Luta, organização coletiva, trabalho, cultura e história: a Força Tarefa Popular (FTP) do Piauí e a prática democrática a partir do local
Por: José Geraldo de Sousa Junior (*) – Jornal Brasil Popular/DF
Na virada do ano recebi uma ligação desde Esperantina, no Piauí, de meu dileto amigo José Arimatéia Dantas. Arimatéia é um advogado popular, ativista de movimentos de cidadania e de direitos humanos. Conheci Arimatéia em meados dos anos 1980, nos encontros da ANAP – Associação Nacional dos Advogados Populares, pode-se dizer a articulação da qual deriva atualmente a RENAP – Rede Nacional de Advogados e de Advogadas Populares.
Foi por mobilização da ANAP que a UnB, em 1987, respondeu à expectativa de seus ativistas de formular uma base epistemológico-política, no contexto de redemocratização do país e da universidade que pudesse ser a plataforma de fundamentação das lutas sociais, dos protagonismos coletivos instituintes de direito, a sua representação social e teórica, não como normas (pois a Ditadura ainda estertorante as produzia copiosamente), mas que que enunciassem “princípios de uma legítima organização social da liberdade”.
O projeto O Direito Achado na Rua desenhado e desenvolvido desde então pela Universidade de Brasília, cuja fortuna crítica se atualiza e ainda tem arranque de futuro, foi essa resposta e o primeiro volume que deu origem às séries editoriais com essa denominação foi lançado exatamente num Seminário Nacional da ANAP, em Goiânia, em seguida à sua publicação em 1987. Marcante a exaltação de Arimatéia ao receber o volume editado pela UnB: “Agora posso apresentar em juízo, na defesa dos interesses dos movimentos sociais que a atuação dos advogados populares não se caracteriza como discurso de agitação mas tem fundamento científico, avalizado por comitês acadêmicos!”.
Sobre O Direito Achado na Rua, sua concepção e prática, em síntese que demarca sua fortuna crítica, ver, principalmente, o volume 10 da série, que reúne os principais trabalhos do seminário Internacional comemorativo de 30 anos do projeto, em https://livros.unb.br/index.php/portal/catalog/book/116
Sobre a origem da ANAP e da RENAP ver Confluências – Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito – PPGSD-UFF – página 02. A luta pelo direito e a Assessoria Jurídica Popular: desafios e perspectivas da atuação da RENAP no Estado do Rio de Janeiro. Ana Cláudia Diogo Tavares, Advogada da RENAP, mestranda do PPGSD/UFF; sobre a atualidade da assessoria jurídica popular, ver Mapa Territorial, Temático e Instrumental da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular no Brasil / José Antônio P. Gediel, Leandro Gorsdorf, Antonio Escrivão Filho, Hugo Belarmino, Marcos J. F. Oliveira Lima, Eduardo F. de Araújo, Yuri Campagnaro, Andréa Guimarães, João T. N. de Medeiros Filho, Tchenna Maso, Kamila B. A. Pessoa, Igor Benício, Virnélia Lopes, André Barreto – Curitiba/PR – Brasília/DF – João Pessoa/PB.
Volto à ligação de Arimatéia. Ele me trazia novidades sobre o movimento no qual vem se engajando nos últimos anos. Uma mobilização de base social, local, municipal, na forma de Força Tarefa Popular (FTP), para fortalecer e aprimorar o processo participativo democrático. Conforme Relatório preparado para a Transparência Internacional Brasil que apoia e fomenta a articulação social de governança popular participativa, pode-se descrever e conceituar essa mobilização como uma “experiência que pretende superar o elevado grau de inercia da sociedade diante dos abusos e omissões das autoridades locais, decorrente de visão limitada do exercício da Democracia, no geral, entendida de forma restrita com foco no ‘poder de votar e ser votado(a), com evidente limite à prática democrática ficando espaços políticos importantes sem ocupação social efetiva e qualificada’”.
