Assessoria Jurídica Popular: Relatos de uma trajetória formativa
Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF


Retiro o título deste artigo – Relatos de uma trajetória formativa – do documento-registro que os estudantes vinculados ao projeto de extensão “Assessoria Jurídica Popular Universitária Roberto Lyra Filho” elaboraram para sua última atividade de balanço ao final deste semestre letivo (2025) na Faculdade de Direito da UnB.
Impossibilitado de estar presente em razão de viagem acadêmica, não fui esquecido pelos estudantes extensionistas. Basta ver o vocativo do texto, assinado por Júlia Natour, ainda no bacharelado mas já em atuação funcional de relevo no Ministério da Justiça, na Secretaria Nacional de Acesso à Justiça.
Diz Júlia: “Querido professor, Como o senhor não poderá nos acompanhar no nosso último encontro da formação, lhe ofereço um gostinho do que foi esse processo tão bonito e potente. Imagino, talvez, que o senhor leia essa coletânea de relatos escritos pelos próprios formandos em pleno voo. Acho que o cenário combinará com as palavras aqui atenciosamente escritas pelos mais novos ajupianos. Reconheço, professor, que quando li, dei uma choradinha. Essa trabalheira toda que temos parece que dá frutos mesmo… Cada um com seu jeitinho, uns mais inspirados que outros, uns mais líricos, outros mais objetivos, mas todos denotam a sensibilidade desses jovens. E o que queremos se não juristas sensíveis, não é mesmo? Como toda oportunidade que tenho, agradeço do fundo do coração e da mente por ter construído (sempre coletivamente) e mantido (com bastante resiliência) esse espaço que muda a gente dum jeito inimaginável e indescritível. E tenho certeza, que mesmo na sua grande pequeneza, a AJUP Roberto Lyra Filho muda o nosso Brasil”.
Curiosamente, quase na mesma ocasião, eu participava de uma sessão de debate, promovida pelo NAJUC (UFC), com o apoio da AJUP Roberto Lyra Filho, da UnB, e em parceria com o Centro Acadêmico Clóvis Beviláqua, para o minicurso “O Direito Achado na Rua: Interlocuções e Práxis”.
O evento, com a participação do professor Newton de Menezes Albuquerque, professor-orientador do NAJUC, teve a mediação de Victor Müller e Elma de Oliveira Araujo (da AJUPRLF). A justificativa para a sua realização e para a minha participação, tomou em conta que “O Direito Achado na Rua propõe uma ruptura necessária com o elitismo e o formalismo que historicamente afastaram o povo da justiça. Ele nos ensina que o direito não é apenas um instrumento estatal de regulação, mas uma prática social de libertação que nasce nos espaços públicos e nas comunidades. Para as Assessorias Jurídicas Universitárias Populares (AJUPs), essa compreensão é o alicerce de tudo o que fazemos: é ela que nos permite superar o modelo assistencialista e paternalista tradicional. Ao adotar essa perspectiva, entendemos que a função da assessoria jurídica não é atuar “para” os movimentos sociais, mas construir “com” eles estratégias de emancipação. Inspirados na pedagogia de Paulo Freire e no pluralismo jurídico, reconhecemos que a luta dos trabalhadores rurais, das ocupações urbanas e dos coletivos feministas e negros cria legitimidade e novos direitos. As AJUPs são, portanto, a expressão prática desse conceito, transformando a universidade em um espaço de diálogo onde o saber técnico jurídico se une aos saberes populares”.
Em relação a AJUP Roberto Lyra Filho, tanto o texto-registro da Formação quanto as incidências descritivo-analíticas de sua origem relevância pedagógico-prática, há valiosas referências para consulta.
Desde logo um ensaio – “Sobre a AJUP Roberto Lyra Filho” – postado pelo professor Diego Dihel um dos seus fundadores (março de 2013), no sítio https://assessoriajuridicapopular.blogspot.com/2013/03/sobre-ajup-roberto-lyra-filho.html.
