quarta-feira, 23 de novembro de 2022

 

Instabilidade presidencial e destituição abusiva: uma análise do julgamento por crime de responsabilidade de Dilma Rousseff

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

Instabilidade presidencial e destituição abusiva: uma análise do julgamento por crime de responsabilidade de Dilma Rousseff / Magnus Henry da Silva Marques. Tese (Doutorado – Doutorado em Direito) — Universidade de Brasília, 224 p.

 

Conclui a leitura desta tese duplamente inédita. Primeiro, tal como indica o seu título, o constituir-se um bem posto estudo acadêmico – há muitos de natureza mais política, na linha da denúncia, que estuda a violência de interrupção de um mandato presidencial com as características do que foi exercitado pela Presidenta Dilma Roussef; há obras com a extensão generalizadora desse procedimento, forte no substrato mais atento que é a crítica ao chamado lawfare; há até filmes, alguns excepcionais, entre eles o assinado com a direção da querida amiga Guta Ramos – que mergulha fundo no exame histórico-político do sistema institucional e do constitucionalismo para categorizar o que o autor designa como um “giro institucional que transforma o impeachment em um mecanismo para superar crise entre poderes [que] se apresenta como uma forma de o presidencialismo da região (América Latina) apresentar elementos de parlamentarismo [e se funcionalizar] como um instrumento encontrado pela ordem político-constitucional dos países da região para assegurar a continuidade do regime democrático”.

Perante uma qualificada Banca Examinadora, constituída sob a presidência do Orientador Professor Alexandre Bernardino Costa, os Professores Talita Tatiana Dias Rampin e Menelick de Carvalho Netto, da Universidade de Brasília; Professor  David Sánchez Rúbio, da Universidade de Sevilha e Professora Juliana Neuenschwander Magalhães, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, submeteram a prova o autor, interpelando-o sobre todos os fundamentos.

A tese, conforme o resumo:

Estuda o fenômeno da instabilidade política na América Latina e seus impactos para as ordens social e constitucional da região. Identifica critérios para reconhecer o uso abusivo das ferramentas constitucionais de destituição presidencial. Revisa a literatura sobre o presidencialismo na América Latina e sobre o fenômeno da instabilidade política na região para entender como as quedas presidenciais têm ocorrido desde a onda de democratização da década de 1980 e para verificar se a literatura sobre o tema tem identificado o uso abusivo da destituição presidencial. Por meio da teoria da dependência e das formulações de Florestan Fernandes sobre o Estado existente no capitalismo dependente, avalia os fatores não institucionais para a permanência da instabilidade política após a onda de democratização na América Latina na década de 1990. Identifica as balizas normativas dos mecanismos de impeachment para verificar a compatibilidade entre elas e o uso desse instituto como substituto aos mecanismos ordinários de sucessão presidencial. Analisa as decisões do Sistema Interamericano de Proteção em Direitos Humanos sobre destituição de autoridades civis de seus cargos por algum procedimento previsto na legislação nacional e que avaliam a imposição de pena de inabilitação por uma conduta não prevista na legislação penal, encontrando, nos documentos, a orientação de que a decisão aplicadora de qualquer penalidade deve se submeter ao princípio da legalidade. Realiza um mapeamento de processo dos eventos que culminaram na deposição de Dilma Rousseff ocorrida em 2016 com o objetivo de encontrar critérios para identificação do uso abusivo do impeachment. Conclui que a utilização do impeachment como alternativa aos processos ordinários de sucessão presidencial engendra um movimento de veto à agenda de governo escolhida pela soberania popular.

Afinal, aprovada, ela se fez aceita pelos indiscutíveis méritos teórico-políticos desenvolvidos pelo Autor, o que bem se pode aquilatar pela leitura do trabalho. Bem documentado, apoiado em estudo de caso – o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff – e cuidada bibliografia, pensando eu que a Banca atuou bem em confirmar e homologar a qualidade da tese.

