segunda-feira, 12 de junho de 2017

Resenha do artigo "Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis", de Nita Freire, por estudantes de Pesquisa Jurídica da UnB

Resenha: FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Acesso à Justiça e a Pedagogia dos Vulneráveis. O pensamento de Paulo Freire e sua relação com o Direito como prática para a libertação. In: Introdução crítica ao direito à comunicação e à informação. Série O Direito Achado na Rua, vol. 8. SOUSA JUNIOR, José Geraldo et al. (Org.). Brasília: FACUnB, 2016. p. 69-77.


Autoras e autores: Pietra Mendonça Ribeiro de Magalhães Cordeiro, Victor Frank Corso Semple, Pedro Mineiro Soares, Thaísa de Souza Galvão, Sérgio Garcia Viriato, Vitor Gonçalves Damasio, Bianca França dos Reis, Karen de Souza Paiva, Augusto Oliveira Mendonça de Carvalho, Rogério Bontempo, Cândido Gontijo, Larissa Pontes Dias Matos, Mateus Gaudêncio Marques, Camila Gomes Martins Sobrinho


O texto em análise trata-se de uma fala proferida em 2014, em uma conferência da Escola de Magistratura de Buenos Aires por Nita Freire (Ana Maria Araújo Freire), mestra e doutora em Educação. Como seu marido, Paulo Freire, Nita vai muito além da educação para explorar as pedagogias que regem as diversas formas de comportamento humano. No texto em questão, trata da pedagogia dos vulneráveis e do acesso à Justiça destes. Acesso à Justiça, para Boaventura de Sousa Santos significa uma maneira de pensar que não somente signifique um programa de reformas, mas mudanças de concepção que incorporem à Justiça e ao Direito o espectro democrático participativo (VITOVSKY, 2016). Tal tema a que se refere Nita Freire é o modo como Paulo Freire entendia o Direito como prática para libertação, ou seja, é o sistema pelo qual o pedagogo enxergava a mudança paradigmática incorporadora de ideais dialógicos e libertadores, libertando os indivíduos da condição de grupos vulneráveis.
Os grupos vulneráveis compreendem segmentos da sociedade que historicamente sofreram algum processo de segregação ou de marginalização social. Apesar de serem comumente nomeados “minorias”, esses segmentos excluídos estão longe de abranger um número reduzido de pessoas. Os indivíduos considerados vulneráveis não são desprovidos de autonomia, na realidade, o que lhes falta é o poder, e esta ausência de poder está relacionada a uma série de características, como cor da pele, idade, fatores ligados à sexualidade ou ao gênero. Essa parcela da sociedade, que possui algum grau de vulneração, inaptos de proteger seus próprios direitos e interesses, demandam atuação estatal para tutelar seus direitos.
A rigor, os grupos excluídos estão inseridos na sociedade, o que falta é reestabelecer formalmente direitos que lhes garantam um mínimo social para sua existência e que o Estado promova sua tutela para que sua dignidade seja estabelecida. Incluir socialmente é perceber que todos têm diferenças e, por meio da valorização delas é que se forma uma sociedade inclusiva e solidária. Somente quando forem garantidos os direitos essenciais à totalidade dos indivíduos da sociedade haverá condições de se atingir a real inclusão social.
O texto traz à tona a relação das concepções de educação de Paulo Freire e uma práxis libertadora, o que se associa diretamente com a proposta de O Direito Achado na Rua (DANR), observado através da inferência de pensamentos de Roberto Lyra Filho ao longo da obra. Nita Freire pronuncia-se primeiramente sobre as bases que formaram e que constituem o Direito Brasileiro moderno e sobre como este foi, por muito tempo, uma prática elitizada, excludente e restrita a grupos de “doutos da elite social e econômica” (FREIRE, 2014). Vê, porém, à época da conferência, uma mudança paradigmática na sociedade, isto é, um acesso à Justiça daqueles que outrora encontravam-se em condição de “objetos desencarnados e sem voz, nascidos para a submissão e a serventia” (FREIRE, 2014). A mudança consiste na reinterpretação da forma dialética do Direito, o Direito Social. O grande giro axiológico e prático pelo qual passa o Direito consiste na alteração de seu objeto de estudo, que passa da norma (da lei escrita) para o conflito social das ruas. Um desafio, no contexto brasileiro, segundo Nita Freire, dados os traços reacionários e conservadores da sociedade.
