quinta-feira, 25 de setembro de 2025

 

Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos. V. 24/25, N. 24/25 (2024/2025)

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos. V. 24/25, N. 24/25 (2024/2025). Fortaleza, Ceará. Instituto Brasileiro de Direitos Humanos (Órgão Consultivo Especial da Nações Unidas), 2024/2025. Anual.

 

 

 

 

 

A Revista tem o status de órgão consultivo especial das Nações Unidas. Os editores desse número – César Barros Leal e Sílvia Maria da Silveira Loureiro – explicam o significado, afirmando que a “aquisição do status consultivo impõe uma série de reptos que o IBDH encara como uma oportunidade única de alargar sua agenda, no plano local, nacional e internacional, contando para isso com o apoio de instituições congêneres como o Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH), sediado em San José, Costa Rica, com o qual logrou realizar as oito edições do Curso Brasileiro Interdisciplinar em Direitos Humanos, a cada dois anos, com diferentes temáticas, a saber: os direitos humanos desde a dimensão da pobreza; o acesso à justiça e à segurança cidadã; igualdade e não discriminação; o respeito à dignidade da pessoa humana; o princípio de humanidade; os direitos humanos e o meio ambiente; o desafio dos direitos econômicossociais e culturais; e os direitos humanos dos vulneráveis, marginalizados e excluídos”.

Não bastassem esses pressupostos, veio a ser um relevo ainda maior o poder publicar, juntamente com Raique Lucas de Jesus Correia e José Euclimar Xavier de Menezes                  num espaço que tem o paraninfado, no Conselho Editorial, de Antônio Augusto Cançado Trindade (Presidente de Honra ad eternum), meu colega na UnB, tantas vezes referido em muito de meus escritos por sua enorme contribuição ao tema dos direitos internacionais dos direitos humanos.

Sobre minha relação co-autoral com Raíque e o professor Menezes, ver https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-experiencia-de-humanizacao-protagonismos-sociais-e-emancipacao-do-direito-entrevista-com-o-professor-jose-geraldo-de-sousa-junior/https://estadodedireito.com.br/direito-literatura-sertao-perspectivas-decoloniais-a-partir-do-romance-da-pedra-do-reino-de-ariano-suassuna/https://estadodedireito.com.br/cidadania-e-territorialidade-periferica-a-luta-pelo-direito-a-cidade-no-bairro-do-calabar-em-salvador-ba/.

E ainda, com plasticidade, com a direção de ambos – https://www.youtube.com/watch?v=X6IReFEMKGI&t=126s – o documentário O documentário “Projeto Cienciart V – A Cidade pelo Avesso: Territorialidade e Resistência Cultural nas Favelas de Salvador/Bahia/Brasil”. O áudio-visual é uma iniciativa do Grupo de Pesquisa Políticas e Epistemes da Cidadania (GPPEC/UNIFACS/CNPq), com financiamento público viabilizado por meio da Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195/2022), conforme Edital nº PG02/2023 – Produção Audiovisual Web da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SECULT-BA). O objetivo do documentário é lançar luz sobre as histórias e vivências dos territórios periféricos da cidade, explorando suas riquezas culturais, as formas criativas de resistência e as práticas de autodeterminação que emergem desses espaços. São as “cidades invisíveis” que apesar de negligenciadas e excluídas dos processos hegemônicos da produção da cidade dominante, ocupam a maior parte do território habitado, moldando a paisagem urbana e (re)construindo os sentidos que atravessam o asfalto, principalmente por meio de estratégias de resistência política, manifestações simbólicas e criação artística.

Convocando artistas, ativistas, pesquisadores, moradores e outros agentes de transformação, o documentário se propõe a ser um veículo para a mobilização social, cultural e acadêmica em torno dos Direitos Humanos, promovendo um diálogo aberto que envolva as diversas sensibilidades, projetos de vida e trajetórias emancipatórias que fazem do território urbano um espaço vivo, autêntico e heterogêneo. Desafiando as narrativas dominantes sobre o espaço urbano, o documentário visa, fundamentalmente, promover uma maior conscientização pública sobre as favelas, em que se possa pensar a cidade de baixo para cima; em que as vozes e histórias dos marginalizados assumam a centralidade da produção de narrativas desde e sobre este espaço. Esse é o avesso da cidade e essa é a cidade pelo avesso.

