quinta-feira, 3 de novembro de 2022

 

Bioética Latino-Americana e Afroecentricidade como Práxis Educativa de Libertação

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

Texto original: Bioética Latino-Americana e Afrocentricidade como Práxis Educativa de Libertação: Referenciais Epistemológicos para a Implementação da Política Pública de Educação das Relações Étnico-Raciais nos Cursos de Direito

 

Shayene Machado Salles. Bioética Latino-Americana e Afrocentricidade como Práxis Educativa de Libertação: Referenciais Epistemológicos para a Implementação da Política Pública de Educação das Relações Étnico-Raciais nos Cursos de Direito. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV), 2022, 229 folhas.

 

Perante uma expoente Banca Examinadora:  Professoras e Professores Elda Coelho de Azevedo Bussinguer, Faculdade de Direito de Vitória, Orientadora; Ricardo Goretti Santos, Faculdade de Direito de Vitória; Wanderson Flor do Nascimento, meu colega da  Universidade de Brasília; Edilene Souza da Silva Neves, Faculdade de Música do Espírito Santo; Gustavo Henrique Araújo Forde, Universidade Federal do Espírito Santo, tive ensejo de participar de uma qualificada interlocução em seguida à leitura de uma notável trabalho acadêmico, assinado por Shayene Machado Salles.

Transcrevo o seu Resumo:

A partir da Bioética Latino-Americana e da Afrocentricidade, esta tese propõe-se  analisar os referenciais epistemológicos advindos de tais conhecimentos para a  constituição uma “práxis” educativa de Libertação baseada nos pilares da política  pública de Educação das Relações Étnico-Raciais para os cursos de Direito. Objetiva  oferecer respostas aos seguintes questionamentos: a) Quais são as possíveis  contribuições da Bioética e da Afrocentricidade, em suas respectivas potencialidades, para, em conjunto, constituírem uma “práxis” educativa libertadora de enfrentamento ao racismo estrutural por meio da política pública de Educação das Relações Étnico-Raciais, no âmbito dos cursos de Direito?; b) De que modo tais saberes (Bioética e  Afrocentricidade) podem contribuir para a execução do “Plano Nacional de  Implementação das Diretrizes Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais” e da diretriz da transversalidade da Educação das Relações Étnico-Raciais  nos cursos de Direito, instituída pelo art. 2º, § 4º da Resolução n.º 5/2018 do Conselho  Nacional de Educação (legislação que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do  Curso de Graduação em Direito)? Para tanto, relaciona-se a política pública de Educação das Relações Étnico-Raciais tanto com as questões persistentes em  Bioética (e com a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco), repensando princípios e identificando as principais teorias e fundamentos dela advindos, quanto com a necessidade e urgência da adoção de um posicionamento  afrocêntrico para a compreensão do mundo e da Educação Jurídica sob o viés de referenciais contra-hegemônicos, isto é, não ocidentais (tendo em perspectiva a libertação dos processos de opressão, desconstrução e subjugação de epistemes afrocentradas, fomentados pelo eurocentrismo). Baseia-se tanto na concepção dialética do Direito (e da ciência jurídica) inspirada por Roberto Lyra Filho, pela Teoria Crítica do Direito desenvolvida por Luís Alberto Warat e pela concepção do Direito como Liberdade advinda de José Geraldo de Sousa Júnior, quanto na concepção dialética da Educação adotada por Paulo Freire e complementada por Moacir Gadotti a partir da proposta de uma “Pedagogia da Práxis”. Para aprofundar a reflexão sobre a libertação no âmbito educacional, alude-se, ainda, aos estudos sobre colonialidade e, em especial, às contribuições de Enrique Dussel (para libertar-se da opressão do sistema-mundo forjado na modernidade) e de Aníbal Quijano (para libertar-se das colonialidades do ser, saber e poder). A influência de tais concepções opera como relevante substrato analítico para a articulação da Bioética Latino-Americana (de Intervenção) e da Afrocentricidade com a Educação Superior Jurídica, bem como para a fundamentação da sua aplicabilidade como referenciais epistemológicos à Política Pública de Educação das Relações Étnico-Raciais. Por meio da identificação das contribuições epistemológicas da Bioética e da Afrocentricidade para os cursos de Direito, a pesquisa identifica o que se denomina “pressupostos bioéticos e afrocêntricos práxicos reflexivos” como premissas a serem consideradas por uma Educação Jurídica concebida e compreendida como prática efetiva de Liberdade, propondo, desse modo, a constituição de uma epistemologia de análise crítica, potencialmente libertadora (porquanto antirracista), na medida em que se apresenta como fomentadora de um olhar sensível e comprometido com as vulnerabilidades étnico-raciais no âmbito da Educação Superior Jurídica.

As articulações político-epistemológicas a que a tese remete, para mim são, de saída, muito úteis no contexto de minha colaboração intensa com a Fiocruz, especialmente a Fiocruz Brasília, na qual se instala a sua escola de governo. Ali venho desenvolvendo na pós-graduação, ultimamente com a co-docência de meu colega na UnB Swedenberger Barbosa, nos programas de mestrado em Direito Sanitário e Biotécica e, mais precisamente na disciplina “Direito à Saúde, Direitos Humanos e o Direito Achado na Rua”. No programa ainda em execução neste semestre o centro programático são as obras que co-organizei Direitos Humanos & Covid-19 (1º volume: Os Grupos Vulnerabilizados no Contexto da Pandemia; 2º volume: Respostas Sociais à Pandemia).

Aliás, em meu diálogo antecedente com Swendenberger Barbosa, fui fixando meu entendimento, base para a avaliação do trabalho de Shayene, num registro que assentei ao fazer a leitura de seu livro A Bioética no Estado Brasileiro. Situação Atual e Perspectivas Futuras, Swedenberger do Nascimento Barbosa. Brasília: Editora UnB, 2010.

Conforme esse registro, que pode ser conferido em http://estadodedireito.com.br/bioetica-no-estado-brasileiro-situacao-atual-e-perspectivas-futuras-swedenberger-nascimento-barbosa/. Desde a sua consolidação como campo de conhecimento autônomo a Bioética vem recebendo o aporte de várias contribuições teóricas que lhe servem de base de fundamentação e de organização de seus discursos. A partir de diferentes critérios que servem à estruturação desses discursos, é possível designar os modelos que lhe correspondem e até identificar a especialização de correntes que se distinguem em suas propostas, localização, formas de intervenção e reconhecimento de seus principais formuladores.

Assim, é possível falar-se, hoje, de uma bioética latino-americana, com modelo epistemológico bem definido e com lugar de reconhecimento, a partir do âmbito de enunciação que lhe assegurou auditório e contexto argumentativo preciso. Fala-se, neste sentido, de uma bioética de intervenção, cujas reflexões, adensadas nas condições limite de armação dos dilemas morais num continente ainda imerso num quadro de profundas e injustas assimetrias, apelam a uma politização dos modos de interpretação dos conflitos morais inscritos nesses dilemas.

Aludo à caracterização que propõem Volnei Garrafa e Jorge Cordón (organizadores, Pesquisa em Bioética no Brasil de Hoje, São Paulo, Gaia, 2006), reivindicando, inclusive, uma bioética constitutiva de uma escola brasileira, “como uma nova disciplina mais abrangente, mais comprometida com a realidade, mais inclusiva que exclusiva, mais ‘politizada’; como uma nova ferramenta teórico-metodológica que tem responsabilidades concretas em relação não somente ao estudo e interpretação das questões éticas, mas, principalmente, com a formulação das respostas possíveis e mais adequadas para os problemas constatados na totalidade complexa que nos cerca e da qual – queiramos ou não – fazemos parte” (pág. 12).

 Dessa bioética de intervenção que vem sendo firmemente designada, notadamente pelo Professor Volnei Garrafa, da Universidade de Brasília, em comunicações (1998, Mar del Plata, Argentina), congressos (2002, VI Congresso Mundial de Bioética, Brasília) e artigos (Garrafa, V., Porto D., Intervention bioethics: a proposal for peripheral countries in a context  of power and injustice. Bioethics 2003; 17: 399-416;), institucionalizou-se na UnB, um adensado programa de estudos e pesquisas pós-graduados em Bioética, a partir do Núcleo de Estudos em Bioética, vinculado ao Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares e à Faculdade de Saúde, em que veio instalar-se a Cátedra UNESCO de Bioética da UnB e cujo principal eixo investigativo é, exatamente, a “Bioética de Intervenção”.

