MST na Bolsa de Valores? Análise sobre a primeira emissão pública de um Certificado de Recebíveis do Agronegócio
Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito
Diego Vedovatto. MST na Bolsa de Valores? Análise sobre a primeira emissão pública de um Certificado de Recebíveis do Agronegócio – CRA para financiar cooperativas em assentamentos de Reforma Agrária. Dissertação apresentada, defendida e aprovada no Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, 2024
Nesta Coluna Lido para Você me detenho sobre um trabalho singular apresentado sob a forma de uma dissertação de mestrado, defendida e aprovada na Faculdade de Direito da UnB, Programa de Pós-Graduação em Direito. Para a visualização completa da defesa ela foi gravada e estará disponível em breve no Canal YouTube de O Direito Achado na Rua (www.odireitoachadonarua.blogspot.com).
A singularidade procede do inédito de uma operação de mercado de valores promovida pela mobilização de estruturas econômicas vinculadas ao MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, sabida e paradoxalmente um agente hostil às estratégias capitalistas em razão de seu horizonte ideológico orientado pela construção de uma sociedade socialista.
Do que trata o trabalho, orientado pela Professora Doutora Talita Tatiana Dias Rampin (FD/UnB) e por mim co-orientado membros Professores José do Carmo Alves Siqueira – UFG, Alexandre Bernardino Costa – FD/UnB e Antonio Sergio Escrivão Filho – FD/UnB, todos identificados com os mesmos valores e princípios políticos, diz o Resumo:
No segundo semestre de 2021, sete cooperativas agrícolas formadas por agricultores familiares ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, sediadas em assentamentos de Reforma Agrária, captaram R$17.500.000,00 no mercado de capitais por meio da emissão de Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA) na Bolsa de Valores brasileira (B3). A operação, inédita entre cooperativas de agricultores sem-terra, teve participação aberta ao público com investimentos a partir de R$100,00 e uma taxa fixa de remuneração de 5,5% ao ano, beneficiando diretamente milhares de agricultores familiares. Este trabalho busca descrever e analisar essa experiência sob a perspectiva teórica do Direito Achado na Rua, discutindo como a “ressignificação” dessa ferramenta de financiamento tradicional do agronegócio promove a (re)criação de direitos, permitindo a efetivação dos mandamentos constitucionais da Política Agrícola (art. 187) e da Ordem Econômica e Financeira (art. 170) da Constituição Federal de 1988. O trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro, são abordados os desafios históricos da questão agrária no Brasil, com ênfase na trajetória de luta social e econômica do MST, desde a luta pela terra, o acesso a políticas públicas, e o acesso a mercados. No segundo, são apresentados os marcos regulatórios do crédito agrícola e o mercado de capitais brasileiro, detalhando os produtos financeiros privados voltados ao financiamento agrícola, com foco no CRA. O terceiro capítulo realiza a análise empírica do caso concreto, destacando suas dimensões quantitativas e qualitativas, e com olhar crítico propõe ajustes institucionais para expandir o acesso a essas ferramentas financeiras pela agricultura familiar. O estudo conclui que, ao acessar o mercado de capitais, os agricultores familiares demonstram a capacidade de transformar estruturas econômicas e jurídicas em benefício da Reforma Agrária, revelando práticas emancipatórias alinhadas aos princípios constitucionais, e, assim, reforçando a legitimidade da participação dos movimentos sociais na ampliação democrática e no desenvolvimento econômico e social do país.
Chegar ao tema não foi uma escolha de circunstância. É o resultado de um percurso, que começa no berço e se constitui como um projeto de vida. O mestrado vem a ser uma etapa avançada da formação incumbada no ambiente familiar-comunitário, em assentamento do MST, depois apoiada politicamente para uma graduação em direito em turma especial para assentados da reforma agrária – Programa Pronera – para a educação do campo e daí para a advocacia com causa:
Convém registrar que nasci em um assentamento de reforma agrária no norte do estado do Rio Grande do Sul, vivenciando desde a infância relações de cooperação agrícola e social, de acordo com princípios de atuação do MST. Além disso, fiz a graduação em direito na primeira turma de direito para beneficiários e beneficiárias da reforma agrária e agricultores familiares tradicionais. Desde 2012 trabalho como advogado na assessoria jurídica de diversas associações, cooperativas e empreendimentos sociais. Nesse contexto é que também atuei como assessor jurídico das cooperativas no processo de estruturação do CRA ora analisado.