 

“O Direito Achado na Rua” (ODAnR) é uma das principais correntes críticas do pensamento jurídico brasileiro, surgida na Universidade de Brasília (UnB) a partir da proposta do “Humanismo Dialético” de Roberto Lyra Filho, que concebe o Direito como expressão histórica das lutas sociais. Superando as dicotomias entre jusnaturalismo e juspositivismo, ODAnR propõe uma abordagem que vincula o Direito à práxis libertadora dos grupos e classes espoliados e oprimidos. Diante disso, o presente trabalho se dedica a explorar a contribuição do programa de “O Direito Achado na Rua” na construção de uma teoria dialética que coloca a historicidade das lutas sociais como eixo central do processo de criação e afirmação de direitos, visando uma compreensão alternativa dos Direitos Humanos desde uma perspectiva crítica e emancipatória, no sentido de apontar caminhos para a superação das limitações do paradigma dominante. Trata-se de visualizar o fenômeno jurídico a partir das manifestações legítimas que emanam das experiências concretas de humanização e libertação das classes e grupos espoliados e oprimidos. Metodologicamente, adota-se uma abordagem crítica e dialética, por meio de pesquisa exploratória e levantamento bibliográfico de obras e artigos que fundamentam a análise teórica

 

Sumário

Ano 24/25, Vol. 24/25, Número 24/25 – 2024/2025

Conselho Consultivo do IBDH

Apresentação

La Nuntempaj Defioj de la Homaj Rajtoj

César Barros Leal

América Latina Frente a la Jornada Laboral: Desafíos para Garantizar el Derecho Humano a un Trabajo Digno

Alberto Antonio Morales Sánchez

Paul Brandon Villalpando Zumaya

Guerras e Justiça em Tempos Sombrios: A Luta do Direito Humanitário Versus Soberania

Ana Caroline S. e S. Garcia

Thayna H. M. Diógenes Queiroz

Aproximações ao Tema dos Direitos da Criança e do Adolescente e aos Impactos que Surgem por Ocasião do Desacolhimento Institucional por Maioridade

Daniela Mesquita Leutchuk de Cademartori

Bruna Balesteiro Garcia

The Social Control of Young Offenders in Central America and, in particular, in Costa Rica, and the Evolution of the Welfare Model Towards the Justice System: An Unfinished and At-risk Model

Douglas Durán Chavarría

Cabo Verde: Vulnerabilidade Climática e os Impactos nos Direitos Humanos

Estefani Fernandes Ramos

Guineverre Alvarez

Fortalecendo os Direitos Humanos no Brasil: Estratégias Educacionais e de Pesquisa para a Promoção da Justiça Social

Jucélia Bispo dos Santos

Derecho Penal, Populismo y Migración: Análisis desde los Derechos Humanos

Julieta Morales Sánchez

Crises Migratórias e Direitos Humanos: Desafios e Respostas da Comunidade Internacional Frente à Situação de Refugiados da

Síria, Sudão do Sul e Venezuela

Lara Vieira da Silveira

Os Serviços Públicos e os Direitos Sociais na Pandemia do Covid-19: Breve Debate sob o Enfoque de Gênero na Emergência Sanitária

Lucyléa Gonçalves França

A Judicialização da Política como Indesejável Efeito do Ativismo Judicial

Magno Gomes de Oliveira

A Violação dos Direitos Humanos na era da Inteligência Artificial: Uma Análise do uso de Deepfakes no Colégio Militar de Salvador

Marco Antônio Dias Barbosa

José Euclimar Xavier de Menezes

Os Direitos Humanos na Perspectiva Crítica de “O Direito Achado na Rua”

Raique Lucas de Jesus Correia

José Geraldo de Sousa Júnior

José Euclimar Xavier de Menezes

Os Atores Privados (Indivíduos e Empresas) no Direito Internacional

Renato Zerbini Ribeiro Leão

Admissão da Pessoa com Deficiência na Carreira Policial Militar

Ricardo Nascimento Fernandes

Ana Paula Gouveia Leite Fernandes

Ordem e Justiça: A Contribuição de Cançado Trindade para a Humanização da Corte Internacional de Justiça

Roberta Cerqueira Reis

Os Familiares das Vítimas Perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos: Um Estudo da Construção Jurisprudencial do Tribunal Interamericano à Luz de suas Primeiras Sentenças e dos Votos do Juiz Antônio Augusto Cançado Trindade

