Resenha:
CORREIA, Ludmila Cerqueira; ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUZA JUNIOR, José
Geraldo. A expansão semântica do acesso à justiça e o direito achado na
assessoria jurídica popular. In: REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUSA JUNIOR, José
Geraldo; CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues (Org.). Experiências compartilhadas de acesso à justiça: Reflexões teóricas
e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2016.
Autoras e autores: Alyne
Maria Figueira de Alencar; Ana Luísa Domingues Galvão; Camila Almeida Ferreira;
Carlos Eduardo Silva Barbedo; Carlos Henrique da Silva Figueiredo; Diogo da
Silva Ferreira; Égon Rafael Oliveira; Gustavo Galassi; Jhonas de Sousa Santos;
João Mário Ribeiro Santos; Julyane Laine Gomes da Silva; Mariana Maciel Viana
Ferreira; Myllena Cristina Araujo de Moura; Samya Trinie da Silva S. Costa;
Victor Vicente. Brasília.
1.
INTRODUÇÃO
A
relatoria apresentada à disciplina de Pesquisa Jurídica tem como objetivo
discutir o tema Assessoria Jurídica Popular. A premissa inicial versava sobre a
apresentação do texto (produzido por Ludmila Cerqueira Correia – Universidade
Federal da Paraíba; Antonio Escrivão Filho – Universidade de Brasília; e José
Geraldo de Sousa Junior – Universidade de Brasília) “A expansão semântica do
acesso à justiça e o direito achado na assessoria jurídica popular”, que compõe
os escritos da parte I do livro “Experiências compartilhadas de acesso à
justiça: Reflexões teóricas e práticas”, onde a autora e os autores propõem uma
reflexão teórica a respeito do acesso à justiça através da experiência da
assessoria jurídica popular.
Sabendo
da extensão e importância do tema, buscamos, no trabalho apresentado aqui, a
articulação, dessa perspectiva inicial, com discussões correlatas. Assim,
somamos os escritos de Boaventura de Sousa Santos, expoente na discussão de
acesso à justiça e pautas de cunho democratizante e outros pensadores que
dialogam com o tema e suas ramificações. Logo, o presente trabalho irá abordar
e delinear as principais características da assessoria jurídica popular e
algumas de suas possíveis intersecções.
Para
isso o trabalho foi dividido em: Para uma revolução democrática da justiça; O
direito na concepção de “O Direito Achado na Rua”; Deslocamentos analíticos
para a compreensão do acesso ao direito e à justiça; Reflexões a partir da assessoria
jurídica popular; e O Direito Achado Na Rua e a assessoria jurídica popular.
2.
PARA UMA REVOLUÇÃO DEMOCRÁTICA DA JUSTIÇA
2.1.
A politização do Direito
Um
dos maiores impasses da atualidade é a relação conflituosa entre perguntas
fortes e respostas fracas, segundo Boaventura de Sousa Santos. Assim, no que
tange ao direito, faz-se o seguinte questionamento forte: “Se o direito tem
desempenhado uma função crucial na regulação das sociedades, qual a sua
contribuição para a construção de uma sociedade mais justa?” (SANTOS, 2011, p.
25). A resposta fraca para a indagação em tela consiste em focalizar a
importância do Estado de direito e das instituições jurídicas para garantir o
desenvolvimento econômico. Nesse sentido, a busca por uma resposta forte exige
o alargamento dessa concepção hegemônica de Estado monopolizador da produção
normativa, de forma a buscar um novo senso comum jurídico que possibilite a
emancipação social.
O
neoliberalismo que se verifica na contemporaneidade clama por um sistema judiciário
eficiente, que confira segurança jurídica aos negócios. As reformas pelas quais
passa a Justiça, então, são orientadas pelo ideal de rapidez, servindo
seletivamente aos interesses econômicos de entes como o Banco Mundial e o Fundo
Monetário Internacional (FMI). Na contramão desse movimento situa-se outro
campo, constituído por cidadãos que veem no direito um instrumento de busca de
suas justas aspirações (SANTOS, 2011). O que esse setor contra-majoritário
enxerga é a exclusão social, a precarização do trabalho, como se verifica nos
recentes projetos de reforma e na violência opressora. Boaventura de Sousa
Santos denomina essa realidade a partir da noção de fascismo social (IBIDEM).