Tomando o Sumário da Tese, cuja transcrição se faz importante para dar a medida da profundidade do estudo, vê-se que esse é o ponto de partida, em enunciados que vão ativar os demais pilares que armam a sua discussão:

1 INTRODUÇÃO2 BIOÉTICA LATINO-AMERICANA COMO REFERENCIAL

EPISTEMOLÓGICO

2.1 POTTER À BIOÉTICA PRINCIPIALISTA

2.2 DA CRÍTICA AO PRINCIPIALISMO À EMERGÊNCIA DE BIOÉTICAS NO

PLURAL

2.3 BIOÉTICA LATINO-AMERICANA NA INTERFACE COM A DECLARAÇÃO   UNIVERSAL DE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS DA UNESCO: UMA ALIANÇA ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A ÉTICA SOBRE A VIDA

2.4 BIOÉTICA LATINO-AMERICANA (DE INTERVENÇÃO) E LIBERTAÇÃO NA INTERFACE COM A (RE)LEITURA DOS PRINCÍPIOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS DA UNESCO

2.5 BIOÉTICA LATINO-AMERICANA (DE INTERVENÇÃO) E DIREITOS FUNDAMENTAIS À LUZ DA PEDAGOGIA DA LIBERTAÇÃO

2.6 BIOÉTICA LATINO-AMERICANA (DE INTERVENÇÃO) E ENFOQUE ANTIRRACISTA SOB A ÓTICA DOS ESTUDOS SOBRE COLONIALIDADE E  DA CRÍTICA AO EUROCENTRISMO: BASES PARA A FORMULAÇÃO DE  UMA BIOÉTICA CRÍTICA FUNDADA NA PERSPECTIVA AFRICANA E AFROBRASILEIRA

3 AFROCENTRICIDADE COMO REFERENCIAL ESPISTEMOLÓGICO

3.1 AFROCENTRICIDADE COMO FENÔMENO PRÁXICO-REFLEXIVO PARA A COMPREENSÃO DO MUNDO: PROPOSTA DE (RE)LEITURA E  (RE)ESCRITURA DA HISTÓRIA DA HUMANIDADE

3.2 AFROCENTRICIDADE COMO ALTERNATIVA ÉTICA PARA DESCOLONIZAR O CONHECIMENTO E OS MODOS DE CONHECER:  CAMINHO CONCRETO Á LIBERTAÇÃO

4 CIÊNCIA DO DIREITO, ENSINO JURÍDICO E SUA CRÍTICA EM LUÍS ALBERTO WARAT, ROBERTO LYRA FILHO E JOSÉ GERALDO DE SOUSA JUNIOR: PREMISSAS MARGINAIS PARA A APLICAÇÃO DE UMA PERSPECTIVA PEDAGÓGICA LIBERTADORA NA EDUCAÇÃO SUPERIOR JURÍDICA

4.1 DA CRÍTICA AO PENSAMENTO JURÍDICO TRADICIONAL À ELABORAÇÃO  DE UMA EPISTEMOLOGIA CONTRADOGMÁTICA EM WARAT: PARA  LIBERTAR-SE DA CONCEPÇÃO HEGEMÔNICA DE CIÊNCIA E DO CARÁTER POLÍTICO-IDEOLÓGICO DO DISCURSO

4.1.1 Conhecimento, mito, discurso e poder na Ciência Jurídica

4.1.2 Por uma epistemologia contra-dogmática da complexidade

4.2 CONCEPÇÃO DIALÉTICA DO DIREITO E CRÍTICA AO ENSINO JURÍDICO EM ROBERTO LYRA FILHO (DA OPOSIÇÃO ENTRE DIREITO E LEGALIDADE À AFIRMAÇÃO DA MARGINALIDADE COMO ALTERNATIVA PARA A CONSTRUÇÃO DE NOVAS CATEGORIAS JURÍDICAS): PARA LIBERTAR-SE DO POSITIVISMO ACRÍTICO E DO DISTANCIAMENTO ENTRE O JURISTA E A REALIDADE SOCIAL

4.3 DIREITO COMO LIBERDADE EM JOSÉ GERALDO DE SOUSA JÚNIOR: PARA LIBERTAR-SE CONSCIENTE E COLETIVAMENTE A PARTIR DAS RUAS, À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS, E PARA A ADESÃO À PROPOSTA DE INTERVENÇÃO ÉTICO-POLÍTICA ADVINDA DO MARCO REGULATÓRIO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR JURÍDICA BRASILEIRA

5 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS PARA A CONSTITUIÇÃO DE UMA PEDAGOGIA DA PRÁXIS LIBERTADORA PARA OS CURSOS DE DIREITO SOB A ÓTICA DA EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

5.1 RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA DIMENSÃO DE PODER (RAÇA COMO CRITÉRIO DE CLASSIFICAÇÃO SOCIAL): BASES PARA UMA PRÁXIS ANTIRRACISTA NO ÂMBITO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR JURÍDICA

5.2 LIBERTAÇÃO “DE” E “PARA” QUÊ? “LIBERTAÇÃO” COMO CATEGORIA ANALÍTICA ESTRUTURANTE PARA A IMPLEMENTAÇAO DA POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NOS CURSOS DE DIREITO À LUZ DA PEDAGOGIA DECOLONIAL

5.2.1 Libertação em Enrique Dussel: para libertar-se da exclusão e opressão do sistema-mundo forjado na modernidade (e do encobrimento do outro)

5.2.2 Libertação em Aníbal Quijano: para libertar-se do eurocentrismo e das colonialidades do ser, saber e poder

5.2.3 Libertação em Paulo Freire (e Moacir Gadotti): para libertar-se da opressão e da inconsciência a partir da “pedagogia da práxis”

6 A POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E A TRANSVERSALIDADE DE CONTEÚDOS EXIGIDOS EM DIRETRIZES NACIONAIS ESPECÍFICAS

6.1 POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: BASES NORMATIVAS E RELACIONAMENTO COM A POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS

6.2 DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA OS CURSOS DE DIREITO (COM ÊNFASE NA TRANSVERSALIDADE DA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS) E A IMPLEMENTAÇÃO DA LEI N.º 10.639/2003 MEDIANTE PRÁTICAS EDUCATIVAS ANTIRRACISTAS

7 TRANSVERSALIDADE DA POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NOS CURSOS DE DIREITO NA INTERFACE COM A BIOÉTICA LATINO-AMERICANA DE INTERVENÇÃO E COM A AFROCENTRICIDADE: REFERENCIAIS EPISTEMOLÓGICOS PARA O ENSINO JURÍDICO LIBERTADOR

7.1 POTENCIAIS CONTRIBUIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS DA BIOÉTICA LATINO-AMERICANA DE INTERVENÇÃO: PRESSUPOSTOS BIOÉTICOS PRÁXICO-REFLEXIVOS PARA A ORIENTAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NOS CURSOS DE DIREITO

7.2 POTENCIAIS CONTRIBUIÇÕES EPISTEMOLÓGICAS DA AFROCENTRICIDADE: PRESSUPOSTOS AFROCÊNTRICOS PRÁXICO-REFLEXIVOS PARA A ORIENTAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA DE EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NOS CURSOS DE DIREITO

7.3 BIOÉTICA LATINO-AMERICANA DE INTERVENÇÃO E AFROCENTRICIDADE COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE PARA A FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA E POLÍTICA DO PROJETO PEDAGÓGICO DO CURSO DE DIREITO E DOS INSTRUMENTOS DE AVALIAÇÃO DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS

 

            O segundo pilar no qual a Autora assenta seus pressupostos é o de afrocentricidade. Na banca, presente como arguidor o meu colega no Programa de Direitos Humanos e Cidadania Uã Flor, pesquisador do campo da bioética, mas filósofo que tem colecionado e sistematizado a contribuição originada das áfricas, me contive nesse tema sobre demarcar essa procedência. Entretanto, procurando fixar, em correspondência aos referenciais decoloniais adotados na Tese, o modo como, em meus estudos o conceito tem incidência.

