ARTIGO
A educação como condição para a soberania de um povo
Por um projeto educacional à altura de um país verdadeiramente soberano
A palavra soberania voltou ao centro do debate político brasileiro com a questão das tarifas impostas unilateralmente ao Brasil, no conturbado contexto geopolítico mundial. A palavra em si estava meio em desuso, embora elementos já houvessem suficientes para erigi-la ao centro de um projeto de país de forma cotidiana, uma vez se tratar o Brasil de uma economia periférica e dependente, do chamado sul global, e que ainda luta para encontrar seu destino no planeta ou, como diria o saudoso Darcy Ribeiro: se tornar uma Roma dos trópicos.
Por óbvio, o conceito de soberania irradia para vários aspectos da construção de um povo. Com ele se pode conectar o desafio de desenvolvimento de sua capacidade industrial, de sua autonomia tecnológica, redução das desigualdades – pois não pode se falar em povo soberano com fome -, condições militares de auto defesa e, para chegar ao ponto deste texto, todos esses elementos são indissociáveis de uma proposta ou um projeto a longo prazo de educação. Educação, claro, de qualidade, de amplo acesso e igualdade de condições.
Ao longo desses anos, alguns passos foram dados como a política de cotas. Padece o país de um projeto educacional levado a sério. Não obstante os esforços da nova gestão, é preciso muito mais. É urgente, se queremos ser um país soberano, resgatar e atualizar a memória de Darcy Ribeiro que deixou como legado uma vida dedicada ao sonho de fazer, pela educação, o Brasil dar certo.
Darcy foi um dos intelectuais brasileiros mais ativos e profícuos de nossa história, sendo dele inúmeros projetos educacionais muito à frente do seu tempo, como os CIEPS e a luta por uma educação integral de qualidade para todos e todas.
Não podemos deixar de falar, também, do gigante e parceiro de Darcy, Roberto Salmeron, intelectual fundamental para a criação e funcionamento da Universidade de Brasília (UnB), então coordenador-geral dos Institutos Centrais de Ciências e Tecnologia. Salmeron relatou as inovações que a UnB introduziu na estrutura universitária da época, adotadas depois pelas outras universidades em um livro fundamental intitulado “A Universidade Interrompida: Brasília 1964-1965”. Nesta obra relata, ainda, como se formou a crise que abalou profundamente a universidade, cujo ponto culminante foi a demissão coletiva solicitada por 223 professores, em outubro de 1965, depois de 29 docentes terem sido demitidos arbitrariamente.
Neste ponto, documento importante deste momento histórico e que ainda é muito atual, é a mensagem enviada ao Congresso Nacional pelo ex-presidente João Goulart, o que primeiro formulou um programa de metas orientado por grandes reformas para inserir o Brasil no contemporâneo e criar condições de desenvolvimento com justiça social.
Vale ler um trecho:
“Quanto ao ensino superior, o esforço governamental destina-se a transformá-lo, efetivamente, em meio para a formação de técnicos de alto nível e que atendam às necessidades do progresso industrial. Mediante reformulação dos currículos universitários e pela duplicação de matrículas no primeiro ano dos cursos de nível superior, estamos dando os primeiros passos para, efetivamente, integrar a Universidade no processo nacional de emancipação econômica e cultural e para abrir-lhe mais largamente as portas ao maior número de jovens aptos a receber preparo científico e treinamento técnico moderno.
É justo pôr em relevo o papel pioneiro da Universidade de Brasília, novo modelo de universidade, inspirado, não só na experiência das mais avançadas organizações mundiais de ensino superior, como também nos reclamos da sociedade brasileira nessa fase decisiva de transformação sociocultural.”
O sonho de Darcy, Jango, Salmerom e Anisio Teixeira, precisa ser constantemente resgatado. Mais que isso, precisa ser colocado em prática.
No contexto da educação no campo, importante ressaltar o papel do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, (Pronera), política pública criada ainda na gestão do governo FHC, mas que, ao longo das gestões petistas, ampliou-se bastante com diversos cursos e trabalhadores formados. O Pronera apresenta e apoia projetos de ensino voltados ao desenvolvimento das áreas de reforma agrária e é fruto da luta de milhares de trabalhadores e trabalhadoras brasileiras por educação.
A política pública é direcionada a jovens e adultos moradores de assentamentos criados ou reconhecidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), quilombolas, professores e educadores que exerçam atividades educacionais voltadas às famílias beneficiárias, além de pessoas atendidas pelo Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF).
Em que pese o esforço enorme de milhares de educadores, trabalhadores e professores das universidades, não tem sido incomum ações de judicialização contra o programa por absoluta falta de compreensão ou por questões ideológicas que visam manter os grilhões sob os pés e as mãos de milhões de brasileiros sem acesso à educação de qualidade.
Para o bem do Programa, muitas decisões judiciais favoráveis de tribunais em todo o país têm contribuído para a formação de centenas de trabalhadores nos mais variados cursos e graus de ensino e, oxalá, este programa seja cada vez mais ampliado e fortalecido como uma verdadeira política de Estado.
O Brasil só poderá falar em soberania quando fizer um profundo e amplo programa nacional de educação, com acesso total das classes sociais a todos os seus níveis. Isso se coaduna com um projeto popular e uma visão de longo prazo. Condições sem as quais, ainda que temporariamente liderados por governantes que respeitem o povo brasileiro, estaremos sempre vulneráveis e fragilizados no contexto geopolítico. Bons exemplos educacionais como o da China e Índia, não faltam mundo a fora. Como diria o grande pensador e herói cubano José Martin “Só o conhecimento liberta”.
Que nos inspiremos todos no legado de Martín, Darcy, Paulo Freire, Anísio Teixeira, Antonieta de Barros, Nise da Silveira, Salmeron e tantos outros vultos, para recuperar e construir um projeto educacional à altura de país verdadeiramente soberano.
*José Geraldo de Souza Junior e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
*Patrick Mariano Gomes é doutor em Filosofia e Teoria Geral do Estado pela Universidade de São Paulo (USP)
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
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