Nos
últimos anos, esses cidadãos organizaram-se em movimentos sociais, criando uma
nova base para a reivindicação de direitos. Utiliza-se, então, o exemplo do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para denotar o que o autor
define como “legalidade cosmopolita ou subalterna” (SANTOS, 2011, p.22). Esse
movimento passou a dar um novo sentido a sua luta, incorporando os institutos
jurídicos como os de função social da propriedade. Verificou-se a utilização
dos instrumentos hegemônicos de forma não hegemônica, mas, sim, para o
atendimento das demandas por justiça social.
Ainda
nesse pleito, os movimentos sociais lançam luz sobre outra ideia de muita
relevância. Evidenciam que, para além da procura efetiva de direitos, existe
uma procura suprimida. “É a procura daqueles cidadãos que têm consciência dos
seus direitos, mas que se sentem totalmente impotentes para os reivindicar
quando são violados” (SANTOS, 2011, p.23). O titular do direito violado
sente-se esmagado, oprimido pela opulência da linguagem jurídica, pela
luxuosidade dos prédios, pela complexidade do processo. Esse é um
distanciamento socialmente construído e que, se considerado, deve levar a uma
grande revolução do sistema judiciário.
Nesse
contexto, é de suma importância o questionamento a respeito de que tipo de
mobilização política pode ser feita para sustentar a mobilização jurídica de
aprofundamento democrático. Focaliza-se, então, uma mudança recíproca, de cunho
jurídico-política, baseada em profundas reformas processuais; novos
protagonismos no acesso ao direito à justiça; pluralismo jurídico; revolução na
formação do profissional do direito; uma relação do poder judicial mais
transparente com o poder político e a mídia, entre outros (SANTOS, 2011).
Portanto,
é fundamental que o sistema judicial afaste a posição de independência
corporativa rígida para assumir uma postura engajada, angariando aliados na
sociedade e abandonando o isolamento a fim de buscar a articulação com outras
organizações e instituições para melhor realização da justiça social. A
politização do direito, nesse sentido, consiste em aumentar o nível de
tensionamento na relação com outras instâncias de poder, adequando-se ao ideal
de sistema jurídico e judicial em um Estado Democrático de Direito.
2.2.
As três ondas do acesso à justiça
Objetivando
sua universalização, o acesso à justiça tem passado por grandes transformações
em âmbitos estrutural e processual nos últimos 50 anos (SANTOS, 2011). Em um
estudo sociológico deste movimento histórico, Cappelletti e Garth apontam 3
grandes “ondas” no desenvolvimento do acesso à justiça, e que pautaram a luta
por este direito.
A
primeira onda, chamada por Cappelletti e Garth de “assistência judiciária para
os pobres” (1988, p.31), compreenderia o processo em que as sociedades
ocidentais buscariam “proporcionar serviços jurídicos para os pobres” (IBIDEM).
De acordo com Cappelletti e Garth, a tecnicidade que as práticas jurídicas
adquiriram exigiram um conhecimento cada vez mais especializado e, por isso,
cada vez mais distante da realidade das classes mais pobres, cenário que a
primeira onda almejaria mudar. A partir dos avanços desta onda, “o apoio
judiciário deixa de ser entendido como filantropia e passa a ser incluído como
medida de combate à pobreza” (SANTOS, 2010, p. 31).