Ainda segundo o Relatório, “na contemporaneidade, com os avanços tecnológicos, a Democracia vem sendo aperfeiçoada, especialmente na popularização do acesso as informações o que tem contribuído para ampliação e aperfeiçoamento do sistema de controle externo. Agora o(a)s cidadão(ã)s podem participar e controlar a administração pública com mais eficiência e segurança, inclusive no conforto dos lares, escritórios, praças etc. Vivemos o nascimento da E-Democracia que possibilitará maior participação social nos destinos do Estado”.
Para essa atuação mobilizadora, segundo Arimatéia, “a construção do Índice de Transparência e Governança Pública (ITGP/23) foi parte importante no aprimoramento do uso tecnológico para ampliar o controle social da E-Democracia. As atividades de planejamento e execução obrigou os gestores a pautarem internamente e com a FTP o debate sobre a qualidade legal e participativa dos seus portais. O ITGP mobilizou 10 municípios analisados. São eles Esperantina, Morro do Chapéu, Luzilândia, São João do Arraial, Matias Olímpio, Campo Largo, Porto, Miguel Alves, União e Teresina. A escolha/seleção e preparação da equipe de avaliadores, participação das capacitações, contato com os gestores públicos por meio de ofícios, coleta de dados nos portais das prefeituras, envio de planilhas para as prefeituras e lançamento dos resultados, conforme as orientações da Transparência Internacional – Brasil, nortearam a execução do ITGP”.
No link a seguir acesso a um documentário https://www.youtube.com/watch?v=xTfWYp6OnqI&t=65s sobre a 15ª Marcha Contra a Corrupção e Pela Vida que aconteceu entre os dia 11 a 25 de janeiro de 2015 percorrendo 110km e passando pelos municípios de Antonina do Norte, Assaré, Altaneira, Nova Olinda, Crato e Juazeiro do Norte. O vídeo mostra um pouco da caminhada, como o povo recebe e alimenta os caminhantes, ocupa as câmaras e praças municipais ensinando a cidadania do controle social. Ainda registra a participação do Estado por meio da CGU e TCM que representa o começo de uma parceria muito importante para o combate à corrupção motivando a construção conjunta da luta institucional e social. O vídeo, também, é motivador e pedagógico no sentido de estimular e ensinar a prática cotidiana do controle externo.
Também em file:///C:/Users/HP/Downloads/CamScanner%2002-01-2025%2009.08.pdf, um demonstrativo da mobilização da 18ª marcha, o que são as marchas, seu histórico e as ações que são implementadas no seu percurso, simbolicamente representado em sua consigna: “construindo a alameda da democracia”. O percurso a pé de 150 km incluiu os municípios de São João do Arraial, Matias Olímpio, Campo Largo, Porto, Miguel Alves e União. (ver sobre essa ação https://pi.cut.org.br/noticias/teve-inicio-na-terca-14-a-18-marcha-da-cidadania-contra-a-corrupcao-e-pela-vida-8384.
Quero cuidar aqui, da marcha. Fiz observações à plástica desse modo de politizar o real, num país que já experimentou a coreografia do manifesto em movimento em colunas célebres (Coluna Prestes, Coluna Miguel Costa), mas também em marchas. A marcha é uma estratégia de comunicação social e política do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) com amplo alcance. No seu alcance político ela traz visibilidade, porque chama a atenção da mídia, opinião pública e governantes, destacando a luta pela reforma agrária; exerce pressão política, apoiada na mobilização coletiva sobre governos para implementar políticas favoráveis à reforma agrária e direitos dos trabalhadores; além de mobilizar fortalece e intensifica a organização interna do MST, estimulando a participação e conscientização dos membros; proporciona alianças estratégicas, promovendo parcerias com outros movimentos sociais, sindicatos e organizações, ampliando a base de apoio.
Tem alcance pedagógico porque é educação política, enquanto serve como espaço de formação política para os participantes, promovendo conscientização sobre direitos, cidadania e luta de classes; a participação e a conscientização nas marchas empodera os trabalhadores rurais, fortalecendo sua autoestima e capacidade de luta; transmite valores, de cooperação e de luta coletiva. Mas, sobretudo, desacelera o tempo, o da cobertura midiática, abrindo às redes sociais uma agenda de informações que é base para a interlocução pensada, refletida, propositiva, incidente, numa ação educadora que reinventa a democracia (MST. “História do MST”. Disponível em: https://www.mst.org.br/historia; Fernandes, B. M. “A Formação do MST”. São Paulo: Editora da UNESP, 2000; Navarro, Z. “Movimentos Sociais e Disputas por Cidadania”. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2004.
