sexta-feira, 18 de novembro de 2022

 

Artigo | Repúdio, culpabilidade, justiça e responsabilização

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O maior impacto em seguida à proclamação do resultado das eleições no dia 30 de outubro foi a unânime e entusiasmada manifestação internacional de saudação ao Presidente Lula e do retorno do Brasil à cena global econômica, política e diplomática.

 

Os comentaristas falam da despedida melancólica de um governo e de seu representante, absolutamente repudiado (https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/11/12/despedida-de-governo-na-onu-e-transformada-em-ato-de-repudio-a-bolsonaro.htm).

 

Enquanto é aguardado nos debates da COP27 e nas rodadas do G20, sem que a cúpula do País se faça representar (muitos fogem desse vexame a que deram causa), o governo brasileiro (leia-se Jair Bolsonaro), é objeto de sabatina na ONU.

 

Segundo o colunista Jamil Chade, conquanto “governos de todo o mundo, entidades internacionais e nacionais farão um exame do que foi a política de direitos humanos do país”, o centro do debate é a denúncia do “desmonte das instituições, entre elas a Funai, além de criticar o encolhimento do espaço cívico no Brasil durante os anos Bolsonaro: Violência policial, racismo, ataques contra a comunidade LGBT, indígenas e meio ambiente também prometem ser destacados”.

 

 

Segundo a matéria, “A sabatina — conhecida como Revisão Periódica Universal — ainda verá países apresentando recomendações ao novo governo brasileiro sobre como restaurar políticas de direitos humanos. Alguns dos europeus já indicaram que irão sugerir o fortalecimento de órgãos públicos, desmontados durante a gestão de Damares Alves, eleita senadora e que permaneceu até meados do ano como ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos. Durante a revisão, a delegação brasileira será chefiada pela atual ministra, Cristiane Britto, que esteve ao lado do presidente quando ele fez seu primeiro pronunciamento após a derrota nas eleições. O sistema de sabatinas existe para que o mundo possa cobrar melhorias em termos de direitos humanos em um país. Recomendações são feitas e os estados têm a obrigação de dar respostas, quatro anos depois, No caso da revisão do Brasil, o processo ganha um outro componente, com uma espécie de oportunidade para que países que foram humilhados ou criticados por Bolsonaro deem suas respostas. Além das cobranças por parte dos estados, a sabatina ainda será marcada pela participação de mais de uma dezena de entidades da sociedade civil. Muitas delas, ao longo dos meses, submeteram informes para a ONU, trazendo dados sobre a situação do país”.

 

A partir de um quadro de omissões, há um verdadeiro libelo contra a governança e os dirigentes do país. O documento oficial, que serve de base para a denúncia, revela um quadro de desmantelamento de toda a rede de proteção aos direitos humanos, com repercussão letal sobre as populações vulnerabilizadas, notadamente no campo da saúde e do enfrentamento a Covid-19.

 

Em outra matéria, assinada pelo mesmo colunista (https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2022/11/12/parias-bolsonaro-e-putin-ficam-de-fora-da-cupula-do-g20.htm), tratando da ausência do presidente na reunião da cúpula do G20, ele avalia o significado dessa ausência, para estimar que ela “sedimenta a irrelevância internacional de Bolsonaro e seria um “réquiem” de um governo que apequenou o Brasil no mundo. Mesmo dentro do Itamaraty, sua ausência é um sinal de que ele não entendeu o cargo que assumiu em 2019 e que a presença de um presidente do Brasil na cúpula não tem relação com o resultado das eleições. Para diplomatas estrangeiros, a ausência de Bolsonaro é uma mistura de alívio e de “pena” diante do colapso de uma política externa de um país que servia de referência ao mundo. Já em 2021, na cúpula do G20 em Roma, Bolsonaro viveu uma situação de pária internacional, ignorado pelos demais líderes e com uma agenda completamente esvaziada. Mais recentemente, em Nova York, ele voltou a ver sua passagem pela Assembleia Geral das Nações Unidas marcada por uma ausência de encontros de alto escalão e chegou a faltar na reunião que teria com Antonio Guterres, secretário-geral da entidade”.

 

O repúdio internacional corrobora o rechaço interno revelado pelas eleições, contra um projeto, um sistema delinquente que canalizou recursos orçamentários para um objetivo de assalto ao patrimônio público, aparelhou o aparato de segurança e a linha auxiliar miliciana para interferir na livre manifestação, agrediu a institucionalidade de modo ilegal e inconstitucional, sendo, ainda assim derrotado.

 

Todavia, permanece a arregimentação criminosa, no financiamento, no aparelhamento inclusive de setores militares e de forças de segurança, com a docilidade leniente de muitos editoriais e de aliciamento de um colunismo rendido, num movimento torpe de solapamento da soberania popular e do interesse de restauração democrática das instituições.

 

Numa bela carta aberta dirigida ao Presidente Lula, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (https://sul21.com.br/opiniao/2022/11/carta-aberta-ao-presidente-lula-da-silva-por-boaventura-de-sousa-santos/), entre várias lúcidas e pertinentes considerações, celebra a vitória, que não é apenas pessoal, mas de uma ampla e ética mobilização, menciona a enorme credibilidade mundial que o Presidente acumula e que deverá exercitar em todas as agendas globais, mas adverte para essa conspiração subalterna e clandestina que só o voto não é bastante para debelar.