Há pouco referi-me ao que considero uma leitura que, embora correta na sua perspectiva interpretativa, como que “funcionaliza” a análise, enredando-se no procedimental que abstrai o político de suas injunções dramáticas ou problemáticas, e confina o real no formal, mesmo constitucional, para lembrar Gomes Canotilho quando adverte para o estiolamento que o formal provoca, subtraindo da análise, inclusive teórica, a vigilância do olhar interpretativo sobre a exigências do legítimo que só pode ser aferido a partir da sociedade e da justiça e não das narrativas que pretendam delas apropriar-se.

O Autor adota, a perder a conta da aplicação do vocábulo, a expressão ferramenta, quase a ponto de circunscrever o real que se manifesta nesse processo, numa instrumentalidade apta a “indicar a formação de novas maneiras de solucionar problemas [de] instabilidade presidencial [erigida assim] como uma espécie de evolução institucional encontrada pelo presidencialismo latino-americano para tornar o sistema de governo mais flexível e, principalmente, para livrar a região do espectro da intervenção militar”.

O Autor chega a aludir à criação de um “otimismo democrático associado à sensação de que a região latino-americana finalmente viveria um estável e longo período de integração, pelo funcionamento ordinário da política local, de setores sociais excluídos, de funcionamento das instituições e, principalmente, capaz de permitir que o povo latino-americano constituísse práticas institucionais e constitucionais adequadas à sua realidade”. E até arremata: “Foi o entusiasmo gerado por esse otimismo democrático que fez surgir uma literatura que identificou a consolidação de um Novo Constitucionalismo Latino-Americano”.

Felizmente logo se vê que o Autor não se deixa enredar nesse ilusionismo funcional e celebratório. Têm suficiente cautela epistemológica para “identificar os padrões presentes nas crises” e seus desfechos.

Assim que, para o Autor:

Não é suficiente para garantir a higidez do procedimento de destituição presidencial nem muito menos sua legitimidade a utilização de um mecanismo previsto na Constituição. A noção de constitucionalismo abusivo, trazida por David Landau (2013), assegura que isso seja é insuficiente ao revelar que os ataques à democracia se alteraram de tal modo que as ferramentas constitucionais passaram a ser usadas, de forma velada, como instrumentos de subjugação do regime democrático.

Em que pese não ser uma novidade na história das constituições o uso da legalidade para objetivos autoritários (BARROS, 2004; LANDAU, 2013; PEREIRA, 2010), o constitucionalismo abusivo descreve um fenômeno por meio do qual o uso autoritário das ferramentas constitucionais não cria um regime abertamente autocrático, mas sim um de característica híbrida. Isso dificulta que tanto a sua identificação como a criação de mecanismos que protejam a democracia desse ataque com natureza furtiva. Dessa forma, os mecanismos clássicos de proteção da democracia constitucional – como as cláusulas democráticas, presentes nos tratados internacionais; a noção de democracia militante; e as vedações às alterações no texto da constituição – não são capazes de dar resposta a esse tipo de ameaça ao regime democrático uma vez que foram forjados para identificar e reagir a ações cujo caráter antidemocrático é expresso.

O constitucionalismo abusivo é produto de um contexto no qual existe uma reduzida tolerância a regimes abertamente autoritários, o que tornou obsoletas as estratégias clássicas de golpes (LANDAU, 2013). Em um cenário como esse, as aspirações autocráticas precisaram forjar mecanismos de legalidade fluída capaz de tornar no máximo duvidoso o caráter democrático do regime criado por eles. Por isso, se tornou instrumental a utilização de dispositivos constitucionais para subjugar a democracia, afinal, com essa estratégia, é possível escamotear as intenções antidemocráticas. Uma realidade como essa impõe como agenda de pesquisa a todos os pesquisadores e pesquisadoras do Direito Constitucional essa nova modalidade de ameaça à democracia constitucional.