            Assim, desde uma aproximação mais geral que esbocei no início de minhas leituras sobre pluralismo jurídico e que lancei num ensaio publicado em 1986 – Cidadania e Cultura Afro-Brasileira (Sociedade e Estado. Revista Semestral do Departamento de Sociologia da UnB, vol 1, nº 1, junho/86), segui palmilhando num percurso de localização, a problematização que procurei suscitar, por último, sobre o lugar entre nós latino-americanos do experimento colonial e sobre indicar que é desde esse lugar que vislumbro o modo decolonial como condição para de minha parte figurar o que penso, pode representar um projeto de libertação, de emancipação e de humanização possíveis, tal como o fiz em exposição no XXIII Congresso está designando como PODER, CONFLITO E CONSTRUÇÃO CULTURAL NOS ESPAÇOS LATINO-AMERICANOS (a propósito ver o meu Territórios de Conhecimentos e de Intersubjetividades: um lugar social para a Universidade. Revista Humanidades. Brasília: Editora UnB, nº 65, dezembro 2021).

Recupero dessas referências, uma alusão a Para Paulo Freire esteio de fundamentação da Tese de modo ao qual voltarei a me referir. Aqui, entretanto, por um vínculo marcante em nossa cultura comum, no que ele assenta que a humanização não é destino. Conforme Freire, “A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens como pessoas, como ‘seres para si’, esta luta pela humanização somente é possível porque a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma ‘ordem’ injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos. (…) O ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sintam opressores, nem se tornem, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si mesmos e aos opressores. (…) Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos.”

Comecei com Paulo Freire porque ele é um pensador que reflete sobre a emancipação do humano a partir de realidades próximas latino-americanas e africanas que mais intimamente vivenciaram a crueza da alienação do humano. Considero que a africanidade é um elo encadeado ao latinoamericanismo no território cultural que o colonialismo forjou no trânsito através do rio chamado Atlântico.

É assim que as literaturas africanas participam da “tendência – quase um projecto – de investigar a apreensão e a tematização do espaço colonial e pós-colonial e regenerar-se a partir dessa originária e contínua representação. Os significadores desse processo, que constituem a singularidade da nossa pós-colonialidade literária, são potencialmente produtivos: sinteticamente dizem respeito a uma identidade nacional como uma construção a partir de negociações de sentidos de identidades regionais e segmentais e de compromisso de alteridades. O que as literaturas africanas intentam propor nestes tempos pós-coloniais é que as identidades (nacionais, regionais, culturais, ideológicas, sócio-econômicas, estéticas) gerar-se-ão da capacidade de aceitar as diferenças” (Conforme O pós-colonial nas literaturas africanas de língua portuguesa, Inocência Mata da Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa  (https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4033274/mod_resource/content/1/MATA%2C%20Inoc%C3%AAncia%20-%20O%20p%C3%B3s-colonial%20nas%20literaturas%20africanas.pdf)

De resto, vislumbro nessa abordagem um pano de fundo para as leituras mais explícitas ou mesmo as implícitas em circulação. Isso significa não perder de vista que a tríade dominação/exploração/conflito, apresentada pelos estudos decoloniais, explode a univocidade discursiva no estágio em ensino, sobretudo, de filosofia. Afirmam Ana Claudia Rozo Sandoval e Luís Carlos Santos (ESTUDOS DECOLONIAIS e FILOSOFIA AFRICANA: POR UMA PERSPECTIVA OUTRA NO ENSINO DA FILOSOFIA. Revista Páginas de Filosofia, v. 6, n. 2, p.1-18, jul./dez. 2014) que “a disputa pela realidade é um traço comum dos filósofos, seja ele interpretando, desconstruindo, criando conceitos, mas o que se quer é disputar a realidade. E para isso colocamos em crise o solo em que se pisa, como um lugar produzido à imagem e semelhança da produção de um discurso que legitimou historicamente a exploração e dominação, e o conflito estabelecido ao buscar filosofar-se caiu na armadilha da representação. Este é um dos primeiros elementos que precisam ser descortinados, a representação. Pois a imagem que se traduziu nos discursos era apenas a europeia. O exercício de pensar-se, o que é próprio da filosofia encontra-se no poço sem fundo, no beco sem saída da armadilha da representação europeia moderna, ocidentalizada na contemporaneidade. A perspectiva decolonial (ou estudos Modernidade/colonialidade) e as filosofias africanas colocam em discussão o epistemicídio e o semiocídio cultural. O conhecimento, e as formas de acessá-lo, e a diversidade cultural no fazer filosófico colocam em evidência outros modos de ser e fazer filosofia. Problemas não considerados filosóficos começam a ser problemas de interesse de outros sujeitos que foram negados pelo sistema mundo eurocentrado”.

Questões, aliás,  que se ligam ao pensar potente africano, ainda que não expresso em português ou espanhol, do camaronês Achille Mbembe, um dos teóricos mais brilhantes sobre estudos pós-coloniais, centrados no conceito por ele atualizado e contextualizado de necropolítica e expressos em temas que bem recortam o que aqui foi discutido quando ele trata da proliferação do divino na África subsaariana, do racismo como prática da imaginação, do poder, violência e acumulação ou, destacadamente da necropolítica, em textos como cenas fantasmas na sociedade global, além do influente livro A pós-colónia, ensaio sobre a imaginação política na África contemporânea.

No contexto latino-americano, não é diferente, valendo as nuances, diante do que formula Aníbal Quijano. Veja-se o seu artigo “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”, no qual aponta os aspectos fundantes do capitalismo e do eurocentrismo.  Diz ele: “A dominação é o requisito da exploração, e a raça é o mais eficaz instrumento de dominação que, associado à exploração, serve como o classificador universal no atual padrão mundial de poder capitalista. Nos termos da questão nacional, só através desse processo de democratização da sociedade pode ser possível e finalmente exitosa a construção de um Estado-nação moderno, com todas as suas implicações, incluindo a cidadania e a representação política”.

Retorno a Paulo Freire agora na sua envergadura de arrimo da base pedagógica proposta pela Autora da Tese. No que me toca diretamente, me sinto presente e leal ao destacado brasileiro. E tal qual Shayne, considero legítima a apropriação de sua pedagogia da autonomia como base para pensar uma educação libertadora trazida diretamente para o campo jurídico.

Minha afirmação vem de uma procedência que convêm assinalar. A convite de sua viúva e colaboradora Ana Maria Araújo Freire participei da obra comemorativa que organizou, junto com um seleto grupo de autores e autoras de depoimentos, afinal publicada para celebrar o centenário do patrono da educação brasileira (Testamento da presença de Paulo Freire, o educador do Brasil. Depoimentos e testemunhos. Ana Maria Araújo Freire (org). Vários Autores. São Paulo: 1ª Ed. Editora         Paz & Terra, 2021).

            Nessa obra – tema também de uma coluna Lido para Você (http://estadodedireito.com.br/testamento-da-presenca-de-paulo-freire-o-educador-do-brasil-depoimentos-e-testemunhos/) – reúne-se, repito, o depoimento de intelectuais e personalidades cientificas.