Sílvia Maria da Silveira Loureiro

Mayara Hellen Lima e Silva

O Projeto de lei 420/2022 ante o Direito à Dignidade da Pessoa Humana do(a) Alimentante Autônomo(a) e Hipossuficiente que Deve Prestar Alimentos a seu(a) Filho(a)

Stephany Jacques Magalhães

ANEXOS

Homenajes Rendidos a Personas e/o Instituciones por la Actuación en la Defensa de los Derechos Humanos

Discurso Pronunciado na Solenidade de Abertura do Último Curso (VIII) Brasileiro Interdisciplinar em Direitos Humanos:

Os Direitos Humanos dos Vulneráveis, Marginalizados e Excluídos

(15 a 26 de agosto de 2022, em Fortaleza)

Visita ao Brasil Relatório da Relatora Especial sobre a situação de pessoas defensoras de direitos humanos, Mary Lawlor, em sua visita ao Brasil

Comitê para a Eliminação da Discriminação Contra as Mulheres

Conselho Editorial

 

Como se vê do Sumário, que indica um qualificado repositório de temas para esse número, logrei compartilhar, com a co-autoria e a diligência dos colegas Raique Lucas de Jesus Correia e José Euclimar Xavier de Menezes, que percorreram com muita atenção todos os procedimentos para publicação, o artigo Os Direitos Humanos na Perspectiva Crítica de “O Direito Achado na Rua.

Raíque Correia, em seu perfil no Instagram, conta um pouco o que foi construir essa publicação:

A história desse artigo que acaba de ser publicado no último número da Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos se confunde com a história da minha jornada acadêmica. Até aqui, já tive a oportunidade de publicar alguns textos, mas esse tem um significado especial, diria até de verdadeira “síntese” dessa jornada (que segue inconclusa, por certo).

Destaco, antes de mais nada, a honra de ter este trabalho publicado na Revista do IBDH, órgão consultivo especial da ONU, fundado e dirigido pelo prof. Dr. César Barros Leal, e que tem como presidente emérito o sempre eterno prof. Antônio Augusto Cançado Trindade. Depois, a satisfação de ter como coautores dois grandes mentores fundamentais para a minha formação intelectual, o meu querido orientador prof. Dr. José Menezes e o prof. José Geraldo de Sousa Junior, professor emérito da Universidade de Brasília e um dos criadores, ao lado do saudoso prof. Roberto Lyra Filho, do movimento “O Direito Achado na Rua” (ODAnR).

Conheci ODAnR ainda na Faculdade de Direito, apresentado pela minha eterna orientadora profa. Marta Gama. A partir daquele momento a minha visão sobre o Direito mudou complemente e isso fez com que eu me engajasse na pesquisa buscando alternativas à perspectiva puramente dogmática e asséptica das ciências jurídicas para encontrar o verdadeiro Direito, o Direito autêntico, nos influxos da práxis libertadora; nas lutas sociais concretas no processo de humanização dos sujeitos. Foi aí que me apareceu a gente de Calabar, suas lutas e sujeitos coletivos, tornando-se fonte de novos direitos; um Direito Achado na Favela, nos Becos, nos Morros…

Tudo começou ali na sala de aula da Faculdade de Direito e, anos depois, aqui estou fazendo uma singela contribuição a teoria que me projetou como estudante e que hoje fundamenta meu trabalho como jurista e professor. Quem diria que um dia eu iria assinar um artigo com o prof. José Geraldo de Sousa Junior, que ele faria parte da minha banca de mestrado e que me acolheria como pesquisador do seu grupo. ODAnR me achou e eu achei uma saída para o aprisionamento causado pela dogmática jurídica.

Viva o Direito Achado na Rua!

Viva o Direito como Liberdade!