Esse uso contraditório do constitucionalismo para destruir as bases da democracia tem como principal meio as alterações na Constituição (LANDAU, 2013), mas não é restrito a elas. É comum que o constitucionalismo abusivo seja usado para subjugar a oposição, o que depõe para a possibilidade de uma ferramenta que pode significar um veto a uma agenda política de determinado grupo, como o impeachment, ser uma forma de materialização desse fenômeno. Por isso, é fundamental que seja investigado o uso abusivo da destituição presidencial e seus efeitos para ordem constitucional do país que a enfrenta.

Por isso considero valiosas as conclusões a que o Autor chega, quando transpõe a a dimensão ilusória do problema para além do epifenômeno do institucional exibido pela discursividade particularmente a legal. Indo fundo na interconexão entre realidade e representação, o Autor encontra nas implicações entre a economia (relações de dependência) e representações (legitimação das hegemonias), o esclarecimento teórico que arrima essas conclusões, valendo-se das teses de Rui Mauro Marini, meu antigo colega na UnB, cujo exílio o deslocou para a condição de um leitor que pensa em espanhol, porque ainda não se traduzem as suas elaborações para o português.

 De fato, conclui o Autor:

Então, há incompatibilidade entre o uso do impeachment tal como defendido pela literatura pragmática (GINSBURG; HUQ; LANDAU, 2021; KLARMAN, 1999; PÉREZ-LIÑAN, 2018) e a sua natureza normativa e institucional. Por ser um procedimento normativamente orientado, é possível encontrar critérios importantes para identificação de seu uso abusivo: o descumprimento por parte da autoridade julgadora das hipóteses autorizativas da destituição presidencial ou a utilização de razões político-partidárias para a imposição de restrições significativas a direitos políticos da autoridade julgada e da comunidade política que escolheu uma agenda de governo para guiar a elaboração de políticas públicas.

A investigação sobre a relação entre dependência e instabilidade política, por seu turno, permitiu a identificação das razões não institucionais desse último fenômeno e, principalmente, a função social cumprida por ele nos países da América Latina. Com isso, foi possível verificar que o fenômeno da instabilidade, na ordem social formada a partir do capitalismo dependente, cumpre a função de assegurar a continuidade do padrão de acumulação baseado na superexploração do trabalho. Isso porque, para os setores beneficiados por ele, a instabilidade serve de mecanismo para deprimir a capacidade de pressão reivindicativa dos setores que sofrem com as iniquidades do modo de produção realmente existente na região projetadas também sobre o exercício do poder.

Como o modo de produção existente na América Latina precisa compensar a transferência de valor para o centro do capitalismo, para tanto, a acumulação de capital para as elites locais precisa contar com estratégias econômicas (como a constituição de um exército de reserva de trabalhadores para pressionar para baixo o rendimento do trabalho) e políticas (como exclusão de uma parcela significativa dos trabalhadores do processo de tomada de decisão e contenção de processos de ampliação de direitos). A ordem social do capitalismo dependente, portanto, conta com a redução da capacidade reivindicativa de setores que compõem a classe trabalhadora para poder se reproduzir. Para isso, há um processo de contenção de espaços abertos no poder para que a participação de movimentos políticos dos de baixo não coloquem em risco o padrão de acumulação de capital e as práticas que mantêm possível a reprodução dessa ordem social.

Então, nessa ordem social, a instabilidade política pode cumprir a função de disponibilizar às classes sociais beneficiadas por ela uma ferramenta de promover veto às escolhas feitas pela soberania popular quando elas coloquem em risco a sua reprodução e a continuidade do padrão de acumulação baseado na superexploração do trabalho. Como, no passado, havia uma certa tolerância com práticas abertamente ilegais por conta do contexto de guerra-fria, esse fenômeno foi executado por meio de golpes. Porém, com a obsolescência desse tipo de estratégia decorrente da baixa tolerância atual às rupturas democráticas abertas, houve um transformismo das práticas de ameaça às democracias para ações furtivas de esgotamento da ordem democrática. Diante disso, saber apenas se determinado ato foi praticado seguindo o rito previsto na Constituição importa pouco para identificar a ocorrência ou não do uso abusivo da destituição presidencial. Afinal, é possível que a América Latina tenha forjado um padrão de quedas presidenciais com aparência de legalidade para servir de equivalente funcional das práticas extralegais do passado. Então, é possível apontar outros critérios para identificação do uso abusivo do impeachment: se o uso das ferramentas constitucionais se deu de modo compatível com a natureza delas e com as balizas legais e constitucionais impostas a elas, bem como perquirir sobre a função social cumprida por ela.