         Meu depoimento no livro traz como título “Direitos Humanos e Educação Libertadora em Paulo Freire”. De propósito evoquei matéria de outra coluna minha nesse Lido para Você, sobre livro organizado também por Ana Maria e Erasto Fortes (Direitos Humanos e Educação Libertadora. Gestão Democrática da Educação Pública na Cidade de São Paulo. Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2019) – http://estadodedireito.com.br/direitos-humanos-e-educacao-libertadora/. Então, aludi a outro texto constante do livro “Educação, diversidade, direitos humanos e cidadania. Escritos e compromissos”. Organizadores: Lúcia Helena Cavasin Zabotto Pulino e Clerismar Aparecido Longo. São Paulo: Editora Letra e Voz, 2020, 214 p. (https://estadodedireito.com.br/educacao-diversidade-direitos-humanos-e-cidadania/), oportunidade em que conclui o meu escrito com uma nota evocativa: “Trata-se, diz freireanamente a Professora Pulino, no Prefácio, de forjar ‘a escrita e a leitura como direito e dever de mudar o mundo’, o que significa compreender, ainda com Paulo Freire, (Direitos Humanos e Educação Libertadora. Gestão Democrática da Educação Pública na Cidade de São Paulo. Paulo Freire Patrono da Educação Brasileira. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2019), livro ao qual em breve, pretendo fazer um mergulho evocativo que resgate a saga de Paulo Freire sob a perspectiva da interrelação entre Direitos Humanos e Educação Libertadora. Trata-se, em suma, conforme diz Erasto, na dedicatória manuscrita de seu livro com Nita Freire, certamente na expectativa de que eu o resenhe, de ‘compreender a educação como prática social humanizadora’, e com Paulo Freire, ‘assumir nossa causa comum, a dos Direitos Humanos’”.

A chave de leitura que Paulo Freire indica para extrair significado da obra está, em texto que ele justifica o seu título: “Direitos Humanos e Educação Libertadora”, na extensão de uma concepção muitas vezes lançada em seus trabalhos, segundo a qual a educação não transforma o mundo, transforma as pessoas que transformam o mundo. Por isso, em sua justificativa, ele recupera essa chave: “A educação não é a chave, a alavanca, o instrumento para a transformação social. Ela não o é, precisamente porque poderia ser”. Explicitando: “É exatamente porque a educação se submete a limites que ela é eficaz…Se a educação pudesse tudo, não haveria por que falar nos limites dela. Mas constata-se, historicamente, que a educação não pode tudo. E é exatamente não podendo tudo que pode algumas coisa, e nesse poder alguma coisa se encontra a eficácia da educação. A questão que se coloca ao educador é saber qual é esse poder ser da educação, que é histórico, social e político”.

Por isso que na Apresentação, Ana Maria Araújo Freire (Nita Freire) situa a proposta filosófica de Paulo Freire na sua perspectiva de autonomia no sentido utópico de “um inédito viável de humanização”, que pôde ser orientado por uma gestão apta a traduzir a compreensão “ético-político-antropológica de uma epistemologia crítico-educativo-conscientizadora, que, em última instância, tem como ponto central a humanização de todos e todas”, portanto, um programa para “dignificar as gentes, as pessoas”, sendo assim, substantivamente, uma política de educação em e para os direitos humanos.

Isso o confirma Paulo Freire. A Educação em Direitos Humanos pressupõe “compreensão política, ideológica do professor” para se constituir em “educação para os direitos humanos, na perspectiva da justiça, (que) é exatamente aquela educação que desperta os dominados para a necessidade da briga, da organização, da mobilização crítica, justa, democrática, séria, rigorosa, disciplinada, sem manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção do poder”. Em suma, “Essa educação para a liberdade, essa educação ligada aos direitos humanos nesta perspectiva, (que) tem que ser abrangentes, totalizante, (que) tem a ver com o conhecimento crítico do real e com a alegria de viver”.

Reside nesse passo, a segunda motivação que me compromete com a obra e que dá sentido ao meu depoimento. Ou seja, essa apreensão que pode se encontrar entre Paulo Freire, de uma ligação entre educação, justiça, direito e direitos humanos, que não seja apenas uma evocação de sua originária formação em Direito, depois de um rápido ensaio inicial na advocacia.

Nesse passo, registro que essa ligação foi desde logo estabelecida por Nita Freire. É dela a leitura que desvela uma “pedagogia dos direitos humanos” como proposta freireana de “inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades ao possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se” (FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. Organizador. Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Série O Direito Achado na Rua, vol. 8. Brasília: FAC/UnB Livros, 2017).

A meu ver, a notável apreensão dessa imbricação emancipatória se apresentou de forma inesperada quando recebi um pedido de Nita Freire que me solicitava referências jurídicas de uma possível relação que se pudesse estabelecer entre o pensamento do educador brasileiro, forte numa pedagogia de autonomia, e o direito. É que ela havia sido convidada a proferir uma conferência na Escuela del Servicio de Justicia, a Escola de Magistratura argentina, e gostaria de focalizar a sua apresentação pondo em relevo essa relação.

Relembro que diante do pedido de Nita, enviei-lhe duas dissertações de mestrado, ao final, fortemente citadas em sua conferência – “Acesso à Justiça e a pedagogia dos vulneráveis”; ou “O pensamento de Paulo Freire e sua relação com o Direito como prática para a libertação” – em base as quais desenvolveu os seus argumentos afirmativos da relação procurada (FREIRE, 2014): FEITOZA, Pedro Rezende Santos. O direito como modelo avançado de legítima organização social da liberdade: a teoria dialética de Roberto Lyra Filho. Dissertação apresentada em 2014, na UnB; GÓES JUNIOR, José Humberto de. Da Pedagogia do Oprimido ao Direito do Oprimido: Uma Noção de Direitos Humanos na Obra de Paulo Freire. Dissertação de Mestrado, Mestrado em Ciências Jurídicas, UFPB, João Pessoa, 2008.

Tal como exponho em outro escrito meu (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: Condições Sociais e Fundamentos Teóricos. Revista Direito e Praxis, Rio de Janeiro, vol. 10, n º 4, 2019, p. 2776-2817).

 Não deixou, entretanto, de ser uma surpresa, rica e inesperada, acompanhar o modo como a conferencista estabelece a relação e sabe se valer das contribuições que lhe foram oferecidas, tanto mais valiosas quanto elaboradas por dois bem investidos do conhecimento e da prática que balizam O Direito Achado na Rua, para operar com as categorias formuladas por Roberto Lyra Filho e designar, na interconexão que logra estabelecer, entre Roberto Lyra Filho e Paulo Freire, entre o Direito e a Pedagogia da Autonomia, na sua leitura, tornada possível pela mediação de O Direito Achado na Rua. Percebe-se isso na conclusão que propõe (FREIRE, Ana Maria Araújo Freire (nita freire). Conferência proferida em Buenos Aires, em 25 de setembro de 2014, na Escola de Serviço de Justiça, em programa de especialização em Magistratura. www.odireitoachadonarua.blogspot.com, acesso em 03.02.2015):

“Por tudo que foi exposto torna-se possível asseverar, que, a relação de Paulo Freire com o Direito nega veemente a concepção tradicional do direito da Modernidade e se alia ___ talvez fosse mais correto dizer que ele, ao lado de outros intelectuais que enriqueceram o pensamento da esquerda mundial criaram um nova leitura do mundo, humanista e transformadora, dentro da qual meu marido concebeu uma teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito. Entretanto, cabe aqui uma ressalva: o jurista Roberto Lyra Filho, que embasa Feitoza e Góes, como também este meu trabalho, não cita Paulo Freire em nenhum dos seus mais de 40 livros. Porém, fica evidente, com uma simples leitura dos trabalhos deles, que Lyra sorveu princípios e utilizou algumas categorias fundamentais da teoria do educador brasileiro, seu conterrâneo”.

         Numa nota curiosa, exatamente no embalo das mobilizações do centenário de Paulo Freire, um outro achado precioso vem corroborar essa ligação, repito, no grande brasileiro, entre educação, justiça, direito e direitos humanos. Trata-se de uma quase arqueologia. Com sabor de mística. O meu dileto colega José Eymard Loguércio|, que já havia com seu grupo de companheiros do Grupo Direito e Avesso (denominação do Boletim fundado em 1982 por Roberto Lyra Filho para organizar os resultados dos estudos da por ele denominada NAIR – Nova Escola Jurídica Brasileira, que levou à criação Brasil afora de inúmeros coletivos  antidogmáticos de professores e estudantes de direito insatisfeitos com a ideologização do campo pelo paradigma do positivismo jurídico), preservando em fita VHS a última conferência de Roberto Lyra Filho, às vésperas de sua morte em 1986, preserva também, em notas datilografadas, a roda de conversa mantida pelo grupo com Paulo Freire, sobre conhecimento e ensino do Direito.