A
segunda onda se diferiu da primeira no ponto em que buscava a representação de
interesses coletivos e difusos, se opondo ao esquema tradicional de resolução
de processos, que se baseava no contraponto entre duas partes de caráter
individuais (CAPPELLETTI & GARTH, 1988). Cappelletti e Garth ainda afirmam
que este movimento está fortemente vinculado com o caráter de política pública
que muitos destes litígios adquiriram e que a legitimação de grupos os quais
representam interesses coletivos se deu neste contexto. Assim “a visão
individualista do devido processo judicial está cedendo lugar rapidamente, ou
melhor, está se fundindo com uma concepção social, coletiva” (CAPPELLETTI &
GARTH, 1988, p.51).
A
terceira e última onda alia pontos e conquistas das duas anteriores, porém as
apresenta como algumas dentre várias possibilidades, já que estas estão
estritamente vinculadas a uma busca por representação, individual na primeira
onda e coletiva na segunda (CAPPELLETTI & GARTH, 1988). A terceira onda
surge à procura da ampliação da concepção de acesso à justiça, propondo uma gama
maior de reformas, considerando os tribunais como parte de uma rede e admitindo
formas alternativas de resolução de litígios (SANTOS, 2011, p. 31).
2.3.
As Defensorias Públicas
Ao
discorrer sobre as defensorias públicas, Boaventura de Sousa Santos enumera seus
objetivos, contidos em sua concepção: a orientação pela defesa da população
mais encarecida e a universalização do acesso. Ambos dialogam com os movimentos
das ondas de acesso à justiça. Um modelo ideal de defensoria pública, como está
prevista a atuação desta instituição no Brasil, carregaria consigo uma série de
vantagens potenciais, como “universalização do acesso […], assistência jurídica
especializada […], diversificação do atendimento e da consulta jurídica […], e
ainda, atuação na educação para os direitos” (SANTOS, 2011, p.33).
Obviamente
que estas vantagens nem sempre se traduzem em vantagens reais. A limitação do
atendimento, as diferenças de estruturas funcional e orçamentária nos diversos
estados da federação e a sobrecarga dos defensores públicos são apenas alguns
dos obstáculos apontados por Sousa Santos. Há ainda a problemática que diz
respeito a juridicidade da defensoria pública e de sua atuação: a Ordem dos
Advogados do Brasil pleiteia a competência de processos individuais enquanto o
Ministério Público atua na direção dos processos coletivos e difusos.
2.4.
Custas judiciais
Talvez
o maior desafio enfrentado por um projeto de universalização do acesso à
justiça ainda seja o dos custos envolvidos em um processo judicial. A
disparidade existente entre os custos das diversas Unidades Federativas traduz
uma carência de padrões nos critérios envolvidos (SANTOS, 2011). Mas não é
apenas isso, Sousa Santos aponta também a falta de transparência da legislação,
a existência de políticas que oneram classes economicamente inferiores em
alguns estados e a distorção entre valores praticados nas 1ª e 2ª instâncias*.
Como soluções para estes problemas, Sousa Santos aponta a padronização dos
valores envolvendo o sistema judiciário e, principalmente, o aumento do
estímulo a outras iniciativas, alternativas às resoluções nos tribunais.
2.5.
Modelos de iniciativas de assessoria jurídica popular
Apresentando
como modelos alternativos, Santos demonstra o sucesso e importância de
inciativas como as promotoras legais populares, as assessorias jurídicas
universitárias populares, a capacitação jurídica de líderes comunitários e a
advocacia popular. Cada uma possui um enfoque, porém se encaixam dentro de uma
proposta geral de sistema judiciário alternativo, que está intimamente ligado à
realidade social e que busca a resolução de litígios fora dos tribunais de justiça
e a emancipação de seus participantes através do conhecimento jurídico. Santos
descreve modelos organizacionais de assessoria jurídica popular. Nessa
descrição, é digno de nota, o avanço histórico deste tipo de atividade a partir
da transição democrática. Nota-se também um tom otimista do autor (em 2010). A
assessoria jurídica popular transita de campo temático: inicialmente com ênfase
nos direitos sociais, passa a focalizar direitos coletivos. Há avanço
quantitativo e qualitativo das organizações prestadoras de assessoria jurídica
popular. Nas defensorias públicas, aumento do quadro de pessoal, do número de
entes federativos que a prestam, positivação legal e constitucional, autonomia
funcional e financeira. Por fim, é possível perceber na sociedade civil a
ampliação do número de atendimentos e dos laços com o setor público, um maior
nexo entre a práxis social e o tripé universitário ensino-pesquisa-extensão.