Por seu turno, com o mapeamento do processo do impeachment de Dilma Rousseff, a tese confirmou a possibilidade de o uso dessa ferramenta como substituto aos meios ordinários de sucessão presidencial engendrar um processo de veto à agenda de governo escolhida pela soberania popular. Afinal, não ficaram apenas nas promessas as movimentações dos setores defensores do impeachment de pôr fim à estratégia de desenvolvimento adotada pelos governos do PT. Ao contrário, após a forte pressão para que o governo de Dilma adotasse a agenda social do neoliberalismo de encerrar a política de valorização real do salário-mínimo e de intervenção do Estado sobre a economia, com a sua destituição, a agenda de austeridade e a pulsão revisionista da Constituição foram efetivamente implantadas.

Por fim, foi possível identificar que o impeachment de Dilma Rousseff foi a manifestação de um conflito essencial às experiências constitucionais da América Latina entre a capacidade de a ordem constitucional regular efetivamente o exercício do poder e as exigências do modo de produção realmente existente na região pela manutenção do padrão de acumulação de capital a ele inerente. Sendo assim, a utilização do impeachment como uma alternativa não eleitoral para impor uma agenda política sem amparo na escolha da soberania popular não apresenta nenhuma novidade no conteúdo, tendo em vista que funciona como equivalente funcional das vias extralegais do passado ao: servir para impor veto à agenda escolhida pela soberania popular; ser instrumento para deprimir a capacidade reivindicativa dos setores da classe trabalhadora; suspender qualquer ameaça ao padrão de acumulação baseado na superexploração do trabalho.

Nessa linha de explicação, não há como escapar da designação clássica que a sofisticação das teses possa disfarçar. Vencida a “inércia da tradição”, é até possível o conservadorismo elaborar uma alternativa progressista (A Inércia da Tradição. José Nunes de Cerqueira Neto. Brasília: Colenda, 2022). Ou então, tudo se resolve com o Golpe. Chamo a atenção para o livro DEMOCRACIA: DA CRISE À RUPTURA. Jogos de Armar: Reflexões para a Ação.  Roberto Bueno (Organizador). São Paulo: Editora Max Limonad, 2017, 1131 p.

Presentei a obra aqui neste espaço da Coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/democracia-da-crise-a-ruptura/). O livro, eu disse, uma obra alentada, com suas 1131 páginas, média dos volumes organizados pelo Professor Roberto Bueno, da Universidade Federal de Uberlândia que concluiu sua edição quando se encontrava em programa de cooperação técnica na Universidade de Brasília, tem continuidade ainda na edição publicada em 2018, pela mesma Editora Max Limonad, o professor Roberto Bueno publicou outro volume também muito denso, 641 páginas, com o título Democracia Sequestrada. Oligarquia transnacional, pós-neoliberalismo e mídia.

 No livro de 2018, a finalidade é “a análise e a exposição pública de uma dura, inflexível, cruel e universal forma de poder e domínio aqui classificada como oligárquica-pós-neoliberal (e) seu exitoso desiderato (é) o de sequestrar a democracia de suas raízes sobreano-populares, e para isto (lançar) mão de instrumentos de domínio midiático-judicial-parlamentares articulados pela esfera financista oligárquico transacional”.

Estudioso do pensamento autoritário, que inclui referências teórico-doutrinárias, engajadas em projetos políticos de traços despóticos, desde Carl Schmitt, no contexto filosófico a partir de sua contribuição ao nacional-socialismo alemão; a Francisco Campos, que serviu à ordem ditatorial brasileira em seus diferentes momentos no Estado Novo e na Ditadura civil-militar de 1964-1985, o professor Bueno se tornou um voz acadêmico-militante contra o golpe parlamentar-judicial-midiático que se estabeleceu no Brasil desde 2016.