Diz ele: “Felizmente, foi possível congregar um grupo de estudantes da Faculdade de Direito da UnB e de outros cursos jurídicos de Brasília, e, com o apoio do professor José Geraldo de Sousa Júnior, coordenador da AJUP, foi possível a sua formalização no Decanato de Extensão da UnB como Projeto de Extensão de Ação Contínua (PEAC). Com isso foi possível obter apoios na forma de bolsas e fomentos, impulsionados ainda pelo apoio do Núcleo de Prática Jurídica (NPJ), no qual o projeto possui atualmente um espaço para sua organização. A assessoria jurídica popular era até então relativamente desconhecida na FD-UnB, cuja trajetória é forte na construção de projetos de extensão que atuam na educação popular em direitos humanos, sempre sob a perspectiva do Direito Achado na Rua, mas sem maior experiência no campo da advocacia popular (a maior experiência nesse sentido havia ocorrido no caso da Vila Telebrasília, no início dos anos 1990). A AJUP veio portanto para se somar às iniciativas de extensão popular, com o diferencial de buscar articular 3 eixos de atuação: (i) advocacia popular; (ii) educação popular; e (iii) fortalecimento político dos movimentos populares”.
Remeto nesse aspecto descritivo-analítico a duas monografias de bacharelas egressas do projeto, documentos fundamentais para compreender a fortuna crítica desse belo projeto. Aliás, sobre eles desenvolvi recensões em que busco situar o autoral com o contexto de atuação do modelo de assessoria jurídica. Em https://estadodedireito.com.br/praticas-juridicas-extensao-e-acesso-a-justica/ , comento a monografia Práticas Jurídicas, Extensão e Acesso à Justiça, de Rayssa Cavalcante Matos. Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do grau de bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, 2023. Rayssa acaba de ser nomeada vic-epresidente da Comissão de Advocacia Popular da Ordem dos Advogados do Distrito Federal.
O outro estudo é o de Adda Luisa, em sua monografia de conclusão de curso na Faculdade de Direito da UnB (cf. http://estadodedireito.com.br/o-papel-da-extensao-popular-na-democratizacao-da-justica-a-experiencia-da-assessoria-juridica-universitaria-popular-roberto-lyra-filho/ ). Tendo como base teórica, principalmente O Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente, Adda sustenta como hipótese de pesquisa “que AJUP-RLF, assim como muitos projetos de extensão, vivenciou, ao decorrer da sua história, gerações, muito marcadas pelos membros que estavam à frente do projeto na época”, todos mobilizados por uma concepção emancipatória de jurídico, notadamente na UnB (http://estadodedireito.com.br/a-pratica-juridica-na-unb-reconhecer-para-emancipar/; também (http://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-e-as-possibilidades-de-praticas-juridicas-emancipadoras/) e a sua proposta “é desenvolver essa tese ao decorrer da escrita do artigo, assim como, apresentar a atuação do projeto com os movimentos sociais no DF”.
Mais recentemente me deparei com o artigo Entre a Rua e a Universidade: o Direito Achado na Rua como Fundamento das Assessorias Jurídicas Populares, acessível em https://www.pjed.com.br/entre-a-rua-e-a-universidade-o-direito-achado-na-rua-como-fundamento-das-assessorias-juridicas-populares/.
O artigo, de autoria de Catarina Pierdoná Wasilewski e Amanda Vaz Tonhá, graduandas em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e membras da Assessoria Jurídica Universitária Popular Roberto Lyra Filho (AJUP-UnB) – As Assessorias Jurídicas Populares: expressão prática do Direito Achado na Rua – indica como as “Assessorias Jurídicas Populares (AJUPs) surgiram no ambiente universitário, principalmente em cursos de Direito de universidades públicas, como desdobramento da prática extensionista e da militância estudantil. Elas têm como objetivo fundamental promover a articulação entre o saber jurídico e os saberes populares, superando o modelo assistencialista e paternalista que tradicionalmente marcou a relação entre operadores do direito e comunidades. Em vez de atuar como representantes passivos, os assessores se colocam como parceiros, construindo com os movimentos sociais estratégias de resistência e emancipação”.