Portanto, o desenvolvimento da pesquisa e da presente dissertação, constitui também um esforço de sistematização das formulações do MST sobre sua própria trajetória, e, de forma especial, sobre a estrutura institucional que regulamenta a relação entre o capital financeiro e as atividades agropecuárias. A construção de novas experiências concretas de financiamento das atividades desenvolvidas por cooperativas e associações, sediadas em assentamentos de reforma agrária, assim como da agricultura familiar de forma mais ampla em todo país, revela-se atual e urgente. Ademais, verifica-se também uma dimensão inédita do trabalho, na medida em que pouquíssimos estudos existem até o presente momento sobre o tema com essa abordagem jurídica.
Foi nessa altura que conheci Diego Vedovatto, nas sucessivas vivências para fortalecer esse projeto notável, tanto que pude estar presente, com as vestes de Reitor, na cerimônia de colação de grau de sua turma, na cidade de Goiás, campus da Universidade Federal de Goiás, também como coletador de uma experiência – as turmas especiais em direito – que contribui para sustentar teórica e politicamente até vencer toda sorte de objeção, não só proveniente de ambientes sociais mas também institucionais, afinal derrotados em seu conservadorismo oligárquico.
Desde então, seja em condições políticas, seja em condições epistemológicas, nos mantivemos próximos nas atuações táticas e nas estratégicas, nas intervenções em movimentos ou em tomada de posicionamentos.
Assim que, em O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: enunciados jurídicos. Organizadoras e organizadores Valéria Torres Amaral Burity, Antonio Escrivão Filho, Roberta Amanajás Monteiro, José Geraldo de Sousa Junior (Organizadores). Brasília: FIAN Brasil e O Direito Achado na Rua, 2021 (https://estadodedireito.com.br/fonte-pixabay-8/), obra construída em oficinas instaladas por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua, momento em que os autores e autoras submeteram a debate seus esquemas e conceitos enunciativos posteriormente completados para compor o miolo da obra, em relação à qual dissemos os organizadores: “Embora se vivencie, desde as eleições de 2018, um ambiente de rápido e intenso retrocesso no que tange ao reconhecimento e ao respeito aos direitos humanos em suas múltiplas dimensões, é possível observar e afirmar que no Brasil desenvolvem-se também, desde o advento da Constituição de 1988, agudas tendências de expansão e interferência judicial nas temáticas do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (DHANA), hoje talvez associadas ao ascenso do conservadorismo e ao retorno do neoliberalismo, entendido em perspectiva política e econômica”.
E foi diante disso que a FIAN Brasil – Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas e O Direito Achado na Rua reuniram esforços para fomentar uma agenda de discussão sobre os impactos do sistema de justiça na garantia, proteção, efetivação ou violação do DHANA no Brasil e na América Latina, a partir das experiências e concepções de movimentos sociais, entidades de direitos humanos e advocacia popular, juristas e intelectuais, com vistas a produzir uma obra coletiva que debata, com base nessas experiências e concepções, enunciados jurídicos orientados conduzir a uma interpretação e aplicação do direito que sirva à proteção e à efetivação do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas. Tais enunciados expressam, portanto, o olhar de advogados/as populares, movimentos sociais e pesquisadores/as sobre o tema, que buscam dizer como esse direito pode e deve ser garantido e, com isso, criar novos entendimentos que permitam sua realização.
Pois bem, entre os enunciados formulados para o livro, há um, escrito por advogadas e advogados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Um deles redigido por Letícia Santos Souza e Diego Vedovatto, tratando da necessária associação da hermenêutica do direito agrário aos conflitos fundiários coletivos, em oposição à aplicação do Código Civil, cujos paradigmas são eminentemente privatistas. Observe-se que Diego já prospectava no terreno do privado para erodir sua aliança com o capitalismo e para extrair perspectivas inesperadas para abrir sendas no interesse de modos coletivizados e solidários de sustentação econômica para projetos populares.