 

O Presidente Lula, diz Boaventura “Vai ter de conviver com a permanente ameaça de desestabilização. É a marca da extrema-direita. É um movimento global que corresponde à incapacidade de o capitalismo neoliberal poder conviver no próximo período com mínimos de convivência democrática. Apesar de global, assume características específicas em cada país. O objetivo geral é converter diversidade cultural ou étnica em polarização política ou religiosa. No Brasil, tal como na Índia, há o risco de atribuir a tal polarização um carácter de guerra religiosa, seja ela entre católicos e evangélicos ou entre cristãos fundamentalistas e religiões de matriz africana (Brasil) ou entre hindus e muçulmanos (Índia). Nas guerras religiosas a conciliação é quase impossível. A extrema-direita cria uma realidade paralela imune a qualquer confrontação com a realidade real. Nessa base, pode justificar a mais cruel violência. O seu objetivo principal é impedir que o Presidente Lula termine pacificamente o seu mandato”.

 

Por isso, estão certos aqueles que sustentam que é hora de falar em punição e não em pacificação, como o faz Milly Lacombe, colunista do UOL (https://www.uol.com.br/esporte/colunas/milly-lacombe/2022/11/05/e-hora-de-falar-em-punicao-e-nao-em-pacificacao.htm).

 

Na linha da melhor orientação da chamada justiça de transição, acentua que repúdio, culpabilidade, justiça e responsabilização, são marcas de memória para prevenir recorrências e não premiar contraventores que lesam a humanidade, o país e o povo.

 

Diz o seu texto: “Uma das mais eficazes ferramentas do capitalismo, especialmente em sua versão neoliberal, é a capacidade de inverter todas as pautas. Antes mesmo de Lula sair vencedor da eleição já escutávamos intelectuais liberais falando em anistia e em pacificação. As mesmas pessoas que passaram quatro anos numa boa vendo Bolsonaro afundar o Brasil em violências de todos os tipos, da lentidão para comprar vacinas até a congratulação a policiais que se comportavam como milicianos passando pelos inúmeros sigilos de 100 anos em qualquer suspeita de malfeito ou corrupção, agora pedem que Lula e sua turma sejam os pacificadores. Querem que aqueles que passaram quatro anos sendo abusados sejam os pacificadores. Não haverá pacificação sem punição. Não haverá pacificação sem a construção de um espaço de memória, de investigações e confrontos a respeito de um passado nem tão distante como o da ditadura. Agora é a hora de colocar todo esse horror na mesa e fazer uma autópsia do que passamos. Investigar, processar, punir”.

 

Bastaria incluir no libelo o horror da gestão necropolítica da crise sanitária. Talvez por isso o senador Renan Calheiros (MDB-AL), que foi o Relator da CPI da Covid, afirme que uma anistia a Jair Bolsonaro (PL) não acontecerá. “Bolsonaro está apavorado, querendo uma anistia, um acordo de não punição. Mas isso, na circunstância em que ele criou no Brasil, é difícil de acontecer”. É preciso, ele diz, “dar consequência a todas as investigações, inclusive aquelas que foram postas pela CPI. Não dá para passar pano nisso. Bolsonaro é responsável por uma grande quantidade de mortes no Brasil. A CPI demonstrou que se ele tivesse feito a sua parte, comprado as vacinas no momento em que foram oferecidas, nós teríamos salvo uma quantidade significativa de vidas”. (https://www.brasildefato.com.br/2022/11/13/renan-calheiros-afirma-que-bolsonaro-esta-apavorado-e-que-anistia-nao-acontecera).

 

Eis que o insuspeito Estadão, em matéria de Opinião (Editorial), também indique a necessidade de atribuir “responsabilidade jurídica de Bolsonaro”. Para o Jornal, “Não basta o juízo político das urnas. Se há indícios de que a lei penal foi descumprida, é preciso investigar. A paz não é fruto da impunidade, mas da efetiva igualdade de todos perante a lei” (https://12ft.io/proxy?q=https%3A%2F%2Fopiniao.estadao.com.br%2Fnoticias%2Fnotas-e-informacoes%2Ca-responsabilidade-juridica-de-bolsonaro%2C70004158307).

 

Para o Jornal, “os quatro anos de governo produziriam um respeitável passivo jurídico, com incidência direta na esfera penal”, que não pode ser desconsiderado: “O País precisa exatamente disso: investigação serena e criteriosa, dentro da mais estrita legalidade, respeitando as competências competentes, para apurar os indícios de crime e as respectivas responsabilidades, de forma a permitir depois, quando for o caso, a aplicação, pelas vias judiciais competentes, das penas legais cabíveis. Não se trata de perseguir ninguém. Mas não é plausível que, diante de tantas projeções – pequenos ou grandes, como, por exemplo, são as suspeitas envolvendo o MEC –, nada seja investigado. Jair Bolsonaro não está acima da lei. A tão necessária pacificação nacional não virá da impunidade, mas da efetiva percepção de que todos são iguais perante a lei”.

 

O gato pode se esconder, mas seu rabo comprido sempre ficará de fora. Assim como é inconstitucional e inconvencional (sistema internacional de direitos), medidas de autoanistia para infrações que são imprescritíveis por sua ofensividade, tortura entre elas, também será inconstitucional e inconvencional qualquer medida que tenha por fim gerar impunidade, tal qual a espúria iniciativa atribuída ao governo de criar por PEC,   cargo de senador vitalício para ex-presidentes (https://veja.abril.com.br/politica/governo-articula-para-criar-cargo-de-senador-vitalicio-para-ex-presidentes/).

 

Nem o escapimismo de exílios que se disfarcem em assunção de nacionalidades. O sistema internacional de proteção aos direitos humanos já consagrou com fundamento no conceito de jus cogens, a aplicação do princípio da jurisdição universal para responsabilizar a prática de crimes contra a humanidade. Foi assim que o ditador chileno Augusto Pinochet, estando em território inglês, foi submetido a julgamento a partir de jurisdição nacional (Espanha), e nesses termos sentenciado.

 

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)


José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

 

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).

 

 

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