As autoras mostram como essa perspectiva “dialoga diretamente com a pedagogia crítica de Paulo Freire (2011), que enfatiza a necessidade de uma educação dialógica e transformadora. Assim como na educação popular, a assessoria jurídica popular parte da realidade concreta dos sujeitos, buscando problematizar as causas estruturais da opressão e estimular a consciência crítica. Nessa medida, o direito é compreendido como prática social libertadora, e não apenas como ordenamento imposto de cima para baixo”.
As autoras dão à dimensão pedagógica das AJUPs no interior da universidade, afirmando que “O Direito Achado na Rua constitui a base teórica indispensável para as Assessorias Jurídicas Populares. Ambas partem da mesma premissa: o reconhecimento de que os movimentos sociais são sujeitos produtores de direito e que a função do jurista crítico é colaborar, em pé de igualdade, na construção desses processos emancipatórios. Pois é nas ruas — onde a lei muitas vezes silencia, mas a vida clama — que o direito renasce. O Direito Achado na Rua é, portanto, mais que uma proposta acadêmica: é um gesto de insurgência, um grito coletivo que recorda à sociedade que o verdadeiro direito se faz de chão, de luta e de povo”.
Destaque para o documento e base do encontro são os Relatos de uma Trajetória Formativa. Os relatos dos extensionistas da AJUP refletem a importância da formação e do engajamento social na construção de uma nova perspectiva jurídica.
Além de Julia, há outros relato: Júlio relata a experiência de acolhimento e a busca por um direito mais humano e próximo da realidade social; André discute o papel da educação pública na democracia e a importância da extensão universitária; Manuela reflete sobre a construção do Direito e a necessidade de sensibilidade nas práticas jurídicas; Rômulo apresenta uma narrativa cyberpunk que critica a desigualdade social e a exclusão no acesso à justiça; Larissa compartilha suas impressões sobre a visita ao acampamento do MST, enfatizando o protagonismo feminino e a luta por direitos; Samuel aborda a participação feminina na política e os desafios enfrentados por mulheres em espaços de poder.
Para mim, não foi surpresa identificar nas apresentações orais e no compartilhamento de conhecimento e nos participantes, expressões fortes de talentos já manifestados, sobretudo autorais, e não só na modelagem acadêmica.
Além de referências anotadas ao longo deste artigo, assinale-se a alta competência na edição do documento funcional Dossiê acesso à justiça socioambiental e direitos territoriais / elaboração técnica Daniel Ferreira dos Reis, Julia Zucchi Natour, Vitor Hugo Moraes – Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública. Secretaria Nacional de Acesso à Justiça, 2025 (file:///C:/Users/HP/Documents/JG2025/copy_of_DOSSIESEMINRIOACESSOJUSTIASOCIOAMBIENTALEDIREITOSTERRITORIAIS_compressed3.pdf). Me chamou a atenção a narrativa cyberpunk de Rômulo, no melhor estilo literário, nada a dever a Wiliam Gibson, autor de Neuromancer (4 ed. – São Paulo: Aleph, 2008)
Sem dúvida nenhuma, a atividade tal como traduzida nos Relatos demonstrou ser um método eficaz para a integração e reflexão crítica sobre as comunidades. A abordagem pedagógica e inovadora trouxe resultados positivos na integração do grupo. E, no conjunto, certamente terá proporcionado, para a satisfação dos professores orientadores (penso com distinção no professor Antonio Sérgio Escrivão Filho, coordenador acadêmico do projeto. Para mais ver: https://estadodedireito.com.br/programa-terra-de-direitos-de-formacao-em-assessoria-juridica-popular-para-advogadas-e-advogados-de-movimentos-sociais/; https://estadodedireito.com.br/direito-caminho-ou-obstaculo-para-a-transformacao-social/; https://estadodedireito.com.br/mapa-territorial-tematico-e-instrumental-da-assessoria-juridica-e-advocacia-popular-no-brasil/), uma reflexão crítica sobre o espaço geográfico e a dinâmica social das comunidades apoiadas, além de aquisições político-epistemológicas para todos e todas, especialmente estudantes e docentes.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
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