 

Claro que aqui, neste Lido para Você, remeto ao conjunto de textos da publicação, mas me detenho no artigo que assinei com meus colegas co-autores. Destaco o resumo do artigo:

“O Direito Achado na Rua” (ODAnR) é uma das principais correntes críticas do pensamento jurídico brasileiro, surgida na Universidade de Brasília (UnB) a partir da proposta do “Humanismo Dialético” de Roberto Lyra Filho, que concebe o Direito como expressão histórica das lutas sociais. Superando as dicotomias entre jusnaturalismo e juspositivismo, ODAnR propõe uma abordagem que vincula o Direito à práxis libertadora dos grupos e classes espoliados e oprimidos. Diante disso, o presente trabalho se dedica a explorar a contribuição do programa de “O Direito Achado na Rua” na construção de uma teoria dialética que coloca a historicidade das lutas sociais como eixo central do processo de criação e afirmação de direitos, visando uma compreensão alternativa dos Direitos Humanos desde uma perspectiva crítica e emancipatória, no sentido de apontar caminhos para a superação das limitações do paradigma dominante. Trata-se de visualizar o fenômeno jurídico a partir das manifestações legítimas que emanam das experiências concretas de humanização e libertação das classes e grupos espoliados e oprimidos. Metodologicamente, adota-se uma abordagem crítica e dialética, por meio de pesquisa exploratória e levantamento bibliográfico de obras e artigos que fundamentam a análise teórica

 

O texto, conforme aponta o resumo, apresenta a proposta de O Direito Achado na Rua (ODAnR), surgida na UnB no final dos anos 1980, vinculada à Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), de Roberto Lyra Filho. Essa escola propõe uma dialética social do Direito, superando tanto o jusnaturalismo quanto o positivismo legalista, ambos vistos como reduções ideológicas. Para Lyra Filho, o Direito é histórico, contraditório e fruto das lutas sociais, podendo expressar tanto liberdade quanto opressão, dependendo das forças em disputa.

A perspectiva dialética recusa uma visão estática do Direito, entendendo-o como processo dinâmico ligado às relações de poder, mas também como espaço de resistência e criação de novos direitos. Diferente do marxismo ortodoxo, Lyra não restringe o Direito à superestrutura: ele está presente em todas as relações sociais e pode ser motor revolucionário.

Nesse contexto, surge o programa ODAnR, coordenado após a morte de Lyra Filho por mim, José Geraldo de Sousa Junior, consolidando-se como referência acadêmica e prática contra-hegemônica, com projetos de extensão, assessoria jurídica popular e apoio a movimentos sociais. O programa articula teoria e prática para afirmar direitos historicamente negados e construir uma nova racionalidade jurídica orientada pela emancipação social.

Assim, os Direitos Humanos são concebidos não como normas fixas ou declarações abstratas, mas como lutas sociais concretas em busca de liberdade, justiça e dignidade. Essa visão rompe com perspectivas formalistas ou idealistas, enfatizando a práxis transformadora dos sujeitos coletivos de direito e dos novos movimentos sociais, que criam direitos a partir de suas experiências e identidades.

Na seção O Humanismo Dialético como Fundamento Filosófico, enunciado formulado por Roberto Lyra Filho no âmbito da Nova Escola Jurídica Brasileira, tem-se a base filosófica de O Direito Achado na Rua (ODAnR). Trata-se de uma concepção que entende o Direito não como ordem fixa, mas como processo histórico em constante luta, expressão da liberdade em sua historicidade e vinculado às lutas de emancipação.

Ele recusa tanto o jusnaturalismo estático quanto o positivismo legalista, afirmando que o Direito só é legítimo quando promove a libertação dos oprimidos em contextos históricos concretos. Essa legitimidade é material e histórica, não abstrata, e tem como critério fundamental a emancipação humana.

O humanismo dialético inspira-se em várias tradições — idealismo alemão, marxismo, sociologia crítica, hermenêutica material, o “direito vivo” de Ehrlich — mas as supera de forma crítica, valorizando a práxis social e a pluralidade de fontes jurídicas além do Estado.

Assim, o Direito é visto como processo em devir, que nasce das contradições sociais, fortalece-se nos movimentos de libertação e enfraquece sob opressões, mas dessas mesmas contradições brotam novas conquistas. Sua finalidade última é a construção de uma “legítima organização social da liberdade”, em que liberdade e legitimidade são inseparáveis.

Nessa perspectiva, a função do Direito é afirmar a dignidade humana, possibilitando a emancipação material, existencial e subjetiva, e garantindo o livre desenvolvimento de cada um como condição para o livre desenvolvimento de todos.

O artigo dá ênfase à categoria sujeito coletivo de direito, noção que nasce da experiência dos movimentos populares dos anos 1970-80, descrita por Eder Sader e analisada por Marilena Chauí, como um sujeito novo, fruto da prática social e da luta conjunta, distinto do sujeito individual da tradição burguesa. Ele não é centralizado nem solitário, mas descentralizado e plural, emergindo de ações coletivas de resistência.