3.
O DIREITO NA CONCEPÇÃO DE O DIREITO ACHADO NA RUA
É
possível observar, no século XX, o momento de esgotamento do paradigma do
modelo econômico de organização social pautado no pensamento liberal e a
expansão discursiva de pautas, dadas, até então, a partir de uma perspectiva
socialista. Essa perda de hegemonia do pensamento liberal clássico interfere
nas demais estruturas e relações sociais, dentre elas o direito. Esse processo
possibilita a busca por uma nova orientação jurídica, com vistas à expansão da
justiça social em detrimento de noções puramente positivistas.
Essa
busca por noções claras de justiça social leva em consideração o papel dos
oprimidos e historicamente marginalizados, como criadores de direitos, e a
negação do Estado, como único produtor do direito. Sendo fruto de um momento
histórico, que rompe paradigmas, tal como fez o movimento da magistratura
democrática italiana no final da década de 60, que preza por um “uso
alternativo do direito”, tendo influenciado pensamentos em outros países da
Europa, como Espanha, França, Alemanha e diversos países da América Latina
(BERCLAZ, 2005), bem como “O Direito Achado na Rua” no Brasil. Marcada pela
luta por abertura política e formação da constituinte que favoreceu o
desenvolvimento dessa nova prática do direito, que buscava manter o diálogo
entre a norma e a realidade, bem como o respeito aos Direitos Humanos e a busca
pelos direitos sociais. Dessa forma, o direito passa a compreender e reconhecer
a existência de estruturas sociais dinâmicas e reivindicações populares.
Desse
modo o direito é o meio para a formação de uma sociedade menos díspare, na qual
o respeito pela dignidade humana é superior aos aspectos econômicos e puramente
jurídicos. Como defende Roberto Lyra Filho, em um de seus muitos princípios,
“não nos curvamos ante o fetichismo do chamado direito positivo, seja ele
costumeiro ou legal” (FILHO, 2000, p.499). Assim, O Direito Achado na Rua
contribui como propositor de noções emancipatórias e não a repetição de uma
restrição regulamentar, usando o direito de maneira política, afirmando-o de
maneira clara e sem subterfúgios de suposta neutralidade, sendo o seu objetivo,
sobretudo, a busca por legitimar a luta por direitos dos movimentos populares
nos âmbitos jurídico e normativo brasileiro.
4.
DESLOCAMENTOS ANALÍTICOS PARA COMPREENSÃO DO ACESSO AO DIREITO E À JUSTIÇA
Com
a criação da Constituição de 1988 – que em seu artigo 5º garante a todos o
direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra
ilegalidade ou abuso de poder – houve a positivação do direito ao apoio para
acesso jurídico para todos os cidadãos brasileiros. O direito de acesso à
justiça, portanto, é assegurado pela Carta Magna, e configura-se entre os
direitos fundamentais. Contudo, no Brasil, esse acesso à justiça não é
assegurado a todos, havendo grandes desigualdades nessa área, uma vez que a porta
de entrada na Justiça não tem se configurado como possibilidade de inclusão e
construção da cidadania.