Recorto do fac-simile da página 7, da transcrição, essa passagem singular:

Vocês dizem que há uma certa dissociação entre o ensino do Direito e a realidade social. Para mim, ao contrário, há uma associação enorme entre Direito e a realidade, mas a realidade da classe dominante, a minha dissociação é entre Direito e a realidade social popular. Nesse sentido é que o positivismo deve, a meu ver, ser encarado, não como um método de ensino, mas como a positividade do direito atual em favor das classes dominantes. Vocês têm que levar em conta que tudo está tão bem feito e organizado, que inclusive o arcabouço do Estado está positivisticamente estruturado, e é por isso que existe uma perversidade nas estruturas

         Ana Maria certamente desconhecia essa passagem de seu marido e co-autor com ela em muitos escritos. Mas acertou em cheio ao asseverar que a relação de Paulo Freire com o Direito nega veemente a concepção tradicional do direito da Modernidade no que ele concebeu como uma teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito.

Observe-se que o próprio Paulo Freire, no fragmento recolhido por José Eymard Loguércio e colegas, o confirma indicando um programa de direitos humanos para uma educação libertadora, na medida em que mudando as pessoas essas possam mudar a sociedade:

Portanto, um sonho de universidade passa necessariamente pelo sonho de sociedade – e o sonho da universidade só se plenifica quando a sociedade radicalmente se transforma. Isso não significa que a gente tenha que esperar a mudança da sociedade para começar a ensaiar mudanças… Se a gente cair na estória de que só é possível modificar essa estrutura jurídica solidamente positivista – tanto sua compreensão como sua prática – depois que a sociedade capitalista mudar…

         Apesar do estranhamento de Paulo Freire com a prática da advocacia, curiosamente conforme dizem Ricardo Prestes Pazello e Tchenna Fernandes Maso (O Legado de Paulo Freire para a Assessoria Jurídica Popular. Revista Estudos do Sul Global nº 2), são exatamente os:

juristas populares [que] vão buscar inspiração em seu legado para construir uma nova prática de militância no direito [nas] Assessorias Jurídicas Populares (AJP)”. De fato, dizem esses autores, o “pensamento de Freire é central para construir a ponte entre o trabalho dos juristas populares com os movimentos sociais [num] sentido ampliado de educação como prática da liberdade [para construir] um uso dialógico e crítico do direito, inserido em um horizonte de transformação social

          Para esses autores, enquanto relaciona práticas do campo do direito que se colocam em apoio aos sujeitos oprimidos, a pedagogia da autonomia de Freire e seu método de conscientização, como que se inscrevem em fundamento do afazer da assessoria jurídica popular. Com efeito, eles dizem:

Como eixos políticos, a AJP atua: em uma perspectiva crítica do direito que pode ser traduzida, no geral, como um uso tático do direito, podendo se exemplificar na litigância que se vale da normativa progressista, sobretudo após a Constituição de 1988 ou no uso relido do direito, principalmente por magistrados, promotores, defensores compro em todas as suas dimensões e potencialidades; b) na educação popular, por meio da práxis jurídica insurgente como contribuição para o processo de organização das massas, a partir da luta por condições fundamentais à vida do povo; e na formação política necessária para uma ação que promova transformações estruturais na sociedade

 E eles continuam:

 

A Pedagogia do oprimido, é, portanto, o livro de cabeceira dos sujeitos da AJP, é nele que esses atores encontram formas de enfrentar as contradições do capital nos territórios que atuam conseguindo estabelecer com as comunidades as relações de seus conflitos com a totalidade e a superação da alienação que afeta a ambos. A noção de dignidade humana, a ação como prática da libertação, o educar como ato de amor são o método para que esses sujeitos rompam com as categorias abstratas do direito em sua ação concreta, tornando a educação popular o carro-chefe da transformação em que os direitos humanos serão ressignificados

         Retomo Nita Freire quando ela estabelece a incindível ligação entre a “teoria epistemológico-ético-político-antropológico-critica de educação, que está alinhada com a concepção do Direito Achado na Rua, a Teoria Dialética Social do Direito”. É exatamente essa ligação, explícita, que fundamenta, na Faculdade de Direito, a institucionalização da Assessoria Jurídica Popular Roberto Lyra Filho. Colocando na mesma mesa dialógica Freire e Lyra Filho, os proponentes do projeto o inserem na modelagem segundo a qual “a Assessoria Jurídica Universitária Popular, por ser um projeto de extensão, tem, em sua essência, o condão de ser um braço da educação popular dentro da universidade, tornando-se um ‘instrumento indispensável à produção de um saber emancipatório e contextualizado com o seu tempo e espaço’ (SOUSA; COSTA; FONSECA; BICALHO: 2010). De forma concreta e objetiva, a AJUP, como uma assessoria, faz parte de todo o processo de tomada de consciência e de reação de sujeitos frente a conflitos fomentados pela própria relação injusta na sociedade. O acompanhamento da questão problema, desde a relação dos sujeitos envolvidos às resoluções encontradas, é de suma importância técnica, no que se refere à educação popular, mas também, política e metodologicamente, para quem está compreendendo e mudando a relação dos próprios conflitos” (SOUSA, Adda Luisa de Melo; MACÊDO, Gabriel Remus; CARILHO, Jana Louise Pereira; SILVA, Kelle Cristina Pereira da; PRÓBIO, Marcos Vítor Evangelista; BERALDO, Maria Antônia Melo; RODRIGUES, Moema Oliveira. Educação Popular e Práxis Extensionista Transformadora: a ação da Assessoria Universitária Popular e O Direito Achado na Rua. In SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs) O Direito Achado na Rua vol. 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora da OAB Nacional, 2021, p. 611-622).

Com certeza, a história nem começa, nem termina aqui. Ela se orienta por um exigente aprendizado, feito de evidentes ganhos intersubjetivos, na UnB, proporcionados por essa incindível ligação entre O Direito Achado na Rua (Roberto Lyra Filho) e a Pedagogia da Autonomia (Paulo Freire). Mas cada vez mais entre o direito como emancipação e o pensamento interpelante de Paulo Freire.

Mais fortemente quando o apelo ao Direito parte dos Movimentos Sociais, atentos às exigências de processos formativos para adensar os protagonismos dos sujeitos que neles se inscrevem. Nesse passo, ou porque diretamente suscitando as dimensões metodológicas que trazem o jurídico e o seu ensino para o chão da realidade que desafia os saberes, conforme constato nas frequentes jornadas universitárias em defesa da reforma agrária – Jura, no caminho que a extensão abre para o diálogo acadêmico com entidades desse campo – MST, Via Campesina – criando espaços de reflexão sobre a epistemologia e a metodologia freireanas apropriadas aos processos dialógicos e afetivos que o direito proporciona à emancipação, a exemplo da roda de conversa instalada no ambiente da Universidade Federal de Rondonia, sobre o tema “O Direito Achado na Rua e o Método Paulo Freire no Ensino do Direito” – https://www.youtube.com/watch?v=wL8vpwLyOq4.  Seja quando abre pautas acadêmicas para a reflexão avançada em pós-graduação, nesse contexto específico da relação entre formação em direito e em direitos humanos tendo como horizonte epistemológico-político questões suscitadas por movimentos sociais.

Vou às Considerações Finais expendidas na Tese, em tudo relevantes para interessar pesquisadores e editores convocados para o seu exame:

A Bioética, compreendida sob a vertente crítica direcionada à realidade periférica de países latino-americanos, apresenta-se, segundo a proposta da Bioética de Intervenção, oriunda da Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília, como relevante contribuição política e epistemológica viabilizadora da compreensão da diversidade e do pluralismo moral e ético que caracteriza a sociedade brasileira, seja por meio da releitura dos princípios da Declaração Universal de Bioética e Direitos da Unesco, seja por meio da apreensão da análise crítica que se constitui como cerne de sua proposta: intervir concretamente na realidade com o fito de transformá-la, inaugurando uma abordagem bioética efetivamente comprometida com os oprimidos, com o enfrentamento dos processos de dominação, como condição de possibilidade para a libertação.