A emergência desse sujeito ocorre quando carências sociais são percebidas como negação de direitos e transformadas em mobilização coletiva. Assim, movimentos sociais não apenas reivindicam direitos, mas também redefinem a ordem social e política, fundando novos paradigmas de cidadania.

Essa categoria permite ao pensamento jurídico crítico elaborar o sujeito coletivo de direito, entendido como protagonista das transformações sociais, inscrito em greves, marchas, associações ou comunidades. No projeto O Direito Achado na Rua, tal noção é central, pois desloca o foco do sujeito individual (cartesiano/kantiano) para um sujeito social e histórico, que constrói o direito de forma coletiva e emancipatória.

Na América Latina, autores como Shyrley Peña Aymara ressaltam que o sujeito coletivo expressa subjetividades marcadas pela colonialidade, racismo, patriarcado e capitalismo, mas também por resistências ancestrais e alternativas, articulando o “senti-pensar” e o “co-razonar” dos povos originários. Assim, sua luta vai além da reivindicação de direitos formais, constituindo identidades coletivas que unem sentir e pensar, resistindo e propondo novos modos de vida.

O Direito, nesse sentido, não pode ser reduzido à lei estatal, já que há direito além, fora e contra a lei. Sua legitimidade decorre das lutas sociais e não apenas da legalidade formal. O Direito Achado na Rua propõe reconhecer as práticas sociais como fontes de direitos, valorizando experiências jurídicas alternativas forjadas por comunidades marginalizadas.

Portanto, o sujeito coletivo de direito atualiza-se como categoria fundante para afirmar novas legalidades, descentralizadas e plurais, legitimadas por demandas justas e essenciais. Ele possibilita a composição de identidades coletivas conscientes, auto-organizadas e engajadas na transformação social, constituindo-se como eixo da emancipação e da construção de uma nova organização social da liberdade.

Sobre a noção de sujeito coletivo de direito vale conferir https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/; e também na wikipedia, o verbete com esse título elaborado pelos alunos da disciplina Pesquisa Jurídica que rejo, na Faculdade de Direito da UnB: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sujeito_coletivo_de_direito.

E a mais recente publicação do Grupo de Pesquisa (O Direito Achado na Rua) sobre o tema, https://estadodedireito.com.br/o-direito-achado-na-rua-e-os-caminhos-do-direito-insurgente-ruas-movimentos-e-horizontes-de-justica/.

No tópico “Os Direitos Humanos como projeto de legítima organização social da liberdade” o artigo traz a perspectiva de O Direito Achado na Rua no que esse campo teórico-prático compreende os Direitos Humanos como processos históricos de emancipação, e não como declarações formais ou essências metafísicas. Eles nascem das lutas concretas de sujeitos coletivos e funcionam como critério de legitimidade do próprio Direito, entendido como positivação da liberdade conquistada socialmente.

São enunciados os três eixos do programa que permitem organizar a reflexão sobre os temas que elege, e que se constituem pela identificação do espaço político das práticas sociais que enunciam direitos; a definição da natureza jurídica do sujeito coletivo de direito; eos achados, vale dizer, a criação de novas categorias jurídicas para estruturar uma sociedade solidária, livre de exploração e opressão.

O artigo remete a Roberto Lyra Filho (O que é Direito? Editora Brasileiense, Coleção Primeiros Passos, 1982), no que mostra que os Direitos Humanos se atualizam historicamente: antes nas revoluções burguesas, depois nas experiências socialistas, e hoje na busca por um socialismo democrático e libertário. Assim, cada declaração oficial reflete apenas parcialmente esse movimento histórico, que segue em aberto.

E também a Alexandre Bernardino Costa, atual co-líder do Grupo de Pesquisa (O Direito Achado na Rua, Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ), para quem essa concepção implica: (i) integrar os Direitos Humanos à ideia mesma de Direito; (ii) distingui-los de sua forma declaratória, reconhecendo-os como lutas; e (iii) situá-los para além de um projeto burguês, como motor de emancipação popular contra múltiplas opressões (classe, gênero, raça, sexualidade).

Nessa chave, os Direitos Humanos não são neutros nem universais em abstrato: são conquistas progressivas de grupos em luta. Eles permitem medir o que é emancipatório no presente histórico, constituindo-se como expressão de Justiça Social.