É de forma prática que este Direito Social vem a afirmar-se, contudo “que ainda não majoritariamente está sendo aceita e abraçada por juristas importantes [...] Não na medida do necessário, mas em crescimento, pleno caminho para este destino”. (FREIRE, 2014) O processo de exercício deste novo Direito é muitas vezes freado, por exemplo, na mera rotulação como Ativismo Judicial de decisões judiciais progressistas. Um dos maiores críticos a esta mudança de paradigma é o Jurista Lenio Streck.
A partir do ponto de inflexão apresentado por Nita Freire, em que a palestrante afirma seu posicionamento, assim como o de Paulo Freire acerca do Direito libertador, passa-se a citar a dissertação de Pedro Rezende Santos Feitoza, apresentada em 2014 na Universidade de Brasília, de tema: O direito como modelo avançado de legítima organização social da liberdade: a teoria dialética de Roberto Lyra Filho. O elo de conexão entre Lyra Filho e Freire é justamente este novo paradigma que se estabeleceu: o do Direito dialético, o qual “recuperaria a concepção do jurídico enquanto esfera da liberdade em coexistência” (FEITOZA, 2014 apud FREIRE, 2014), concepção esta que fora perdida pela tradição jurídica brasileira, até então.
Para Lyra Filho (apud FEITOZA, 2014), o Direito e a Justiça sempre foram inseparáveis, no entanto, o que recorrentemente separa-se do Direito é a Lei, quanto ela é proclamada por filósofos e juristas, e não pelo povo, real construtor do processo histórico progressista que nunca deve separar-se da Justiça. Direito não surge de algo que extrapola o mundo material, como na Lei, mas sim do que há de mais material na sociedade: do conflito social.
É da percepção de Paulo Freire sobre os Direitos Humanos que Nita constrói a associação entre o pensamento de Paulo com o Direito social e dialógico de Roberto Lyra Filho. Tal pensamento “nega veemente a concepção tradicional do direito da Modernidade” (FREIRE, 2014) e representa a introdução de um novo paradigma do Direito alinhado com o novo paradigma das novas Esquerdas, do Brasil e do mundo, pós-Guerra Fria. Nita retifica que, apesar de Lyra Filho não citar o pensamento Freiriano nas suas obras, são nítidas a introspecção e a materialização de traços do pedagogo nas obras do jurista. Isso deve-se ao fato, segundo Nita Freire (2014): de que seu marido sempre lutou por “justiça, autonomia e libertação, pela vivência da experiência democrática para todos/as brasileiros” é luta de Paulo e de Lyra Filho pelos Direitos Humanos no Brasil.
Os traços epistemológicos marcantes de Paulo Freire são apresentados por sua mulher. Entre eles, destaca-se sua compreensão de uma criticidade na educação imprescindível para formação de cidadãos plenos em sua dignidade e direitos. Um embuste, contra o que diz tudo que Paulo tanto defendeu em vida, é o projeto de lei “Escola sem Partido” (PL 867/2015), que falaciosamente pretende “neutralizar” a dialética escolar, mas que na verdade acaba por excluir os estudantes de debates, suprimir minorias sociais, gerar discriminações e uma consequente despolitização da práxis escolar em detrimento da manutenção do status quo de uma classe política elitizada e conservadora.
Além disso, Nita há muito vem afirmando que a teoria de Paulo vem consagra-se como a “pedagogia do oprimido” (FREIRE, 2014), mesmo antes dele escrever um livro com este título, uma vez que sua preocupação fundamental foi buscar mecanismos da inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades “ao possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se” (FREIRE, 2014), dando a esses indivíduos a possibilidade de serem sujeitos também da sua própria história e não apenas objetos da exploração, de servidão a serviço das classes opressoras. Portanto, essa busca de dignificar os oprimidos e as oprimidas é a luta pelos direitos humanos mais autênticos para os vulneráveis, os esfarrapados. Enfim, conclui-se que a postura ético-político-epistemológica de Paulo, não resta dúvida, é a de quem luta pelos Direitos de toda ordem para todos e todas as pessoas.
Para explicitar a “pedagogia de todos e de todas”, de Paulo Freire, Nita apresenta na sequência de sua fala um rol de aforismos, trechos de algumas das obras de Paulo que se constituem como a axiologia por traz de seu pensamento. Ao tratar sobre a solidariedade, diz que somente quando o opressor passa a tratar o oprimido como um ser humano, um cidadão e não mais um objeto é que se tem a solidariedade verdadeira. Pois, se a solidariedade somente acontece entre opressor e oprimido, ou seja, requer posições sociais diferentes para acontecer, o opressor deve elevar o oprimido ao seu patamar para então se solidarizar.