Assim é que me foi possível rastrear no itinerário esse movimento simultaneamente tático e estratégico que a inteligência de Diego foi arando no terreno da resistência possessiva do privado, para identificar categorias e suas aplicações para incidir por dentro do sistema contra ele.
No programa de mestrado, na disciplina O Direito Achado na Rua, Diego aluno, participou ativamente da elaboração de um livro que co-organizei – O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, Coleção Direito Vivo. Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, Andréa Brasil Teixeira Martins, Edilane Neves, José Geraldo de Sousa Junior, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, Luana Nery Moraes, Shyrley Tatiana Peña Aymara, Vítor Boaventura Xavier (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023 – https://estadodedireito.com.br/sujeitos-coletivos-so-a-luta-garante-os-direitos-do-povo/.
Em O Dia em que o Sujeito Coletivo de Direito Ocupou a Bolsa de Valores: o Encontro Inusitado entre a CVM e o MST, ele dá demonstração desse duplo movimento político-epistemológico e, a partir dos pressupostos teóricos e metodológicos de O Direito Achado na Rua, descreve e analisa o “encontro inusitado” entre a Comissão de Valores Mobiliários – CVM e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST, durante a emissão do primeiro título de crédito na modalidade de Certificado de Recebíveis do Agronegócio – CRA, aberto ao público geral na bolsa de valores brasileira, por cooperativas constituídas por agricultores sem-terra e sediadas em assentamentos de reforma agrária. Um estudo antecipatório que vai se adensar por meio de outros ensaios de aproximação e, por fim, ainda como etapa, desembocar na dissertação.
A propósito dessa aproximação, veja-se TV 61 O Direito Achado na Rua: O MST ocupa a Bolsa de Valores: entrevista com Diego Vedovatto (https://www.youtube.com/watch?v=RxEL1cvFcrg&list=PLuEz7Ct3A0Uj9NU2BYmgSIM0rWv7IRAjK&index=64). Atenção para a ementa do Programa, que forma uma playlist muito expressiva do blog Dialógos Lyrianos (www.odireitoachadonarua. Blogspot.com): “Nesta edição do programa O Direito Achado na Rua, pela TV 61, entrevistamos Diego Vedovatto. O Diego nasceu na Fazenda Anoni, primeira ocupação do MST, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra. O pai e ele próprio são lideranças do Movimento. Ele é bacharel em Direito egresso da turma especial para assentados (Turma Evandro Lins e Silva da UFGO). Está na UnB no mestrado em Direito. O tema dele é “O MST ocupa a bolsa de valores”, sobre o lançamento pelas cooperativas ligadas ao MST de suas ações na Bolsa”.
Ora, Diego tem sido uma referência para mim, em diferentes situações nas quais, convocado a tomar posição, tenho podido contar com a sua solidariedade e contribuição, em geral muito sustentável.
Durante a minha participação como convidado para dar depoimento em CPI contra o MST – https://brasilpopular.com/cpi-do-mst-contexto-e-diagnostico-da-situacao-agraria-brasileira/ – Diego não só me ofereceu elementos para calçar meu pronunciamento e debate, como se postou como assessor, na bancada, durante todo o desenrolar tenso da sessão. Como a transmissão da audiência ganhou muita repercussão a sua imagem de quadro-apoio à causa da reforma agrária popular também foi intensamente divulgada.
Ainda mais recentemente, para robustecer fundamentos de meu discurso de análise sobre as eleições municipais de 2024 – https://brasilpopular.com/eleicoes-municipais-o-que-de-novidade-trazem-para-a-politica/ – o que pude apresentar como novidade, e para mim, a novidade mais expressiva, conforme está no meu artigo de opinião, foi a articulação inédita feita pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que levou à eleição de 133 candidaturas à vereança e à prefeitura, ligados à luta pela Reforma Agrária. Dessa forma, foram conquistados 110 eleitos e eleitas para os cargos de vereador e vereadora, além da ocupação de 23 prefeituras e vice-prefeituras pelo país, sobretudo em cidades interioranas, distribuídos em 19 estados brasileiros.