Pensar a Afrocentricidade como referencial epistemológico consiste em aprofundar-se nesse conceito, situando-o no campo dos saberes, com vistas a refletir, no horizonte a que se destina esta tese, sobre a libertação dos processos de opressão, desconstrução e subjugação de epistemes afrocentradas, propiciada pelo eurocentrismo. Implica ressignificar a ciência e o conhecimento hegemonicamente reproduzidos, reivindicando um reposicionamento da histórica, da cultura, dos valores, da filosofia africana, como forma de insurgência ao racismo epistêmico e sem perder de vista o compromisso ético subjacente à teoria, evidenciado na oposição ao etnocentrismo hegemônico, aos colonialismos persistentes propagadores de exclusões e, sobretudo, na busca e defesa da libertação dos excluídos e marginalizados.

Evidencia-se no relacionamento entre os fundamentos da Bioética de Intervenção e da Afrocentricidade, a emergência de epistemologias fundamentalmente críticas, contra-hegemônicas, ou seja, de saberes emancipatórios produzidos a partir do reconhecimento da diversidade étnico-racial e da sua influência nos projetos educativos de valorização cultural e histórica da população afro-brasileira.

A Bioética Latino-Americana e, em especial, a Bioética de Intervenção, a fim de viabilizar concretamente a libertação dos processos de dominação, deve, necessariamente, orientar-se segundo uma perspectiva pedagógica fundamentalmente decolonial, amparada pela análise crítica, inspirada pelos estudos sobre colonialidade, desenvolvidos especialmente por Aníbal Quijano, Walter Mignolo e Enrique Dussel, posto que descolonizar o conhecimento é, antes de tudo, uma questão de comprometimento ético com a própria ciência e com os modos de conhecer, seja pela reflexão ética que principia o denominado “giro deconial”, seja por de se estimular a valorização e o respeito de projetos críticos políticos/éticos/epistêmicos.

Salienta-se, portanto, a convergência do conhecimento produzido pelos pesquisadores representantes do Grupo de Estudos Modernidade/Colonialidade com a proposta de situar a Bioética Latino-Americana de Intervenção, embasada nos estudos sobre colonialidade, e a Afrocentricidade como aportes epistemológicos para a constituição de uma “práxis” libertadora de enfrentamento ao racismo estrutural no âmbito dos cursos de Direito e, notadamente, para a implementação da política pública de educação das relações étnico-raciais na Educação Superior Jurídica.

Para conceber um ensino jurídico que se denomine libertador, há que se levar em consideração o questionamento sobre as condições epistemológicas estruturais em que se alicerçam os cursos de Direito, isto é, se estes se afiguram compromissados com a formação holística de um cidadão que intervirá na sociedade para o rompimento (e não para o fomento) dos processos de opressão e de dominação ou se, pelo contrário, reverberam premissas que se encaminham para a invalidação do conhecimento produzido segundo o embasamento ético-político da equidade racial, robustecendo as balizas da racionalidade moderna ocidental alicerçada no etnocentrismo hegemônico.

Refletir sobre a Educação Superior Jurídica em termos de confrontá-la com o racismo epistêmico implica reconhecer, na conformidade do que propõe Renato Nogueira (2012, p. 63), a necessidade de denegrir o pensamento e o território epistêmico, revitalizando e regenerando as abordagens e suplantando a lógica de dominação e opressão política, econômica, étnico-racial e de gênero que sustenta a educação.

Nessa linha intelectiva, compreende-se que a análise dos processos educacionais que se estabelecem nas Instituições de Ensino Superior de Direito não deve ignorar as influências de ordem política, econômica, moral e cultural. Daí por que, no cenário jurídico, a Teoria Crítica do Direito desenvolvida por Luís Alberto Warat, a concepção dialética do Direito (e da ciência jurídica) inspirada por Roberto Lyra Filho e a compreensão do Direito como liberdade sedimentada por José Geraldo de Sousa Júnior e, no cenário educacional, a perspectiva dialética de Educação adotada por Paulo Freire e complementada por Moacir Gadotti, a partir da “Pedagogia da práxis”, operam como relevante substrato analítico para a articulação e veiculação da Bioética Latino-Americana de Intervenção e da Afrocentricidade como aportes epistemológicos para a implementação da Política Pública de Educação das Relações Étnico-Raciais nos Cursos de Direito.

Por um lado, as análises desenvolvidas por Warat, Lyra Filho e Sousa Junior no âmbito do ensino do Direito e da Ciência Jurídica possuem em comum o fato de tecerem críticas à epistemologia jurídica tradicional, cuja matriz consiste na racionalidade moderna ocidental e colonial, perspectiva que converge com a ideia de descolonização do conhecimento, ainda que tais autores não tenham efetuado uma abordagem específica sobre tal questão.

Além disso, os fundamentos que constituem a abordagem dos aludidos juristas possibilitam elencar, de modo consistente, aquilo do que careceria ao jurista libertar-se, à luz da crítica à epistemologia jurídica moderna, com a finalidade de compor o projeto de um ensino e de uma ciência do Direito pluralista e antirracista.

Nesse contexto, identificam-se: a) na crítica ao pensamento jurídico tradicional elaborada por Luís Alberto Warat, a necessidade de libertar o jurista da concepção hegemônica de ciência e de discurso, salientando a necessidade de uma nova compreensão acerca do conhecimento científico que não ignore a dimensão político-ideológica dos discursos jurídicos e que, consequentemente, vislumbre os cursos de Direito como relevantes instâncias de significação e de poder na sociedade que, portanto, se constituem como potências para a implementação da Política Pública de Educação das Relações Étnico-Raciais; b) na concepção dialética do direito de Roberto Lyra Filho, a necessidade de libertar o jurista do positivismo acrítico e do distanciamento das relações sociais, apresentando a marginalidade como alternativa para a construção de um pensamento novo que se apresenta como inspiração para lançar um olhar racializado sobre as relações sociais e, via de consequência, sobre o fenômeno jurídico, na medida em que concebe os direitos humanos para além da legalidade e possibilita identificar, como importantes pautas valorativas emergentes das lutas para sua efetivação – fruto de reivindicações advindas sobretudo de movimentos populares afrodiaspóricos –, a equidade racial e a diversidade, bem como na medida em que a denúncia reverberada pelo autor no tocante ao distanciamento da pluralidade política e epistemológica alerta quando à necessidade de impedir que o Direito se converta em mero instrumento ideológico a serviço das classes dominantes; e c) na sedimentação do projeto/movimento “Direito Achado na Rua”, promovida por José Geraldo de Sousa Júnior, a necessidade de assumir a liberdade como princípio e fim da ação do jurista, para libertá-lo, não de forma isolada, mas coletivamente, com base nas vozes que emergem das ruas, à luz dos Direitos Humanos, e tendo como horizonte a adesão a propostas de intervenção ético-políticas advindas do atual marco regulatório dos cursos de Direito no Brasil, levando em consideração a articulação entre teoria e prática, a constituição de práticas voltadas à efetivação de direitos, o diálogo interativo entre as instituições de ensino, os atores que diretamente a fomentam (docentes e discentes) e a sociedade, nela abrangida a potência criativa e criadora dos movimentos sociais.

Especialmente em relação a José Geraldo de Sousa Júnior, salienta-se que o compromisso do autor com a libertação – traduzido, nesta tese, na busca por propositivamente estimular, no âmbito da Educação Superior Jurídica, práticas libertadoras de enfrentamento ao racismo estrutural – evidencia a necessidade de relacionamento do Direito com a dimensão ética e política. Isso sugere a adoção de um posicionamento crítico e concreto sobre o mundo direcionado a conceber os movimentos sociais como sujeitos coletivos de direitos, cujas experiências se revela indispensáveis para o processo de criação e de aplicação do Direito.

Por outro lado, e de modo complementar, não há como conceber um projeto educativo que se pretenda emancipatório sem remontar à perspectiva freiriana, a qual remonta à liberação autêntica, concebida em devir, como intervenção concreta sobre o mundo visando à conscientização e à transformação das condições de desigualdades e de opressão.