Para Lyra Filho, o Direito é modelo avançado de organização social da liberdade, inseparável da Justiça, que só existe como Justiça Social, resultado vivo das lutas que atualizam a liberdade em cada etapa da história.

Trancrevo a título de ilustração  – amostra e  fecho – as conclusões do artigo:

 

“os direitos humanos são as lutas [sociais] concretas”. Isso não significa, como erroneamente apontam alguns críticos, de forma infundada, que para “O Direito Achado na Rua”, uma Constituição Cidadã como àquela que levantou a sociedade brasileira em 1988 ou as declarações, pactos e normativas internacionais de Direitos Humanos sejam desimportantes. Temos plena consciência que esses documentos exercem peso na história, até mesmo porque grande parte desses direitos declarados como Direitos Fundamentais e Humanos foram gestados na “rua” como derivação de um processo histórico de lutas e reinvindicações que pressionaram e, assim mesmo, garantiram as condições políticas e sociais necessárias para a sua positivação. Em conformidade, pontua Eduardo Xavier Lemos  que o “Humanismo Dialético” de Roberto Lyra Filho, ao inserir o Direito na História, “[…] procura superar a limitação positivista (sem romper com o processo de positivação), pretendendo explicitar que a experiência do Direito é muito mais rica que o mero Direito positivado, também abrangendo os direitos emergentes das classes espoliadas”.

Segundo Sousa Junior , uma das linhas-mestras que embasam os trabalhos de “O Direito Achado na Rua” encontra-se na premissa, muito bem colocada por Marilena Chauí em seu prefácio ao livro A Invenção Democrática, de Claude Lefort, de que a democracia é, antes de tudo, a possibilidade de “criação permanente de direitos”; “porque sendo a marca da democracia a criação social de novos direitos e o confronto com o instituído, a prática democrática não cessa de expor os poderes estabelecidos aos conflitos que os desestabilizam e transformam, numa recriação contínua da política [e, acrescentamos: do direito]” . No caso da Constituição brasileira, recapitula José Geraldo de Sousa Junior , essa abertura fica evidente no Artigo 5º, que, após enumerar uma longa lista de direitos fundamentais, reconhece no §2º a existência de outros direitos decorrentes do “regime democrático” e dos “princípios por ela [a Constituição] adotados”. Ocorre que, quando reduzida a um mero documento jurídico e objeto exclusivo da interpretação técnica e institucionalizada pelo sistema de justiça, “[…] a Constituição se descola do cotidiano social, alienando completamente da sociedade a função – ou seja, o direito em formato de poder-dever – de atribuir ou disputar o significado do texto constitucional” . De “testamento da soberania popular” converte-se em texto amorfo desprovido da sua vitalidade política originária.

Contra essa impostura é que sustenta-se, em sede de Teoria Constitucional, um “Constitucionalismo Achado na Rua” , que nada mais é, em consonância com os princípios democráticos do pluralismo jurídico e com a plataforma emancipatória de ODAnR, “uma espécie de devolução conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta social como expressão cotidiana da soberania popular” . Nessa direção, confronta-se a acusação disparatada de que o “Humanismo Dialético” e ODAnR renegam as medidas institucionais que afirmam direitos, sejam aquelas enquadradas dentro do ordenamento jurídico pátrio, ou aquelas que fazem parte de uma ordem jurídica internacional. Pelo contrário: o que se rechaça é a “fetichização” dessas normativas e instrumentos, que os transformam em barreiras à própria renovação democrática e concretização dos Direitos Humanos. O “Humanismo Dialético” de Lyra Filho — e por extensão, “O Direito Achado na Rua” — não nega a importância da positivação, mas recusa sua absolutização. Melhor explica José Geraldo de Sousa Junior  em trecho lapidar da entrevista concedida a Raique Lucas de Jesus Correia e José Euclimar Xavier de Menezes:

O Direito Achado na Rua, com todos esses desdobramentos, não é um direito fixo ou fossilizado em enunciados formais que, sob o pretexto de representá-lo, acabam por isolá-lo no formalismo e no estreitamento legislativo. Por isso que J. J. Gomes Canotilho […] reivindicava que a perspectiva crítica do Direito procurasse os vários modos de designação do Direito que a exigência do justo postula, e que só se representa em teoria de sociedade e teoria de justiça quando você tem a mediação de conhecimento […] inscrita nas práticas sociais, nos usos sociais, ou no “Direito Achado na Rua”, como um movimento que abre o trânsito para essa passagem de um direito que ainda é instituinte, que pode aspirar ser constituído, mas que requer elementos de intercomunicação com as pretensões de judicialidade em diferentes modos de designar o Direito. Por exemplo, a legalidade é um modo, mas as formas compartilhadas de luta por reconhecimento da legitimidade de outros meios de designar o real e o social também o são.