Sobre a conscientização dos oprimidos, o educador afirma que não é a doação do sentimento revolucionário aos oprimidos que faz com que estes libertem-se dos grilhões amarrados a si, mas que esta luta revolucionária é um processo, uma caminhada fruto da autoconscientização da própria classe oprimida. Para Paulo Freire, sua prática pedagógica está condicionada pelas virtudes do educador, nesse sentido, não é possível uma pedagogia progressista e democrática, que não seja também uma pedagogia social, além da ciência e da técnica.
Sua pedagogia é também uma pedagogia metafísica, assim entendida quando Paulo escreve sobre os sonhos, as utopias e as esperanças que transbordam à noção de atos políticos necessários e passam a representar a construção histórico-social da própria natureza humana. “Não há mudança sem sonho como não há sonho sem esperança” (FREIRE, 1992). E quando as forças opressoras voltam a oprimir os oprimidos, afastando-os da práxis político-jurídica é o tempo em que não se fala mais em sonhos, utopias e esperanças. São nítidos a extração da ideia de Paulo e o posicionamento dela nos dias atuais, em que um curto período historiográfico de progresso foi novamente substituído pelas forças machistas, reacionárias e conservadoras que sempre governaram o país. Portanto, é um tempo novo em que não se fala em sonho, em utopia e que O Direito Achado na Rua deve submeter-se à norma dos governantes, que deixam de lado os aspectos sociais e a repercussão na classe oprimida em favor de suas ações. Tratar de Direitos Humanos não é somente abarcá-los dentro do ordenamento doméstico. É, acima de tudo, dignificar as gentes, os povos que constituem-se tanto no exterior quanto no interior de um ordenamento e que muitas vezes não são abraçados por ele.
Tratar de Direitos Humanos no Brasil é inevitavelmente tratar do Direito Achado na Rua. A conscientização em Paulo Freire atingiu grande parte da população nacional no final do século XX, em especial quando os movimentos nacionais passaram de coadjuvantes a protagonistas no cenário da práxis política. O novo sujeito coletivo de direitos passa a ter local de fala no país, o que em grande parte contribuiu para uma década de progresso no início do séc. XXI.
Após citar trechos das importantes obras do falecido Paulo Freire a fim de corroborar com a sua análise e demonstrar a preocupação do renomado educador com os oprimidos e as oprimidas, Nita conclui que é inquestionável a constatação de que a obra e a práxis de Paulo influenciaram sobremaneira “o processo de conscientização política de grande parte da população nacional, sobretudo a pertencente às camadas populares e da construção e participação na democracia, que temos hoje, na sociedade brasileira.” (FREIRE, 2014). É notório o esforço, engajamento e perseverança do educador Paulo Freire em trazer luz às comunidades carentes, não apenas no Brasil, uma vez que também teve participação significativa na educação de Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, além de influenciar as experiências de Angola e Moçambique.
A fala de Nita adentra na obra de seu marido para dar sentido à luta de ambos por uma libertação jurídico-social de todos e todas. O ponto central e ao mesmo tempo final de seu texto é o de que a pedagogia de Paulo Freire e sobretudo sua prática é “um Tratado do Direito Social Dialético” (FREIRE, 2014) que se verifica no Direito Achado Na Rua, como prática jurídica que nasce do concreto, do conflito social, e não da abstração jurídica, para dar voz àqueles que não a tem, como os Freires fizeram e ainda fazem por todos e todas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FREIRE, Ana Maria Araújo. “Acesso à Justiça e a pedagogia dos vulneráveis”; ou “O pensamento de Paulo Freire e sua relação com o Direito como prática para a libertação”. Cuadernos de la Escuela del Servicio de Justicia N° 2, Editorial: Ministerio de Justicia y Derechos Humanos de la Nación, año I, abril de 2015.

STRECK, Lenio Luiz. O caso da ADPF 132: Defender o texto da Constituição é uma atitude positivista (ou “originalista”)? Revista de Direito da Universidade de Brasília. V. 01, N. 01. Janeiro-junho de 2014.

VITOVSKY, Vladmir Santos. O Acesso à Justiça em Boaventura de Sousa Santos. Disponível em: <http://faa.edu.br/revistas/docs/RID/2016/FDV_2016_11.pdf>. Acesso em: 19 de abr. de 2017.

BRASIL. Projeto de Lei 867, de 2015. Inclui, entre as diretrizes e bases da educação nacional, o "Programa Escola sem Partido". Disponível em: <www.camara.gov.br/sileg/integras/1317168.pdf>. Acesso em: 19 de abr. de 2017.

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