É também o modelo demonstração da Força Tarefa Popular. Para essa articulação, retiro de um de seus documentos de propagação, “as marchas são uma das maiores manifestações de democracia direta que o Brasil testemunha (Na ação da FTP são 22 anos de estrada, 3.659 km desde 2022, até a 17ª marcha, 87 municípios visitados nos estados do Piauí, Ceará e Goiás). Serpenteando pelo asfalto quente das rodovias, ou levantando poeira nas estradinhas rurais de chão batido nos sertões do Brasil profundo, estas colunas cidadãs formadas por centenas de agricultore(a)s e artesã(o)s, funcionário(a)s público(a)s e empregado(a)s privados, trabalhadore(a)s do campo e da cidade, velhos e jovens, homens e mulheres, são a prova viva de que há esperança pulsando no meio de povo e de que há alternativas além do poder institucional”.
Nas marchas, podemos ler no Relatório, a interlocução do social com a municipalidade, contribui para fiscalizar e levar à conclusão de obras, abrir espaços para o exercício de protagonismos políticos, comunitários e sindicais, analisar contas, fortalecer os conselhos municipais, plantar árvores, realizar um programa pedagógico em parceria com a universidade (UFPI) com aulas de cidadania, para as quais, seguindo a prática do ITGP, os prefeitos são previamente comunicados sobre a Marcha e convidados a participarem. As aulas abordam e estimulam “reflexões propositas sobre a Democracia Municipal, conselhos municipais, sites de transparência municipal, ITGP/2024, obras públicas, etc”.
Uma nota de relevo da 18ª Marcha foi a entrega ao G20, por ocasião de suas reuniões em Teresina, de um manifesto contendo a “proposta de fortalecimento da democracia Municipal objetivando ações que estimulem a efetividade de políticas públicas consolidando a missão institucional dos conselhos de políticas públicas locais. A sociedade organizada, por sua vez, fará o controle social democrático. A ocupação desse espaço de forma competente e compromissada é medida que se impõe como mecanismo de crescimento efetivo da Democracia Municipal impactando de forma positiva o global e o local” (https://www.pi.gov.br/noticia/reuniao-tecnica-da-forca-tarefa-do-g20-em-teresina).
É a novidade na política a que me referi em https://brasilpopular.com/eleicoes-municipais-o-que-de-novidade-trazem-para-a-politica/, lembrando que essas novidades parecem indicar além de um entranhamento do cotidiano político nas eleições, representar uma mediação para o que pode expressar como passagem da consciência real para a consciência possível, aquela que faz o salto político da história para a ação transformadora da realidade. Podem ativar outras possibilidades de mais aguda radicalização democrática e participativa, tal qual, em 1988, o protagonismo político dos movimentos sociais inscrito na transição entre a ditadura e um regime de enunciado democrático, gerou a possibilidade de dar mais intensidade à democracia representativa e de constitucionalizar base política para a novidade da democracia participativa.
Volto aqui a esses dois termos que tomo no sentido em que já os expliquei em entrevista para o Instituto Humanitas, da Unisinos – Universidade do Vale do Rio dos Sinos (https://www.ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/583969-e-urgente-radicalizar-o-experimento-democratico-pois-mesmo-que-voce-se-apoie-em-baionetas-voce-nao-pode-se-assentar-nelas-entrevista-especial-com-jose-geraldo-de-sousa-junior): perceber o diapasão do movimento inexorável de emancipação dos sujeitos na história e na construção do país. Ainda quando nem todos se arrepiem numa escala de mesma e simultânea tonalidade.
A experiência da Força Tarefa Popular do Piauí como prática democrática a partir do local é uma resposta criativa ao desafio para os sistemas políticos tendencialmente fechados a novas formas de gestão do público porque combina o princípio de “igualdade de poder político” (próprio das democracias representativas) com o princípio de “distribuição de poder político” (próprio das democracias participativas).
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
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