Essa
dificuldade de consonância é expressada por obstáculos de ordem econômica,
social e cultural. Em outras palavras, no Brasil, apresenta-se a possibilidade
positivada de acesso aos direitos constitucionalizados, mas a impossibilidade
de produção e expansão desses direitos. Por isso fez-se, e ainda é,
indispensável a abertura de canais de interlocução a respeito das disparidades
experimentadas entre o direito da lei e o direito da práxis. Assim sendo, o
deslocamento proposicional realizado pela assessoria jurídica popular, que
transporta dos gabinetes e autarquias, das formas e normas dadas e postas, o
direito inteligível e inacessível, para as camadas desassistidas e
invisibilizadas, dando a elas condições de expansão da noção de direito e de
exercício de cidadania, permite-me, logo, conceber o alinhamento conceitual
dessas práticas com as proposições realizadas pelo O Direito Achado na Rua que
“se apoia sobre um exercício analítico que desloca a centralidade e prioridade
da norma estatal enquanto referencial de legitimidade e validade do direito,
para encontrar como referencial os processos sociais de lutas por libertação e
dignidade” (CORREIA; ESCRIVÃO FILHO; SOUZA JUNIOR, 2016, p.85). A partir disso
“a investigação passa então a demonstrar como o acesso à justiça está
relacionado com a mobilização jurídica dos movimentos sociais, reconhecendo os
fatores que impedem que o acesso seja efetivo” (IBIDI, p.88).
5.
REFLEXÕES A PARTIR DA ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR
Assim,
a assessoria jurídica popular nasce no Brasil como expressão jurídico-política
da emergência dos movimentos sindicais e sociais, que a partir da década de
1970 viriam a combater a ditadura civil-militar e conquistar a abertura a um
regime de enunciado democrático. A assessoria jurídica popular se configura
como uma prática jurídica diferenciada, voltada para a realização de ações para
garantia do acesso à justiça a sujeitos coletivos organizados em torno da luta
por direitos, mesclando assistência jurídica e atividades de educação popular
em direitos humanos, organização comunitária e participação popular (CORREIA;
ESCRIVÃO FILHO; SOUZA JUNIOR, 2016, p.90).
A
assessoria jurídica se torna um instrumento de acesso à justiça por grupos e
indivíduos marginalizados, cujos direitos, até então, haviam sido completamente
negados. Assim, para sua efetivação, faz-se necessário o contato com os
assessorados, para que se compreendam suas reais demandas e necessidades e se
façam ações organizadas. Esse contato e a socialização do saber jurídico se dão
pelas metodologias empregadas de educação popular, sendo indispensável o
empoderamento de grupos e indivíduos para que sejam os atores principais da
luta pelos seus próprios direitos.
Quanto
à sua unidade e organicidade, no país, temos a Rede Nacional de Advogadas e
Advogados Populares – RENAP. Além disso, existem os advogados profissionais,
cuja atuação é pautada no compromisso com a luta social, e os mais de 40
escritórios de Assessoria Jurídica Universitária Popular – AJUPS. Todas essas
organizações, advogados e escritórios atuam na formação de uma cultura
participativa. Por meio do assessoramento popular, as pessoas têm a
oportunidade de se inserir no meio jurídico com o apoio de profissionais, os
quais podem contribuir para a construção de um direito democrático e plural com
vistas à emancipação jurídica. Além de propor a desconstrução do modelo
político instituído, que reserva o direito à voz política, na prática, apenas a
uma classe dominadora e ao Estado. Sua atuação, leva à aproximação entre o
direito e a realidade social e procura garantir o direito dos vulneráveis,
proporcionando a atuação do Direito na práxis e a introdução do indivíduo na
prática da cidadania.
6.
O DIREITO ACHADO NA RUA E A ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR: REALIZAÇÃO POLÍTICA DO
DIREITO E DA JUSTIÇA
O
Direito Achado na Rua assume uma posição emancipadora que envolve teoria
crítica social sem excluir a prática da mesma, apresentando-nos sua eficácia.
Nesse aspecto, o projeto se apresenta como uma proposta epistemológica e
orgânica, a qual se concretiza em materiais didáticos, seminários, encontros de
debate e deliberação e em práticas de formação comunitária. Tamanha é a
magnitude de O Direito Achado na Rua, que ele se reflete, por exemplo, em
experiências como a Assessoria Jurídica Universitária Popular, doravante tomada
pela sigla AJUP, a qual é orientada pela interação entre assessoria jurídica
para comunidades secundarizadas e educação popular no campo dos direitos
humanos. É ainda a representação de um projeto de extensão universitária que
busca viabilizar o diálogo entre diversas camadas sociais acerca dos problemas
enfrentados por elas, a fim de solucioná-los por meio da efetivação dos
direitos fundamentais de cada indivíduo, que se dá através de mecanismos
institucionais e extrajurídicos.