Convidado a participar da obra, contribui com um texto afinado com seu projeto, mas que se originou de provocação anterior que me havia sido feita em outro programa editorial. Denominei meu artigo de Estado Democrático da Direita.

 Nele, parto de uma observação do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos se presta bem para abrir este texto (1993: 73). Na sua posição de enfrentamento ao modelo capitalista de constituição da sociedade, ele afirma que não combate o capitalismo porque ele é democrático.  Para ele o capitalismo até logra cumprir as promessas democráticas que faz. Instituir, por exemplo, um estado de direito, com arcabouço legislativo, incluindo a sua principal expressão, qual seja, a de institucionalizar uma Constituição e nela, estabelecer o sistema de separação de poderes e a proteção aos direitos humanos (conforme a designação contida na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, “não será constituição a que não assegure a separação dos poderes e a proteção aos direitos do homem”).

 Para Boaventura, entretanto, o capitalismo, não pode ser plenamente democrático, porque a sua promessa carrega um vazio de possibilidade, conseqüente ao seu princípio ativo, a acumulação egoísta tendente a uma distribuição excludente e a sua representação ideológica, expressa no formalismo jurídico, que tudo promete formalmente, mas que pouco concretiza no plano material.

Para lembrar Ferdinand de Lassale (o antigo correligionário de Marx, depois bandeado para a articulação organizada por Bismark, para constituir o estado burguês alemão) e seu conceito de Constituição, se essa não realiza a expressão material dos “fatores de poder” que são a sua essência material, ela será não mais que uma forma jurídica e, em última análise, uma “mera folha de papel”.

            Digo tudo isso para lembrar, no Brasil, o alcance desse sentido retórico da institucionalização pelo jurídico, pondo em relevo o fato de que todas as experiências autoritárias de nossa formação social, tomaram forma jurídica. Todo o regime de 1964, com a ditadura que se instalou no País, se representou com forma jurídica, inclusive constitucional, mantendo a Constituição de 1946, promulgando a sua própria de 1967 e afeiçoando-a ao seu recrudescimento autoritário com a emenda plena de 1969 (que muitos denominam de Constituição), todas circunscritas a um sistema normativo sobre determinante, denominado Ato Institucional (como expressão “constituinte” do poder “revolucionário”, com todas as aspas possíveis).

Anote-se o quanto, nessa medida, o “sistema” incorporou a expressão  formal do Direito, com a linguagem atualizada das garantias fundamentais, indicando em seu texto a vigência do habeas corpus e da salvaguarda de exame judicial dos atos administrativos, enquanto no cotidiano de governança, se censurava, se torturava e se praticavam assassinatos políticos, sob a reserva de resguardo à “segurança nacional”, a partir de ações interditadas ao alcance de habeas corpus ou à apreciação de sua própria legalidade pelo Poder Judiciário (Cf meu livro com ANTONIO ESCRIVÃO FILHO Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonre: Editora D’Plácido 2016).

Lembro a Magnus. É nesse passo que o Estado de Direito Democrático se converte em Estado Democrático de Direita. Esse passo se dá na medida em que a convergência entre os interesses de poder e de acumulação capitalista, já não assimila sequer o discurso democrático, mesmo retórico, como por exemplo, o que se prestou a legitimar a sua emergência hegemônica para se afirmar como expressão dominante (a burguesia patrimonialista francesa afirmando os direitos do homem para arrebatar à aristocracia seus bens dominiais e seu poder político). Ou, no golpe de  Luiz Bonaparte (ironicamente chamado por Marx de o 18 Brumário de Luiz Bonaparte), escancarando situações em que a sua própria legalidade se torna um estorvo: “A legalidade nos sufoca”, proclamava Odilon Barrot, o chefe de governo contra a legalidade “dele”, para por em prática a política reacionária de restrição às liberdades de imprensa e de reunião e de dissolução dos “clubes” e outras formas de organização da oposição política à nova ordem instalada com o golpe (MARX, 1974: passim), configurando sempre A História de um Crime, como o classificou Victor Hugo.