Vislumbra-se, na obra de Paulo Freire, a tomada de posição em favor dos marginalizados como o principal ponto de interseção entre a Bioética de Intervenção e a proposta de uma Pedagogia da Libertação, na medida em que tal perspectiva bioética também tem como objetivo a luta pela libertação dos oprimidos, o estímulo de uma responsabilidade e solidariedade críticas, em oposição à neutralidade e apatia diante das injustiças sociais. Nesse cenário, ressalta-se que educar para a libertação consiste na tomada de consciência crítica de si e dos outros sobre as condições existenciais e de vida, nela contempladas as condições de trabalho, de sobrevivênciae de resistência.

Uma educação libertadora exige uma intervenção pedagógica posicionada sobre o mundo. Remonta a uma tradição marxista, embora nela não se esgote, concebendo “práxis” como sinônimo de “ação transformadora. Educar é, portanto, transformar o homem, a sua história, o mundo. Afinal, “A pedagogia, como teoria da educação, não pode abstrair-se da prática intencionada. A pedagogia é sobretudo teoria da práxis.” (GADOTTI, 1988, p. 31).

Nesse viés, os fundamentos que constituem a abordagem de Paulo Freire, corroborados por Moacir Gadotti, possibilitam elencar, de modo consistente, aquilo que careceria ao sujeito de direito libertar-se, à luz da crítica à educação tradicional, com a finalidade de compor o projeto educativo pluralista e antirracista: libertar-se do autoritarismo, da compreensão metafísica da educação (que ignora a existência das desigualdades e seus reflexos, dissociando o debate pedagógico da análise política), do tecnicismo (que impede a compreensão da ambiência educacional como projeto popular e político, como instrumento de luta para a transformação).

Observa-se, portanto, que revisitar a obra e a criticidade de autores, cuja contribuição se mostra fundamental para compreender o conhecimento de modo atrelado às relações sociais, unindo teoria e prática, ao mesmo tempo em que se revelaindispensável para a conscientização, também opera como elemento de sustentação e de orientação para os processos históricos de luta pela libertação.

Dessa forma, dito em outras palavras, o que aproxima as abordagens supramencionadas, além da dialética humanística que as orienta, é o fato de se constituírem como bases teóricas cujas contribuições práxico-reflexivas permitem elencar as características para uma Educação Jurídica concebida e compreendida como prática efetiva de liberdade.

Nesse aspecto, desafiar a epistemologia jurídica e a Educação tradicional, como o

fizeram Warat, Lyra Filho, Sousa Junior e Paulo Freire, possibilita que se reconheça, nos pontos de crítica suscitados pelas respectivas análises que desenvolvem, o aspecto comum de situarem o conhecimento como exercício práxico para a libertação, direcionado, na conjuntura latino-americana, ao enfrentamento das desigualdades produzidas e retroalimentadas por mecanismos de exclusão do norte global e, mais especificamente, da ordem hegemônica etnocêntrica estabelecida na modernidade, que perdura sob a expressão da colonialidade.

Desse modo, a atualidade e a coerência da adesão à abordagem epistemológica dos autores elencados acima se manifestam na contribuição que fornecem para a constituição de uma Educação pluralista, dialógica, cidadã, ética e politicamente comprometida com a libertação e, em especial, para a libertação do racismo estrutural e epistêmico no cenário educacional.

Destaca-se, ainda – sem desconsiderar a crítica ao reducionismo do embasamento do humanismo dialético à dimensão de classe – que as reflexões de Warat, Lyra Filho, Sousa Junior e Paulo Freire encontram complementação e substrato para a permanência no projeto decolonial e, notadamente – aludindo à denominação adotada por Nelson Mandonado-Torres – na transversalidade decolonial, conscientizando, cada qual a seu modo, para a insurgência, a resistência e o questionamento aos padrões coloniais do ser, do saber e do poder, reprodutores de invisibilidades.

A intervenção epistemológica libertadora proposta nesta tese, na esteira de Boaventura de Sousa Santos, preconiza a contribuição de saberes produzidos como forma de insurgência ao racismo epistêmico e aos processos de dominação, promovedores do diálogo horizontal, do reconhecimento da diversidade étnico-racial e da sua influência nos projetos educativos de valorização cultural e histórica da população afro-brasileira. Daí decorre a proposta de associar à análise do fenômeno jurídico referenciais teóricos que emergem como saberes emancipatórios capazes de potencializá-lo – como a Bioética Latino-Americana de Intervenção e a Afrocentricidade.

A proposição de uma educação regida pela pedagogia da práxis, prenunciada por Moacir Gadotti, remonta ao desafio de caminhar dialeticamente rumo ao novo a partir de ideias historicamente já consolidadas. O retorno ao horizonte da dialética cotidiana, assim como o resgate de autores advindos da teoria crítica do direito concebido como marginal, consolida a educação em termos de libertação na medida em que possibilita compreendê-la como instrumento de ação e de intervenção política e social.

O humanismo dialético que embasa esta tese, anunciado pelas opções teóricas assumidas, ensina-nos que o “novo” brota do “velho”, bem como que os cursos de Direito podem ser repensados à luz da epistemologia dominante e, sobretudo, para além dela. Constitui um convite a ressignificar a teoria, a prática e a reflexão jurídica, confrontando as bases e estruturas que as alicerçam, questionando o Direito embasado nos moldes de estudos e pesquisas reprodutores de colonialismos (uma vez que a base da epistemologia jurídica tradicional advém de matriz eurocêntrica).

A retomada da epistemologia “marginal”, advogada por Warat, Roberto Lyra Filho e José Geraldo de Sousa Júnior, possibilita a assunção de um posicionamento, fundamentalmente, crítico sobre a ordem estabelecida e, notadamente, sobre as relações de poder que alicerçam a concepção de direito hegemônico e obstam uma análise racializada do fenômeno jurídico, isto é, uma análise que se proponha a enxergar as relações sociais sob a ótica dos conflitos raciais que as envolvem, posicionando-se na rota de uma Ciência do Direito aberta e sensível às narrativas marginais e, especialmente, às pautas de reivindicações de políticas públicas do Movimento Negro (dentre as quais, enfatiza-se, a implementação da Lei n.º10.639/2003, inclusive, no âmbito da Educação Superior).

A novidade introduzida pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de Direito carece de uma concepção epistemológica condizente com a proposta política que principia, sob pena de converter-se em instrumento legal retórico e inócuo.

Os denominados “pressupostos bioéticos práxico-reflexivos” constituem alternativas decoloniais concretas para a implementação do art. 2º, § 4º da Resolução CNE/CES n.º 5/2018, ou seja, da transversalidade das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico Raciais no âmbito da Educação Superior jurídica, uma vez que, a partir deles, a Bioética Latino-Americana de Intervenção – alicerçada nos estudos sobre colonialidade e na Pedagogia da Libertação – e a Afrocentricidade operam como referenciais epistemológicos para orientar, no âmbito dos cursos de graduação em Direito, a descolonização de dois importantes documentos: o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) – documento que define a missão da Instituição de Ensino Superior, a política pedagógica institucional e as estratégias para atingir suas metas e objetivos – e o Projeto Pedagógico de Curso (PPC) – instrumento que apresenta a concepção de ensino e de aprendizagem do curso, além da estrutura, dos procedimentos de avaliação e dos instrumentos normativos de apoio.

Por isso a importância dessa proposição de agregar à análise do Direito e do ensino jurídico ferramentas epistemológicas capazes de potencializá-lo, como a Bioética Latino-Americana de Intervenção e a Afrocentricidade para “ressignificar o presente e construir um futuro” – em alusão a “sankofa”, terminologia advinda de um provérbio africano que é representado por um pássaro que volta a cabeça à cauda para simbolizar que “retornar ao passado, é ressignificar o presente e construir o futuro”.

