por Erica Ferrari, artista residente selecionada, e que podem ser consultados neste catálogo.

Por fim, cabe ressaltar que, com a Residência “Território Livre”, feita de encontros e diálogos pertinentes, no momento que nos coube, fizemos aquilo que deveria ser feito.

 

Como se percebe e se depreende do que sinalizam os formuladores aqui destacados relativamente ao projeto e até de um mergulho direto no catálogo livremente acessível, Território Livre nasce a partir de uma residência artística realizada no âmbito da Universidade de Brasília (UnB), articulada pela Diretoria de Difusão Cultural do Decanato de Extensão da UnB, com apoio da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade. O projeto parte de uma expressão simbólica — “UnB: Território Livre” — que surgiu entre estudantes como afirmação da autonomia da universidade frente às perseguições sofridas no período da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). Essa frase foi recuperada pela memória institucional e transformada no motor de reflexão e produção artística da residência.

O livro, que funciona como um catálogo/reflexão instigado pelo resgate da memória da UnB como espaço de resistência intelectual, política e cultural, especialmente nos anos em que sua autonomia foi gravemente ameaçada por intervenções autoritárias.

Enquanto promoveu debates e reflexões sobre a importância de recordar esse passado para afirmar a liberdade de pensamento e criação na universidade contemporânea, culmina em documentar os processos de criação artística e as intervenções realizadas pela artista residente Erica Ferrari, convidando a comunidade acadêmica e o público a dialogar com esses registros.

Na perspectiva dos textos reflexivos que abordam a memória da resistência universitária e os desafios da autonomia acadêmica frente a regimes autoritários, dos registros da residência artística, incluindo imagens, colagens e documentos visuais produzidos por Erica Ferrari ao longo do processo criativo e dos relatos e sínteses de encontros e debates ocorridos durante a residência — muitos deles realizados em formato remoto devido às condições sociais da pandemia de COVID-19, o catálogo acaba por marcar a memória e institucional no modo como as experiências da UnB durante o regime militar produziram essas marcas — materiais e simbólicas — que continuam a influenciar a vida universitária e cultural.

Trata-se, ao fim e ao cabo de um processo criativo e memória histórica, aguçado pela prática artística como mediação para refletir sobre passado e presente,

Levando a que Território Livre não seja apenas um catálogo de obras, mas um documento histórico e artístico que convida à reflexão crítica e à reafirmação da universidade como um espaço livre de pensamento. A publicação busca evitar que episódios de silenciamento e intervenção institucional sejam esquecidos, propondo que a memória da resistência seja constantemente revisitadas e reimaginadas, base para uma pedagogia da não repetição, do nunca mais, tão necessárias aos tempos correntes em que monstros e fantasmas parecem sair do obscuro em que hibernavam.

 

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