 Ou ainda, o que assistimos agora em nosso próprio País, tal como registra a Tese, com a Constituição arguida contra a própria Constituição, para dela extrair-se, com o uso meramente formal de um enunciado, vale dizer, a previsão de aplicação de procedimento de afastamento do Presidente ou da Presidenta da República, uma retórica mobilizadora de engajamentos (sociais, políticos, jurídicos), delirantes de seu necessário fundamento material, a precisa tipificação de conduta que assim possa ser configurada como crime que justifique o afastamento (impeachment). Por isso, a configuração desse processo como um golpe, sem armas, sem quartelada, mas uma ruptura com a base de legitimidade do sistema constitucional-jurídico, um atentado à democracia, uma forma de traduzir, sem nenhuma sutileza, o Estado Democrático da Direita, que se vale da lei para esvaziá-la de suas melhores promessas.

Aqui entra em causa um outro modo, esse mais sutil, de identificar o Estado Democrático da Direita. Refiro-me a sua disponibilidade para usurpar, apropriar-se e investir-se das representações e das narrativas simbólicas das conquistas históricas e jurídicas conferidas nas lutas travadas pelos sujeitos individuais e coletivos por reconhecimento da dignidade humana, da cidadania e dos direitos.

É nesse ponto que ao Constitucionalismo Latino-Americano procuramos agregar uma nota de qualificação, falando de Constitucionalismo Achado na Rua. Com pesquisadores do Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq), organizamos o livro O Direito Achado na Rua: questões Emergentes, revisitações e travessias (SOUSA JUNIOR, 2021), um capítulo é dedicado ao tema: Constitucionalismo Achado na Rua, com os temas A Democracia Constitucional e a Proposta para um Constitucionalismo Inclusivo no Brasil, de Bárbara R. R. C. de Oliveira, Jean Patrício da Silva, João Paulo Santos Araújo, Samuel Barbosa dos Santos e Betuel Virgílio Mvumbi; e O Constitucionalismo Achado na Rua, os Sujeitos Coletivos Instituintes de Direito e o Caso APIB na ADPF nº 709, de Marconi Moura de Lima Barum, Mauro Almeida Noleto, Priscila Kavamura Guimarães de Moura e Renan Sales de Meira.

É sempre estimulante poder construir com os compromissos de engajamento, sobretudo epistemológico, escoras teóricas para anaçar nessas emergências, revisitações e travessias, em arcos de cooperação não apenas orgânicos – os Grupos de Pesquisa – mas nos encontros conjunturais com aliados acadêmicos nos eventos, disciplinas e projetos que nossos coletivos de ensino, extensão e pesquisa proporcionam.

É nesse ambiente que podemos localizar abordagens instigantes que acolhem os achados desse processo, assimilando-os as suas estruturas de análise e de aplicação, e prorrogando seu alcance heurístico para novos níveis de discernimento. Assim, nesse recorte aqui realizado, o texto de Antonio Carlos Bigonha (Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021), além de destacado compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. O texto, originalmente publicado na página do IREE, Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa, foi reproduzido pelo Expresso 61 (https://expresso61.com.br/2022/02/17/darcy-ribeiro-a-unb-e-o-constitucionalismo-achado-na-rua/), com o título Darcy Ribeiro, a UnB e o constitucionalismo achado na rua:

A interpretação constitucional que setores retrógrados da magistratura e do Ministério Público adotaram para o exercício arbitrário de suas prerrogativas e atribuições, ao longo dos últimos 30 anos, faria corar monges de mármore, para usar uma expressão muito referida pelo ministro Gilmar Mendes, em sessões de julgamento no STF. Desconheço em que fonte foram beber seu fundamento teórico, fruto talvez de uma corrupção semântica, resultado da leitura equivocada da matriz germânica ou estadunidense. Neste contexto, o Direito Achado na Rua afirma-se como um poderoso vetor hermenêutico, uma abertura capaz de barrar os exageros do neoconstitucionalismo e oferecer novas epistemologias que conduzam à interpretação da Constituição e das leis do País para a afirmação e o fortalecimento dos direitos humanos, segundo uma agenda comprometida com os interesses do nosso povo. E ouso supor que Darcy Ribeiro e Machado Neto subscreveriam, novamente, esta virada hermenêutica.