A
universidade tem um papel primordial nesse contexto, uma vez que é ponto
convergente de ensino, pesquisa e extensão. Essa tríade fundamental é transformada
na variante “pesquisa-ação, ensino crítico e extensão popular” (SOUSA JÚNIOR,
2015, p.164), programas esses que foram incrementados pelo prisma d’O Direito
Achado na Rua, visando que os estudantes não sejam meros assimiladores de
conteúdo, mas que possam articular sala de aula e ruas, o que exige deles um
aprofundamento filosófico para que trabalhem a partir das necessidades sociais,
mas com o rigor metodológico que convém. Essa nova dinâmica inserida no
aprendizado do Direito proporciona a concretização da responsabilidade social
que cabe às Universidades como centros pensantes e atores de otimização
pública. Assim, os estudantes têm a oportunidade de abandonarem uma posição
passiva frente aos conteúdos e o modo como são ensinados e tanto assumirem o
papel de críticos, quanto poderem ser ativos na sociedade. Eles são estimulados
a pensar no Direito como ferramenta de transformação que se dá por intermédio
da relação direta com a comunidade.
As
AJUPS estão sediadas nas principais universidades brasileiras, não sendo a
Universidade de Brasília uma exceção. Aqui está representada a AJUP Roberto
Lyra Filho, a qual além de evocar o nome do mentor teórico de O Direito Achado
na Rua, assessora as comunidades marginalizadas do Distrito Federal. Essa relação
implica em resultados satisfatórios para ambas as partes envolvidas no projeto.
O protagonismo estudantil favorece a prática do Direito no sentido em que
desconstrói a visão elitista e burocrática do mesmo, e o 11 concebe como um
caminho para o exercício da cidadania e de se fazer política. Pois, através do
diálogo público, pode-se identificar os anseios sociais e propor elucidações
que precisam ser testadas e ponderadas pelos estudantes e pesquisadores que são
gerados aqui.
Desfaz-se
assim a rotulação de que a universidade é um meio autossuficiente: visão que
ainda permeia o imaginário e perpassa gerações, cegando e limitando a prática
jurídica genuína. Em contrapartida, a prática da Assessoria Jurídica
Universitária Popular auxilia os movimentos sociais e populares na medida em
que, além de na educação dos direitos, atua na defesa jurídica e com
estratégias políticas, fazendo do direito um recurso de empoderamento
comunitário. Nesse sentido, os grupos secundarizados da sociedade que são
atendidos se veem em uma posição ativa que os permitem ter acesso à justiça,
uma vez que são não apenas instruídos para isso, como são encorajados em seu
ativismo e prática cidadãs.
Esse
caráter engajado, como já havia sido anunciado por Sousa Junior, se
substancializa quando da intervenção social se objetiva a democratização da
justiça e se leva essa experiência para o ambiente acadêmico como “referência
para a definição de novas práticas docentes e de pesquisa” (SOUSA JÚNIOR, 1993,
p. 13). Desse modo a partir do momento em que advogados populares, estudantes e
educadores desenvolvem um trabalho com vistas ao esclarecimento,
conscientização e reivindicação dos indivíduos frente às leis, ao direito
positivo, fazendo com que essas pessoas invisibilizadas percam o temor de cobrar
e buscar o que lhes é assegurado pela Constituição, o Direito achado na rua e a
ação da Assessoria Jurídica Popular se complementam e notabilizam a afirmação
do direito como sendo uma legítima organização social da liberdade.
7.