Os dados, digo no artigo, “me foram passados por DiegoVedovato, assentado, bacharel em direito pela primeira turma especial do Pronera (Programa de Educação do Campo), atualmente fazendo mestrado em Direito na UnB (Diego, muitos vão se lembrar, era um dos dois assessores que me apoiavam na bancada da Comissão da Câmara dos Deputados durante meu depoimento na CPI do MST; o outro assessor era o advogado popular, também pós-graduando na UnB, Saulo Dantas). Diego me lembra que são milhares de assentamentos que envolvem uma base de mais de 400 mil famílias que em sua maioria apoiaram localmente candidatos progressistas dos mais variados partidos, inclusive especialmente do PT, mas não exclusivamente do PT”.
Essa referência, aliás, foi mencionada no documento de Análise de Conjuntura – Perspectivas pós-eleitorais: à espera da esperança – Grupo de Análise de Conjuntura da CNBB – Padre Thierry Linard – apresentada ao Conselho Permanente do Episcopado, em sua reunião de novembro de 2024, na sede da Conferência, em Brasília – https://cnlb.org.br/wp-content/uploads/2024/11/Analise-Conjuntura-SOCIAL-CP-Novembro-2024.pdf.
Muito razoável, pois, que essa colaboração esporádica se fizesse mais orgânica, com participação de Diego Vedovatto, no grupo técnico se constituiu em projeto desenvolvido pela Universidade de Brasília, na forma de uma proposta de formação comunitária em direitos humanos que a UnB realiza em formato de extensão universitária para o setor de direitos humanos do MST, numa parceria com o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e com o fomento promovido por emendas parlamentares designadas orçamentariamente pelos deputados federais Orlando Silva e Helder Salomão.
O projeto tem o Objetivo Geral (desdobrado em objetivos mais específicos) de contribuir para a “Organização, mobilização e realização de seminários regionais de formação comunitária em direitos humanos para populações rurais, de modo especial famílias camponesas, agricultoras/es familiares, assalariadas/os rurais, assentadas/os e acampadas/os da reforma agrária, indígenas, quilombolas, discentes e egressas/os dos cursos do PRONERA, lideranças comunitárias e defensoras/es de direitos humanos, em diálogo, interação e articulação com ativistas, comunicadoras/es, estudantes e professoras/es universitários, profissionais do sistema de justiça e advogadas/os populares, com a organização de dois livros” – https://brasilpopular.com/mst-formacao-comunitaria-em-direitos-humanos/.
Volto à dissertação. Para além do resumo que a sintetiza, o próprio autor do trabalho declina a sua estruturação e objetivos:
Analisar criticamente o funcionamento desses mecanismos de financiamento agrícola no Mercado de Capitais permitirá compreender quais são as principais vantagens e dificuldades vivenciadas por empreendimentos da agricultura familiar ao tentar acessar as mesmas ferramentas, no processo de luta pela “criação e/ou ressignificando direitos”, desenvolvendo propostas para reformulações institucionais, com vistas a construir tratamento isonômico no acesso aos financiamentos privados.
Nesta esteira, a expectativa inicial com a presente pesquisa foi enfrentar as seguintes questões: i) como que agricultores familiares ligados ao MST chegaram na Bolsa de Valores? ii) qual é a estrutura institucional dessas operações de financiamento privado do Agronegócio e da Agricultura Familiar no Mercado de Capitais, e se elas são compatíveis com os mandamentos constitucionais acerca da Política Agrícola (art. 187) e da Ordem Econômica e Financeira (art. 170)? iii) quais obstáculos, possibilidades e limites da utilização dessas mesmas ferramentas de financiamento privado para o desenvolvimento econômico e social de assentamentos de Reforma Agrária?