Alude-se ao retorno à herança ancestral africana e a consciência afrodiaspórica como possibilidade de alcançar as raízes do racismo epistêmico e de, assim, estabelecer intervenções concretas representativas de avanços em termos educacionais. É nessa conjuntura que se torna possível e concreta a tarefa de consolidar as bases para a educação condizente com o futuro que se almeja. Uma Educação Superior Jurídica que, necessariamente, preconize a diversidade, a diferença o multiculturalismo, a valorização cultural de povos cuja história e contribuição epistêmica foi negada e invisibilizada. Um futuro no qual a implementação Política Pública de Educação das Relações Étnico-Raciais seja uma realidade observável e pressuposto para o alcance da equidade e da diversidade no âmbito da Educação Superior

 Folgo em considerar que a arquitetura de toda a Tese se desenha no sentido de criar bases pedagógico-curriculares para urdir uma tessitura epistemológica libertadora  que preconiza a contribuição de saberes produzidos como forma de insurgência ao racismo epistêmico e aos processos de dominação, promovedores do diálogo horizontal, do reconhecimento da diversidade étnico-racial e da sua influência nos projetos educativos de valorização cultural e histórica da população afro-brasileira. Daí decorre a proposta de associar à análise do fenômeno jurídico referenciais teóricos que emergem como saberes emancipatórios capazes de potencializá-lo – como a Bioética Latino-Americana de Intervenção e a Afrocentricidade.

Mas também levar a uma proposição de uma educação regida pela pedagogia da práxis, prenunciada por Moacir Gadotti, remonta ao desafio de caminhar dialeticamente rumo ao novo a partir de ideias historicamente já consolidadas. O retorno ao horizonte da dialética cotidiana, assim como o resgate de autores advindos da teoria crítica do direito concebido como marginal, consolida a educação em termos de libertação na medida em que possibilita compreendê-la como instrumento de ação e de intervenção política e social.

Para esse objetivo o enlace das proposições desenvolvidas por Luis Alberto Warat e Roberto Lyra Filho, partindo do deslocamento paradigmático do primeiro e da inferência dialética do segundo que se projete enquanto concepção de ensino que se nutra da concepção articuladora derivada desses fundamentos e que se manifesta na concepção e na prática de O Direito Achado na Rua, tal como eu o formulo.

A Autora faz uma qualificada resenha do desenvolvimento desses fundamentos até onde logrou recensear o catálogo bibliográfico construído nesse percurso. Pena que não pode usufruir do mais atua lizado levantamento crítico nesse sentido que inclui recentíssima, porém depois de depositada a Tese para exame da Banca, contida em Direito.UnB. Revista de Direito da Universidade de Brasília. Programa de Pós-Graduação em Direito – Vol. 6, N. 2 (mai./ago. 2022) – Brasília, DF: Universidade de Brasília, Faculdade de Direito (https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/issue/view/2503/748).

Com uma chamada a título celebratório O Direito Achado na Rua. Contribuições para a Teoria Crítica do Direito, a edição “analisa as contribuições de O Direito Achado na Rua para a Teoria Crítica do Direito, a partir dos estudos desenvolvidos por José Geraldo de Sousa Junior e tendo como referência o repertório de textos apresentados para a elaboração do Dossiê Especial na Revista de Direito da Universidade de Brasília com foco nas temáticas relacionadas à Educação em Direitos Humanos, Novos Saberes e Práticas Pedagógicas Emancipatórias; Acesso, Democratização e Controle Social da Justiça, Assessoria Jurídica e Advocacia Popular; Constitucionalismo Achado na Rua; Direito à Cidade; Direito, Raça, Gênero, Classe e Diversidade; Direitos Humanos; Movimentos Sociais e Sujeitos Coletivos de Direito; O Direito Achado na Rua: concepção e prática; Trabalhadores, Justiça e Cidadania”.

São vários os temas impulsionados pela elaboração de um formidável plantel de pesquisadores, todos e todas vinculados a partir de seus projetos ao Grupo de Pesquisa O Direito Achado na Rua (Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPQ).

Eles refletem em suas abordagens a partir de um fio condutor que alinhava um amplo painel de interesses que se encontram desde Warat e Lyra Filho num enlace que liga o conhecimento do Direito e seus modos ensino.

De certo modo, com Fábio Sá e Silva (ENSINO JURÍDICO. A Descoberta de Novos Saberes para a Democratização do Direito e da Sociedade, de Fábio Costa Morais de Sá e Silva. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2007; VETORES, DESAFIOS E APOSTAS POSSÍVEIS NA PESQUISA EMPÍRICA EM DIREITO NO BRASIL, de Fábio de Sá e Silva. Revista de Estudos Empíricos em Direito, vol. 3, n. 1, jan. 2016), assim como eu próprio já o anotei em minha participação, como homenageado e como conferencista da sessão inaugural do XXV Encontro Nacional do CONPEDI (Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (Brasília de 6 a 9 de julho de 2016), isso se dá porque o tema da pesquisa, do ensino crítico e extensão popular como práticas instauradoras de diálogos libertários entre a universidade e a sociedade (conhecimento e função social).

Também Fábio, recorrendo à metáfora da “rua” para invocar o sentido de espaço público constituinte em que são instituídas novas formas de sociabilidades e reconhecimentos recíprocos chamei à reflexão sobre os desafios hoje postos ao campo, indicando que O Direito Achado na Rua pode dar novas contribuições ao ensino, à pesquisa e à extensão em Direito e Direitos Humanos, com objetivos sociais mobilizadores.

Em Fábio, é possível cunhar a expressão “diálogos libertários” para inferir um contexto de abertura da Universidade ao diálogo e à promoção do debate, atendendo à sua vocação orientada pelo princípio da indissociabilidade do tripé pesquisa, ensino e extensão e ao (re)conhecimento de práticas insurgentes, de sujeitos coletivos e novos direitos e juridicidades. Tal como Shayne Salles faz em sua tese. Assim, a qualificação de “libertário” ao diálogo proposto, por sua vez, perpassa a dimensão constitutiva da liberdade, compreendida aqui como uma construção, “uma possibilidade de ser” (SOUSA JÚNIOR, José Geraldo. O Direito como Liberdade. O Direito Achado na Rua. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2011, p. 27). A liberdade no agir que é realizada historicamente e de forma conjunta, a liberdade como possibilidade de ser que é, necessariamente, atrelada à emancipação.

Em seu artigo Vetores, Desafios e Apostas Possíveis na Pesquisa Empírica em Direito no Brasil, Fábio se apresenta comprometido com O Direito Achado na Rua, que para ele continua sendo um dos mais emblemáticos projetos nesta linha – integrar como objeto irrecusável do conhecimento jurídico as práticas sociais que estabelecem a tensão entre o instituinte e o instituído – na medida em que entende o direito como o produto das práticas de movimentos sociais e nas tensões que estas estabelecem com a ordem normativa estatal.

Conquanto articule sua leitura pelo triplo enlace epistemológico (esgotamento do positivismo jurídico como conforto racional, alcance do pluralismo jurídico enquanto categoria de análise), metodológico (pesquisa-ação) e político (teorias de sociedade e fundamentos éticos enquanto base para estabelecer modos de determinação do jurídico), Fábio é dos poucos empiricistas (law in action). Embora ele não seja de modo algum rotulável nessa designação, conforme se vê já no resumo de seu artigo (Eventual interesse em celebrar ou promover essa condição não deve ocultar os obstáculos históricos e estruturais contra os quais ela foi erigida, tampouco arrefecer o exercício da nossa consciência crítica sobre os desafios com os quais a PED se defronta) que escapam a auto-contenção das fronteiras que o modo de conhecer sociológico impõe ao campo.

Com efeito, não se deixa enredar no limite de objetos empíricos possíveis de descrição segura (Engels: a descrição verdadeira do objeto é, simultaneamente, a sua explicação), para aceitar os riscos da cognição de objetos fluidos reivindicados pela hipótese do pluralismo jurídico.

Para Fábio, como em Lyra Filho, e agora em Shayne Salles o Direito é, enquanto vai sendo e o desafio é designá-lo, ontologicamente, no movimento de sua contínua transição, quase ao modo de poesia, que desafie o científico na sua exorbitância de querer ter o monopólio do conhecimento, como em Manoel de Barros, até para validar saberes com os quais todas estas informações têm soberba desimportância científica – como andar de costas (O Guardador de Águas, in Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010).

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

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