Seminário e Residência Petrobras Voo Livre História. Companhia Brasileira de Teatro
Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF


Foto de Kamilla Pacheco
Na sua temporada de 2025, o espaço do Festival Cena Contemporânea, abriu-se para um campo de mobilização pela arte cênica. A companhia brasileira de teatro lança seu novo e instigante projeto, História, no CENA CONTEMPORÂNEA – Festival Internacional de Teatro de Brasília. Entre 22 de agosto e 3 de setembro, a iniciativa pretende realizar, dentro da programação do Festival, uma série de ações na área das artes cênicas, como a Residência Voo Livre-História e o Seminário História, ambos gratuitos, além das apresentações do espetáculo AO VIVO [dentro da cabeça de alguém]. Para melhor ver em https://cenacontemporanea.com.br/2025/amaro-e-a-orquestra-alada-trovao-da-mata/.
Agradeço a Guilherme Reis, idealizador do Cena Contemporânea, o convite para participar do seminário História. Creio que são cerca de 30 anos de uma realização contínua. O projeto “Cena Contemporânea” em Brasília, mais especificamente o Festival Internacional de Teatro de Brasília, realiza-se desde 1996, orientado pelo conceito de promover as artes cênicas, oferecendo uma plataforma para artistas nacionais e internacionais compartilharem seus trabalhos.
Notável em sua realização é a Diversidade Artística (apresentar uma programação diversa, incluindo teatro e dança, para todas as idades), a Reflexão e o Debate (espaço para discutir as artes cênicas e seu futuro), Inovação (oferecer apresentações inovadoras e experimentais, incluindo trabalhos especialmente preparados para o festival) e Acessibilidade (tornar a arte acessível ao público, com apresentações gratuitas e virtuais, quando necessário.
Na página do Festival, há a explicação de que “as ações fazem parte da programação de um projeto mais amplo e ousado da companhia, chamado HISTÓRIA, apresentado pela Petrobras por meio da Lei Rouanet e Ministério da Cultura do Governo Federal do Brasil. Trata-se de um projeto de manutenção da companhia brasileira de teatro que se estrutura em três eixos principais de atividades, distribuídas ao longo do período de um ano (agosto/2025-julho/2026), com possibilidades de extensão e desdobramentos para além do circunscrito no projeto inicial”.
Neste 2025 o projeto insere na programação o Seminário História. São “Encontros entre integrantes da companhia brasileira de teatro e convidados especiais, para refletir sobre prismas fundamentais da história do Brasil, abertos à participação do público. A atividade é ligada à plataforma de criação artística VOO LIVRE, criada em 2023, pelo diretor Márcio Abreu, pelas atrizes Nadja Naira e Cassia Damasceno e pelo produtor José Maria, para ressignificar processos criativos e propor perguntas sobre como seguir fazendo arte no mundo de hoje. A proposta é levantar, junto com os espectadores, as possíveis relações entre história íntima e história coletiva: como cada pessoa, individualmente, pode interferir na grande História e como ela determina aspectos das nossas próprias vidas. O material servirá de base para a dramaturgia de um novo trabalho da companhia”.
Além da participação especial de convidados ilustres como o advogado Carlos Moura, referência na luta pelos direitos humanos e pela igualdade racial; a professora Glória Moura, doutora em Educação pela USP e pioneira da luta pela inclusão racial nas universidades; a psicóloga, professora universitária e ativista brasileira Jaqueline Gomes de Jesus; eu próprio, a convite do Guilherme Reis e com o acolhimento de José Maria e Lilian Bento, figuro entre os convidados, na programação do dia 30/8 (sábado) – Teatro Marco Antonio Guimarães (Espaço Cultural Renato Russo 508 Sul), das 17h30 às 20h., para contribuir para o debate. Estive na roda de conversa que então se realizou compartilhando a minha apresentação com a minha esposa Nair Heloisa Bicalho de Sousa, do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Cidadania, ela própria uma interprete da história social de Brasília, a partir do “subterrâneo”, condição de resgate de memória social disputando com as “histórias oficiais”.
Nair, que sensível à capacidade da arte de apreender o mundo (lembrando Eduardo Lourenço segundo o qual a literatura e a arte não são delírios, mas apreensão do real por meio de outra linguagem), demonstrou essa capacidade mediadora quando depois de entrevistar lideranças das marchas do MST sobre Brasília em 1997, e de estudar os diários da marcha, os registros feitos em cadernos escolares, acabou por desistir de escrever um ensaio sociológico sobre o acontecimento, sua intenção original, e compôs com esse material uma peça de teatro – O Brasil em Movimento por Reforma Agrária, Emprego e Justiça – que pode ser lida nas páginas 384-396 de Série O Direito Achado na Rua, vol. 3: Introdução Crítica ao Direito Agrário/Mônica Castagna Molina, José Geraldo de Sousa Junior, Fernando da Costa Tourinho Neto (organizadores). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002.