Em comunicação oral realizada no GT 12- Constitucionalismo achado na rua, por ocasião do Seminário Internacional O Direito como Liberdade – 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, Menelick de Carvalho Netto e Felipe V. Capareli, com o título “O Direito Encontrado na Rua, a Luta por um Constitucionalismo Plural e Inclusivo, e a necessidade de enfrentar o risco autoritário de uma política simplista e privatizante. Visão dicotômica do Estado e do Direito” (Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (RDPDF, 2019, vol. 1, n. 2) – Dossiê Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras), também extraem consequências dessa dimensão constitucional estabelecida na rua.

É com esse acumulado que chegamos ao Seminário Internacional O Direito como Liberdade: 30 Anos do Projeto O Direito Achado na Rua, realizado em Brasília, na UnB, em dezembro de 2019. No programa toda uma seção (Seção III) para o tema Pluralismo Jurídico e Constitucionalismo Achado na Rua. Esse material veio para o volume 10 da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021. Na seção podem ser conferidos os textos: Pluralismo Jurídico Comunitário-Participativo: processos de descolonização desde o Sul, de Antonio Carlos Wolkmer; A Contribuição do Direito Achado na Rua para um Constitucionalismo Democrático, de Menelick de Carvalho Netto; Constitucionalismo Achado na Rua em México: de los acuerdos de San Andrés al concejo indígena de gobierno, de Jesús Antonio de la Torre Rangel; O Direito à Alimentação como um Direito Humano Coletivo dos Povos Indígenas, de Raquel Z. Yrigoyen Farjado; e Constitucionalismo Achado na Rua: reflexões necessárias, de Gladstone Leonel Júnior, Pedro Brandão, Magnus Henry da Silva Marques (SOUSA JUNIOR, 2021). Obssrve-se que Magnus forma protagonismo autoral nessa vertente.

É importante “recordar que o constitucionalismo é permanente tentativa de se instaurar e se efetivar concretamente a exigência idealizante que inaugura uma modernidade no nível da organização de uma sociedade complexa, incapaz de lançar mão de fundamentos absolutos e que, por isso, só pode legitimar seu próprio sistema de direitos na medida em que os potenciais podem se reconhecer como coautores e autoras das normas que os regem. Ou seja, ou o direito é constitucionalmente achado na rua e nas ruas, e com as ruas, é construído e reconstruído de forma plural e inclusiva, ou, sem dúvida, tende-se a privatizar o próprio Estado, mediante a colonização do direito por uma lógica simplista binária de cunho plebiscitário e na da democrática, pois infensa a qualquer eficaz debate”.

Voltando ao constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho, em sede de debate que envolve teorias de sociedade, teorias de justiça e teorias constitucionais, cuida-se de ter atenção à multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo que tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do direito, gerando na expressão dele, “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo  e formam uma luta por posições constituintes, luta que continua depois de aprovada a constituição (CANOTILHO, J. J. Gomes. Cf. Entrevista que me concedeu: Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real.  Constituição & Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 24, julho de 2008, p.12-13), luta travada pela disposição a ir para o meio da rua, pois “do outro lado da rua, o ‘direito achado na rua’ e, perante o sangue vivo que brota dos vasos normativos da realidade e a sedução de um direito outro, ao direito formal das constituições, códigos e leis, compreende-se que o discurso hermenêutico dos juristas mais não seja que um manto ocultador do insustentável peso do poder”.

 

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Ru

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