Assim, a partir de um caso concreto, em termos específicos, o presente trabalho tem por objetivo descrever e analisar a experiência de “(re)criação de direitos” para beneficiários da Reforma Agrária, na perspectiva teórica do Direito Achado na Rua, promovida pelo MST com a “ressignificação” e “disputa” de uma modalidade de financiamento do Agronegócio na Bolsa de Valores para a Agricultura Familiar, no sentido de verificar a efetivação dos mandamentos constitucionais acerca da Política Agrícola (art. 187 da CF/88) e da Ordem Econômica e Financeira (art. 170 da CF/88).
Assim, esta dissertação constitui a síntese da pesquisa empírica desenvolvida, de abordagem qualitativa de estudo de caso. Em relação ao percurso metodológico trilhado, foram utilizadas técnicas de análise normativa num primeiro momento, com o levantamento e análise da legislação incidente sobre o caso. Depois foi realizada a revisão bibliográfica sobre o tema, com a pesquisa de estudos e trabalhos similares sobre o assunto. Por fim, foi realizada a análise de conteúdo de documentos, especialmente o prospecto da operação registrado na CVM (GAIA, 2021) e relatórios de evolução do CRA, disponíveis publicamente.
As principais lentes analíticas utilizadas para compreensão dos fenômenos aqui tratados, foram os estudos organizados por Miguel Carter (2012) sobre o MST e a luta pela reforma agrária no país. Também os estudos de Guilherme Delgado (2012) sobre a agricultura brasileira, e de João Paulo Santos (2023) em relação ao direito agrário e o crédito agrícola. As contribuições de Renato Buranello (2021) foram importantíssimas para uma análise mais detalhada dos mercados agrícolas, e dos instrumentos de financiamento da produção agropecuária nacional, na atual quadra histórica.
Nas observações anteriores coloquei em relevo o vínculo teórico de Diego Vedovatto com O Direito Achado na Rua, sua concepção e sua prática. Nesse sentido, a propósito, situei o percurso de Diego sobre apreender as categorias analíticas que deduzidas de seu acervo epistemológico, demarcam a sua adesão ao Grupo de Pesquisa (O Direito Achado na Rua. Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq).
Esse paradigma teórico fundamental sobre o conjunto da obra, diz Diego na Dissertação:
encontra-se nas formulações do Direito Achado na Rua, especialmente pelas contribuições acadêmicas dos professores Roberto Lyra Filho (1982) e José Geraldo de Sousa Junior (1993), em defesa do reconhecimento das práticas emancipadoras dos movimentos sociais, como forma de participação e ampliação da democracia de forma legítima.
Didaticamente, em célebre texto de abertura da 4ª edição do primeiro volume da série o Direito Achado na Rua “Introdução Crítica ao Direito” (1993), o professor José Geraldo de Sousa Junior revela o humanismo dialético de Lyra Filho e, ao mesmo tempo, anuncia o sentido político e teórico desse movimento pretendido também na presente pesquisa:
(…) compreender e refletir sobre a atuação jurídica dos novos sujeitos sociais e, com base na análise das experiências populares de criação do direito:
1 – Determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos;
2 – Definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar sua representação teórica como sujeito coletivo de direito;
3 – Enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas para estruturar relações solidárias de uma alternativa em que sejam superadas as condições de espoliação do homem pelo homem e na qual o direito possa realizar-se como projeto de legítima organização social da liberdade. (Sousa Junior, 1993, p. 10).
E desse modo, na Dissertação, para enfrentar os desafios postos pelo objeto de estudo, Diego vai indicar a chave-de-leitura para o melhor entendimento do trabalho, que ele divide em três partes;
No primeiro capítulo são estabelecidas as premissas para situar a questão agrária no Brasil, e uma abordagem sobre a evolução das dimensões de direitos vivenciados pela luta social e política do MST, ao longo das últimas quatro décadas. Partindo da observação sobre as demandas jurídicas que se estabelecem primeiro na luta pelo acesso a terra, depois na luta pelo acesso às políticas públicas para desenvolvimento dos territórios e, por fim, os desafios na relação direta com o mercado, tanto no que diz respeito à estruturação de negócios jurídicos cooperados que viabilizam a produção e a comercialização, quanto nas formas do financiamento da transição agroecológica, busca-se compreender e descrever como que agricultores que viviam em barracos de lona preta conseguiram chegar à bolsa de valores.