Para Nair, ela lembrou no debate, com Michael Pollack (POLLACK, M. Memória, esquecimento e silêncio. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, ,n. 3,1989), que memória e esquecimento estão em disputa constante no exercício do poder. Democratizar a memória, portanto, é condição para que diferentes gerações tenham acesso à verdade e para que o passado ilumine as estratégias do presente. Hannah Arendt (ARENDT, Hanna. Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 1973) ressaltava a importância de restaurar a verdade como fundamento da política, enquanto Walter Benjamin (BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987) via a memória histórica como apropriação de reminiscências que surgem em momentos de perigo, permitindo ressignificar experiências do passado para orientar a ação no presente.

Foto de Kamilla Pacheco
Pensando a relação entre arte e história, comecei por me perguntar sobre tal entrelaçamento, desde minhas memórias de leituras literárias, quando, lendo Tolstói, acabei me deparando no epílogo de sua grande obra (Guerra e Paz), com um ensaio em que o grande autor se pergunta sobre o que move a História? Ali, Tolstói, em face do confronto entre Napoleão e Kutuzov acaba se conformando ao conceito de que a história não é obra dos “grandes homens”, mas da soma de infinitas ações individuais. Claro que ele quer encontrar um fundamento numa lei geral que refere essa massa de atos, como uma espécie de “necessidade histórica” que se manifesta como resultado de todos esses movimentos.
Roberto Lyra Filho critica a visão do escritor russo de que a história é determinada por forças conscienciais e subjetivas, ignorando as relações de poder e as estruturas sociais que influenciam os acontecimentos históricos. Para ele, assim como para Benjamin, Tolstói ainda que superando os aspectos objetivos e materiais da história, não venceu o limite da compreensão da dinâmica social e política, que se move por impulso não de indivíduos mas de coletivos, de sujeitos coletivos históricos.
Penso que essa percepção centrada no indivíduo que tem apelo literário, dificilmente escapa da relação entre história singular e a geral cujo entrelaçamento determina os acontecimentos.
Penso em Alexandre Dumas na cena de “Vinte Anos Depois” (Vingt Ans Après), continuação de “Os Três Mosqueteiros”. Durante a Fronda (período de revoltas contra o governo de Mazarino na França, por volta de 1648), o porteiro da Bastilha (ou de um outro posto estratégico) — por causa de uma briga com a amante — esquece de trancar uma porta ou de assumir seu posto com rigor, permitindo que os conspiradores ou inimigos do governo tomem o local de surpresa.
Dumas utiliza esse incidente para mostrar como um detalhe da vida privada de um personagem pode ter efeitos desproporcionais sobre a vida pública e os destinos de um país.
Benjamin em “Sobre o conceito de história”, também conhecido como “Teses sobre o conceito de história” (1940), refere a essa passagem na Tese VII, que diz:
“O cronista que narra os acontecimentos sem distinguir entre os grandes e os pequenos age de acordo com a seguinte verdade: nada do que um dia aconteceu deve ser considerado perdido para a história. Certamente, só a humanidade redimida possui o seu passado completo — o que significa: apenas para a humanidade redimida o passado se tornou citação em cada um dos seus momentos. Cada segundo vivido com consciência pode se tornar uma porta por onde o Messias pode entrar.”
Há toda uma construção conceitual, notadamente com a Escola dos Annales, que valorizava o papel do “acaso” e da vida cotidiana nos processos históricos. Entretanto, embora essa concepção seja cara a Walter Benjamin, que cita a passagem de Dumas para mostrar como a história é feita de entrelaçamentos não lineares, nele, ao citar esse episódio de Dumas, a reflexão se orienta para como acontecimentos históricos não devem ser reduzidos apenas às ações dos grandes homens ou aos grandes eventos, mas que a história também se constitui de pequenos gestos, acasos, emoções — daquilo que é aparentemente irrelevante. Trata-se de uma crítica ao historicismo, e uma defesa de uma história materialista com sensibilidade para o tempo dos vencidos, dos esquecidos, dos detalhes.
Mas Benjamin discute mesmo é como as classes revolucionárias têm consciência de romper com o contínuo histórico por meio de rupturas simbólicas. Para ele, o sentido da história é armar o social para a redenção dos vencidos e a interrupção da barbárie. O olhar da história é ético-político: salvar a memória dos oprimidos contra a narrativa triunfal dos vencedores, um sentido interessado no uso revolucionário da memória. É tomar a história a contrapelo, para capturar o momento que se vive o perigo, e poder transitar para a emancipação, para não deixar acontecer de novo.
Por isso é tão importante, na conjuntura em que vivemos, depois dos atentados à democracia, nos ensaios de golpe que têm no 8 de janeiro seu momento mais performático, perceber nesse evento o relampejar que desperta a nossa consciência histórica. Por isso que, julgar crimes contra o Estado de Direito credencia o STF como garante da Democracia, mas é também uma oportunidade incontornável para aferir a nossa capacidade pedagógica de exercitar uma experiência exemplar de educação para a Democracia e para a Cidadania
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
Nenhum comentário:
Postar um comentário