Ou seja, o que o “Humanismo Dialético” e ODAnR propõem é, tão somente, superar as limitações importas pelo “jusnaturalismo abstrato” e pela “ordem positivista reducionista” que, enquanto expressões ideológicas do Direito, assumem uma postura conservadora e reacionária em relação ao próprio processo histórico . Mas uma vez que as lutas sociais não cessam, os direitos também não; os direitos sempre se renovam, porque a “rua” é um espaço que sempre admite o novo: novos atores, novas bandeiras, novas agendas. O processo dialético é contínuo e uma visão dialética do Direito deve predispor essa dinâmica. Assim, como sintetiza Fabio de Sá e Silva : “se, para Lyra Filho, o direito era o produto das lutas sociais pela ampliação das liberdades individuais e sociais, O Direito Achado na Rua debruçou-se por décadas sobre algumas dessas lutas e seu potencial de contribuição para a renovação da dogmática e das instituições jurídicas”.

O Direito não se confunde com a Lei. Não nasce de cima para baixo como uma imposição estatal. Em verdade, a Lei declara direitos, mas existe uma diferença crucial entre “declarar” e “criar”. O direito nasce, se cria, se gesta em outro lugar. Metaforicamente, é dizer: o Direito nasce na Rua. A “rua” traduz o lugar simbólico do acontecimento, do cotidiano, do protesto, da revolta, o lugar ocupado pelo povo e para o povo. Como naqueles versos de Castro Alves ao declarar O Povo ao Poder: “A praça é do povo, como o céu é do condor; é o antro onde a liberdade cria águias em seu calor! Senhor!… pois quereis a praça? Desgraçada a populaça só tem a rua seu…”. A “rua” é que dá materialidade ao próprio Direito, porque na “rua” o Direito se revela não como uma abstração jurídica distante, mas como uma construção social viva, que emerge das demandas populares, dos movimentos sociais e das reivindicações por cidadania e justiça que se manifestam de forma concreta. O Direito, e isso é particularmente verdadeiro em relação aos Direitos Humanos, está, portanto, enraizado na historicidade das lutas sociais e, por essa razão, só pode realizar-se em sua dimensão emancipatória quando se transforma na expressão concreta dessas lutas.

E é precisamente nesta seara de luta por direitos e afirmação dos Direitos Humanos como vetor dialético do processo de libertação dos grupos e classes espoliados e oprimidos, que estão inseridos os movimentos sociais e os “sujeitos coletivos de direito”. Conforme elucida Maria da Glória Gohn , os movimentos sociais representam ações sociopolíticas que emergem da atuação de atores sociais coletivos oriundos de diversas classes e estratos sociais. Esses atores se articulam em contextos específicos da conjuntura socioeconômica e política de um país, dando origem a um campo político de força social na sociedade civil. A estruturação dessas ações ocorre a partir de repertórios elaborados em torno de temas e conflitos vivenciados pelo grupo na sociedade. Essas ações não se limitam a eventos isolados; ao contrário, desenvolvem um processo social, político e cultural que culmina na construção de uma identidade coletiva para o movimento. Essa identidade é forjada pela solidariedade e fundamentada em valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo, predominantemente em espaços coletivos não-institucionalizados.

Assim é que a luta pelos Direitos Humanos, pela efetivação da cidadania e pela superação das estruturas socioeconômicas de opressão e desigualdade envolve, acima de tudo, ação política e mobilização social, e não apenas a formalização de um conjunto de normas abstratas sem qualquer penetração na realidade local e carente dos princípios de legitimidade que advêm da conscientização histórica. Afinal, como nos lembra Roberto Lyra Filho , parafraseando Ernst Bloch, “não há verdadeiro estabelecimento dos Direitos Humanos, sem o fim da exploração; não há fim verdadeiro da exploração, sem o estabelecimento dos Direitos Humanos.

 

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