Na segunda parte são descritos os marcos regulatórios que estruturam o mercado de capitais no Brasil e o sistema de crédito rural, com sua contextualização histórica, definição dos agentes de controle e descrição crítica sobre a sua forma de funcionamento. É realizada a apresentação das diferentes espécies de produtos financeiros voltados ao investimento privado da atividade agrícola, a saber: a Cédula de Produto Rural – CPR, o CDA, o Warrant Agropecuário, o CDCA, a LCA, o CRA, os Fiagros, a Cédula Imobiliária Rural – CIR e o crowdfunding de investimento.
No terceiro capítulo são apresentados os resultados do exercício de análise empírica do caso concreto, com a descrição das partes, finalidade, e suas dimensões quantitativa (número de devedores/beneficiários, número de investidores, taxa de juros, prazo,) e qualitativa (produtiva, ambiental, trabalhista e social). Também são relacionados os interesses comuns e antagônicos dos investidores e dos devedores, outras experiências de “financiamento popular” decorrentes desse movimento de busca por investimentos privados na Reforma Agrária. Apresenta-se, ao fim, propostas de eventuais ajustes institucionais para expandir a utilização do CRA para agricultura familiar.
Nas considerações finais, Diego Vedovatto sustenta que “apesar da Constituição Federal prever expressamente que a ordem econômica (art. 170) deva ser estruturada na função social da propriedade, e, que a política agrícola nacional (art. 187) deva ser elaborada de forma articulada com a reforma agrária, na imensa maioria das operações de crédito no mercado de capitais, não há formas de controle material sobre as dimensões produtiva, trabalhista, ambiental e social que integram o núcleo da função social da propriedade. A principal preocupação institucional diz respeito à segurança jurídica dos investidores em receberem a amortização e remuneração do quanto aplicado, com vistas a maximização dos lucros e dinamização do mercado”.
E que, na operação específica analisada, com emissão do CRA para financiar cooperativas de agricultores familiares, “o sujeito coletivo de direitos em questão, demonstrou capacidade de transformar estruturas econômicas e jurídicas em benefício da Reforma Agrária, revelando práticas emancipatórias alinhadas aos princípios constitucionais, e, assim, reforça a legitimidade da participação dos movimentos sociais na ampliação democrática e no desenvolvimento econômico e social do país. As cooperativas não se venderam, tampouco revolucionaram o mercado de capitais, ao emitirem um CRA. Conquistaram um direito, e revelaram aos agentes deste espaço público, que agricultores familiares também podem ocupá-lo, formulando experiência instituinte que aperfeiçoa o sistema, ao mesmo tempo que aponta a necessidade de superação das bases no qual está estruturado”.
Parodiando o filme O Dia em que a terra parou ((The Day the Earth Stood Still, 1951, Direção de Robert Wise) um enredo apocalíptico que anunciava embora buscasse prevenir, um evento de aniquilamento, pode-se dizer que a Bolsa de Valores também parou estutepfacta diante do inusitado da iniciativa. Houve como que um aturdimento. Foram indagações, diligências, exigências, mas um genuíno espanto para entender o seu inteiro significado (https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2021/07/27/mst-inicia-captacao-de-r-175-milhoes-no-mercado-financeiro-para-producao-da-agricultura-familiar.ghtml; https://www.brasildefato.com.br/2021/11/22/mst-na-bolsa-e-banco-de-esquerda-quando-o-sistema-atua-a-favor-do-pequeno-produtor; https://www.brasildefato.com.br/2021/08/26/e-oficial-cvm-libera-emissao-de-titulos-na-bolsa-de-valores-para-financiar-cooperativas-do-mst;
Todavia, nem o mundo acabou, nem a Bolsa de Valores. Conforme conclui Diego Vedovatto: “assim que, nos termos propostos por Lyra Filho (1982) e Sousa Junior (1993), “os sujeitos coletivos de direitos” em luta incessante constroem historicamente sua emancipação, ao tomar consciência coletiva e desvendar os impedimentos de liberdade não lesiva aos demais, para afirmarem o Direito “como enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade”.