CONCLUSÃO
São
muitas as faces do direito e todas elas ficam claras na temática de O Direito
Achado na Rua. Mulheres, trabalhadores, pessoas sem terra e muitos outros
movimentos sociais lutam por seu espaço na sociedade e lutam por ver brotar, a
cada dia, o direito legítimo, ancorado na liberdade. Esse Direito legítimo já
nos é formalmente afirmado na nossa dita Constituição Cidadã, claramente no
Art. 3°, IV, em que se promove o bem de todos os cidadãos independentemente das
diferenças. É garantida a justiça e o acesso a essa justiça. Porém, como diz
Dalmo de Abreu Dallari:
Não
basta afirmar, formalmente, a existência dos direitos, sem que as pessoas
possam gozar desses direitos na prática, [é] indispensável também a existência
de instrumentos de garantia, para que os direitos não possam ser ofendidos ou
anulados por ações arbitrárias de quem detiver o poder econômico, político ou
militar. (DALLARI, 2004, p. 96).
Com
a demanda criada a partir da Constituição, surgem e se desenvolvem muitos
mecanismos de assistência, como a Assessoria Jurídica. O Direito Achado na Rua,
por meio dessa Assessoria Jurídica, se faz presente na sociedade, na
"rua", saindo do domínio da universidade, de dentro das salas de
aula, para lutar junto com os movimentos sociais pela justiça, pela liberdade e
pelos direitos de cada um, principalmente dos oprimidos pelas classes sociais
detentoras do poder. A contribuição de O Direito Achado na Rua para o Direito
social é tanto afirmada na teoria, com a interação entre docentes e discentes
nas muitas produções didáticas por meio do tripé ensino, pesquisa e extensão,
como na prática, na formação de profissionais que dialoguem com os movimentos
sociais.
Por
fim, é possível concluir que “a atuação articulada da assessoria jurídica
popular possibilita a aproximação do direito à realidade social” (CORREIA;
ESCRIVÃO FILHO; SOUSA JUNIOR, 2016, p.93) e que esta reflete, a práxis de uma
urgência anunciada pel’O Direito Achado na Rua desde sua fundação, num processo
de dialogicidade e dialética que transmuta em sua interlocução o sujeito
individual de não-direito, num sujeito coletivo de direito, “proporcionando o
apoio à efetivação dos direitos dos grupos subalternizados, seja através de
mecanismos institucionais, judiciais ou por mecanismos extrajudiciais,
políticos e de conscientização” (IBIDEM).
8.
BIBLIOGRAFIA
BERCLAZ,
Marcio. O Movimento do Direito Alternativo no Brasil: Aportes e Fragmentos para
Compreensão e Atualização. 2015. Disponível em
http://emporiododireito.com.br/omovimento-do-direito-alternativo-no-brasil/. Acessado
em 01 de Maio de 2017.
CAPPELLETTI,
Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto
Alegre: Fabris, 1988.
CORREIA,
Ludmila Cerqueira; ESCRIVÃO FILHO, Antonio; SOUZA JUNIOR, José Geraldo. A
expansão semântica do acesso à justiça e o direito achado na assessoria
jurídica popular. In: REBOUÇAS, Gabriela Maia; SOUZA JUNIOR, José Geraldo;
CARVALHO NETO, Ernani Rodrigues Org(s). Experiências compartilhadas de acesso à
justiça: Reflexões teóricas e práticas. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo,
2016.
DALLARI,
Dalmo de Abreu. Direitos humanos e cidadania. São Paulo: Moderna, 2004.
LYRA
FILHO, Roberto. A Nova Escola Jurídica Brasileira. Revista Notícia do Direito
Brasileiro. Brasília, n.º 7, 2000. p. 497-507.
SANTOS,
Boaventura de. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez
Editora, 2011.
SOUSA
JUNIOR, José Geraldo de. O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Juris, 2015.
SOUSA
JUNIOR, José Geraldo de (Org.). Introdução crítica ao direito. 4. ed. Brasília:
Ed. UnB, 1993. (Série O Direito Achado na Rua, v. 1).
* Boaventura de Sousa
Santos usou um estudo realizado pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do
Conselho Nacional de Justiça como base para estas afirmações.
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