Para Diego Vedovatto, “sem pretensões de fechamento do assunto, mas, para retomar as questões centrais postas no início da pesquisa, verificou-se que, a luta social organizada pela conquista de direitos, permitiu que agricultores familiares sem-terra acessassem a terra, políticas públicas nas mais diferentes áreas, e, com a construção de cooperativas ampliassem a sua produção e acessassem mercados complexos. Foi por meio da luta social organizada que conseguiram, até mesmo, a emissão de certificados de recebíveis do agronegócio, aberto à participação do público em geral, para financiar atividades de produção agropecuária de forma cooperada com práticas sustentáveis”.
Finalizo dizendo, com Diego, que a estratégia adotada pelo MST em “ocupar” a Bolsa de Valores, não representa cair numa “armadilha” que o neoliberalismo pudesse armar para domesticar um movimento em si revolucionário, que Celso Furtado considerou o mais importante no mundo no século XX. A interrogação, no título da dissertação, não significa uma rendição reformista.
Roberto Lyra Filho em Direito do Capital e Direito do Trabalho (Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1982), vale-se Marx exatamente para, com ele, (p. 16), lembrar que a incidência política dos trabalhadores nas ações reformistas promovidas nas injunções do capital não significa “quebrar a energia revolucionária”, mas uma ação inserida num projeto consciente de sociedade, voltada para “extrair – e, evidentemente fruir – todas as concessões possíveis encampando e tirando novas consequências dos projetos reformistas”. É desse modo que o próprio Marx via como importante e se inserir na senda da luta revolucionária, a atuação política emancipatória nas conquistas incidentes, com os trabalhadores logrando arrancar da burguesia e seu estado capitalista, a limitação legal da jornada de trabalho (8 horas) (cf. LYRA FILHO, Roberto. Karl, meu Amigo: diálogo com Marx sobre o Direito. Por Alegre: Co-edição Sergio Antonio Fabris Editor e Instituto dos Advogados do RS, 1983, p. 60).
Lembrei a força instituinte do MST, o sujeito coletivo de direito que se instala no movimento social, no caso o MST, que Celso Furtado considerou o mais importante no mundo no século XX, ao mergulhar no seu programa de formação (https://estadodedireito.com.br/o-mst-e-a-memoria-mst-1984-2024-caderno-de-formacao-no-61/) e constatar a sua força para instaurar aquele movimento que corresponde ao vaticínio de Marx sobre a caminhada dos trabalhadores em direção a sua emancipação.
Recupero esse vaticínio em Roberto Lyra Filho (Desordem e Processo: Um Posfácio Explicativo. In LYRA, Doreodó Araujo (org). Desordem e Processo. Estudos sobre o Direito em Homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986) p. 273: “É também nesse movimento dos fatos que se pode buscar o rumo da História, isto é, o sentido objetivo duma caminhada para a emancipação humana, que traz na filosofia o cérebro condutor e nos trabalhadores o seu coração destemido (Marx-Engels, Werke, 1983, 1, 391). Porque estes últimos têm um elemento de sucesso: o número – que, entretanto, ‘só pesa na balança quando se unifica, na associação, e é guiado pelo saber’ (Marx-Engels, Werke, 1983, 16, 12)”, e devo dizer que vejo no trabalho de Diego Vedovatto uma expressão forte desse processo em movimento, projeto de transformação.
O que Vedovatto nos diz é que a luta do MST, por reforma agrária, ou por reforma do sistema de financeirização de investimentos na produção, é luta democrática sem perder o horizonte do socialismo, um socialismo a inventar, mas que se reconhece como herança das lutas da classe trabalhadora que o antecederam, e que também se enraíza no presente como referência para experiências no futuro. Há uma memória do MST, construída pelo legado das lutas dos trabalhadores, de sua classe, e ela nos conecta com o futuro e para além de nós, um futuro socialista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário