Resenha: FREIRE, Ana Maria Araújo (Nita Freire). Acesso à Justiça e a
Pedagogia dos Vulneráveis. O pensamento de Paulo Freire e sua relação com o
Direito como prática para a libertação. In: Introdução
crítica ao direito à comunicação e à informação.
Série O Direito Achado na Rua, vol.
8. SOUSA JUNIOR, José Geraldo et al. (Org.). Brasília: FACUnB, 2016. p.
69-77.
Autoras e autores: Pietra
Mendonça Ribeiro de Magalhães Cordeiro, Victor Frank Corso Semple, Pedro
Mineiro Soares, Thaísa de Souza Galvão, Sérgio Garcia Viriato, Vitor Gonçalves
Damasio, Bianca França dos Reis, Karen de Souza Paiva, Augusto Oliveira
Mendonça de Carvalho, Rogério Bontempo, Cândido Gontijo, Larissa Pontes Dias
Matos, Mateus Gaudêncio Marques, Camila Gomes Martins Sobrinho
O
texto em análise trata-se de uma fala proferida em 2014, em uma conferência da
Escola de Magistratura de Buenos Aires por Nita Freire (Ana Maria Araújo
Freire), mestra e doutora em Educação. Como seu marido, Paulo Freire, Nita vai
muito além da educação para explorar as pedagogias que regem as diversas formas
de comportamento humano. No texto em questão, trata da pedagogia dos
vulneráveis e do acesso à Justiça destes. Acesso à Justiça, para Boaventura de
Sousa Santos significa uma maneira de pensar que não somente signifique um
programa de reformas, mas mudanças de concepção que incorporem à Justiça e ao
Direito o espectro democrático participativo (VITOVSKY, 2016). Tal tema a que
se refere Nita Freire é o modo como Paulo Freire entendia o Direito como
prática para libertação, ou seja, é o sistema pelo qual o pedagogo enxergava a
mudança paradigmática incorporadora de ideais dialógicos e libertadores,
libertando os indivíduos da condição de grupos vulneráveis.
Os
grupos vulneráveis compreendem segmentos da sociedade que historicamente
sofreram algum processo de segregação ou de marginalização social. Apesar de
serem comumente nomeados “minorias”, esses segmentos excluídos estão longe de
abranger um número reduzido de pessoas. Os indivíduos considerados vulneráveis
não são desprovidos de autonomia, na realidade, o que lhes falta é o poder, e
esta ausência de poder está relacionada a uma série de características, como
cor da pele, idade, fatores ligados à sexualidade ou ao gênero. Essa parcela da
sociedade, que possui algum grau de vulneração, inaptos de proteger seus
próprios direitos e interesses, demandam atuação estatal para tutelar seus
direitos.
A
rigor, os grupos excluídos estão inseridos na sociedade, o que falta é
reestabelecer formalmente direitos que lhes garantam um mínimo social para sua
existência e que o Estado promova sua tutela para que sua dignidade seja
estabelecida. Incluir socialmente é perceber que todos têm diferenças e, por
meio da valorização delas é que se forma uma sociedade inclusiva e solidária.
Somente quando forem garantidos os direitos essenciais à totalidade dos
indivíduos da sociedade haverá condições de se atingir a real inclusão social.
O
texto traz à tona a relação das concepções de educação de Paulo Freire e uma
práxis libertadora, o que se associa diretamente com a proposta de O Direito
Achado na Rua (DANR), observado através da inferência de pensamentos de Roberto
Lyra Filho ao longo da obra. Nita Freire pronuncia-se primeiramente sobre as
bases que formaram e que constituem o Direito Brasileiro moderno e sobre como
este foi, por muito tempo, uma prática elitizada, excludente e restrita a
grupos de “doutos da elite social e econômica” (FREIRE, 2014). Vê, porém, à
época da conferência, uma mudança paradigmática na sociedade, isto é, um acesso
à Justiça daqueles que outrora encontravam-se em condição de “objetos
desencarnados e sem voz, nascidos para a submissão e a serventia” (FREIRE,
2014). A mudança consiste na reinterpretação da forma dialética do Direito, o
Direito Social. O grande giro axiológico e prático pelo qual passa o Direito
consiste na alteração de seu objeto de estudo, que passa da norma (da lei
escrita) para o conflito social das ruas. Um desafio, no contexto brasileiro,
segundo Nita Freire, dados os traços reacionários e conservadores da sociedade.
É
de forma prática que este Direito Social vem a afirmar-se, contudo “que ainda
não majoritariamente está sendo aceita e abraçada por juristas importantes
[...] Não na medida do necessário, mas em crescimento, pleno caminho para este
destino”. (FREIRE, 2014) O processo de exercício deste novo Direito é muitas
vezes freado, por exemplo, na mera rotulação como Ativismo Judicial de decisões
judiciais progressistas. Um dos maiores críticos a esta mudança de paradigma é
o Jurista Lenio Streck.
A
partir do ponto de inflexão apresentado por Nita Freire, em que a palestrante
afirma seu posicionamento, assim como o de Paulo Freire acerca do Direito libertador,
passa-se a citar a dissertação de Pedro Rezende Santos Feitoza, apresentada em
2014 na Universidade de Brasília, de tema: O direito como modelo avançado de
legítima organização social da liberdade: a teoria dialética de Roberto Lyra
Filho. O elo de conexão entre Lyra Filho e Freire é justamente este novo
paradigma que se estabeleceu: o do Direito dialético, o qual “recuperaria a
concepção do jurídico enquanto esfera da liberdade em coexistência” (FEITOZA,
2014 apud FREIRE, 2014), concepção esta que fora perdida pela tradição jurídica
brasileira, até então.
Para
Lyra Filho (apud FEITOZA, 2014), o Direito e a Justiça sempre foram
inseparáveis, no entanto, o que recorrentemente separa-se do Direito é a Lei,
quanto ela é proclamada por filósofos e juristas, e não pelo povo, real
construtor do processo histórico progressista que nunca deve separar-se da
Justiça. Direito não surge de algo que extrapola o mundo material, como na Lei,
mas sim do que há de mais material na sociedade: do conflito social.
É
da percepção de Paulo Freire sobre os Direitos Humanos que Nita constrói a
associação entre o pensamento de Paulo com o Direito social e dialógico de
Roberto Lyra Filho. Tal pensamento “nega veemente a concepção tradicional do
direito da Modernidade” (FREIRE, 2014) e representa a introdução de um novo
paradigma do Direito alinhado com o novo paradigma das novas Esquerdas, do
Brasil e do mundo, pós-Guerra Fria. Nita retifica que, apesar de Lyra Filho não
citar o pensamento Freiriano nas suas obras, são nítidas a introspecção e a
materialização de traços do pedagogo nas obras do jurista. Isso deve-se ao
fato, segundo Nita Freire (2014): de que seu marido sempre lutou por “justiça,
autonomia e libertação, pela vivência da experiência democrática para todos/as
brasileiros” é luta de Paulo e de Lyra Filho pelos Direitos Humanos no Brasil.
Os
traços epistemológicos marcantes de Paulo Freire são apresentados por sua
mulher. Entre eles, destaca-se sua compreensão de uma criticidade na educação
imprescindível para formação de cidadãos plenos em sua dignidade e direitos. Um
embuste, contra o que diz tudo que Paulo tanto defendeu em vida, é o projeto de
lei “Escola sem Partido” (PL 867/2015), que falaciosamente pretende
“neutralizar” a dialética escolar, mas que na verdade acaba por excluir os
estudantes de debates, suprimir minorias sociais, gerar discriminações e uma
consequente despolitização da práxis escolar em detrimento da manutenção do
status quo de uma classe política elitizada e conservadora.
Além
disso, Nita há muito vem afirmando que a teoria de Paulo vem consagra-se como a
“pedagogia do oprimido” (FREIRE, 2014), mesmo antes dele escrever um livro com
este título, uma vez que sua preocupação fundamental foi buscar mecanismos da
inserção crítica dos homens e das mulheres nas suas sociedades “ao
possibilitar-lhes terem voz, dizerem a sua palavra, biografarem-se” (FREIRE,
2014), dando a esses indivíduos a possibilidade de serem sujeitos também da sua
própria história e não apenas objetos da exploração, de servidão a serviço das
classes opressoras. Portanto, essa busca de dignificar os oprimidos e as
oprimidas é a luta pelos direitos humanos mais autênticos para os vulneráveis,
os esfarrapados. Enfim, conclui-se que a postura ético-político-epistemológica
de Paulo, não resta dúvida, é a de quem luta pelos Direitos de toda ordem para
todos e todas as pessoas.
Para
explicitar a “pedagogia de todos e de todas”, de Paulo Freire, Nita apresenta
na sequência de sua fala um rol de aforismos, trechos de algumas das obras de Paulo
que se constituem como a axiologia por traz de seu pensamento. Ao tratar sobre
a solidariedade, diz que somente quando o opressor passa a tratar o oprimido
como um ser humano, um cidadão e não mais um objeto é que se tem a
solidariedade verdadeira. Pois, se a solidariedade somente acontece entre
opressor e oprimido, ou seja, requer posições sociais diferentes para
acontecer, o opressor deve elevar o oprimido ao seu patamar para então se
solidarizar.
Sobre
a conscientização dos oprimidos, o educador afirma que não é a doação do
sentimento revolucionário aos oprimidos que faz com que estes libertem-se dos
grilhões amarrados a si, mas que esta luta revolucionária é um processo, uma
caminhada fruto da autoconscientização da própria classe oprimida. Para Paulo
Freire, sua prática pedagógica está condicionada pelas virtudes do educador,
nesse sentido, não é possível uma pedagogia progressista e democrática, que não
seja também uma pedagogia social, além da ciência e da técnica.
Sua
pedagogia é também uma pedagogia metafísica, assim entendida quando Paulo
escreve sobre os sonhos, as utopias e as esperanças que transbordam à noção de
atos políticos necessários e passam a representar a construção histórico-social
da própria natureza humana. “Não há mudança sem sonho como não há sonho sem
esperança” (FREIRE, 1992). E quando as forças opressoras voltam a oprimir os
oprimidos, afastando-os da práxis político-jurídica é o tempo em que não se
fala mais em sonhos, utopias e esperanças. São nítidos a extração da ideia de Paulo
e o posicionamento dela nos dias atuais, em que um curto período
historiográfico de progresso foi novamente substituído pelas forças machistas,
reacionárias e conservadoras que sempre governaram o país. Portanto, é um tempo
novo em que não se fala em sonho, em utopia e que O Direito Achado na Rua deve
submeter-se à norma dos governantes, que deixam de lado os aspectos sociais e a
repercussão na classe oprimida em favor de suas ações. Tratar de Direitos
Humanos não é somente abarcá-los dentro do ordenamento doméstico. É, acima de
tudo, dignificar as gentes, os povos que constituem-se tanto no exterior quanto
no interior de um ordenamento e que muitas vezes não são abraçados por ele.
Tratar
de Direitos Humanos no Brasil é inevitavelmente tratar do Direito Achado na
Rua. A conscientização em Paulo Freire atingiu grande parte da população
nacional no final do século XX, em especial quando os movimentos nacionais
passaram de coadjuvantes a protagonistas no cenário da práxis política. O novo
sujeito coletivo de direitos passa a ter local de fala no país, o que em grande
parte contribuiu para uma década de progresso no início do séc. XXI.
Após
citar trechos das importantes obras do falecido Paulo Freire a fim de
corroborar com a sua análise e demonstrar a preocupação do renomado educador
com os oprimidos e as oprimidas, Nita conclui que é inquestionável a
constatação de que a obra e a práxis de Paulo influenciaram sobremaneira “o
processo de conscientização política de grande parte da população nacional,
sobretudo a pertencente às camadas populares e da construção e participação na
democracia, que temos hoje, na sociedade brasileira.” (FREIRE, 2014). É notório
o esforço, engajamento e perseverança do educador Paulo Freire em trazer luz às
comunidades carentes, não apenas no Brasil, uma vez que também teve
participação significativa na educação de Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e
Príncipe, além de influenciar as experiências de Angola e Moçambique.
A
fala de Nita adentra na obra de seu marido para dar sentido à luta de ambos por
uma libertação jurídico-social de todos e todas. O ponto central e ao mesmo
tempo final de seu texto é o de que a pedagogia de Paulo Freire e sobretudo sua
prática é “um Tratado do Direito Social Dialético” (FREIRE, 2014) que se verifica
no Direito Achado Na Rua, como prática jurídica que nasce do concreto, do
conflito social, e não da abstração jurídica, para dar voz àqueles que não a
tem, como os Freires fizeram e ainda fazem por todos e todas.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
FREIRE, Ana Maria Araújo.
“Acesso à Justiça e a pedagogia dos vulneráveis”; ou “O pensamento de Paulo
Freire e sua relação com o Direito como prática para a libertação”. Cuadernos
de la Escuela del Servicio de Justicia N° 2, Editorial: Ministerio de Justicia
y Derechos Humanos de la Nación, año I, abril de 2015.
STRECK, Lenio Luiz. O
caso da ADPF 132: Defender o texto da Constituição é uma atitude positivista
(ou “originalista”)? Revista de Direito da Universidade de Brasília. V. 01, N.
01. Janeiro-junho de 2014.
VITOVSKY, Vladmir Santos.
O Acesso à Justiça em Boaventura de Sousa Santos. Disponível em: <http://faa.edu.br/revistas/docs/RID/2016/FDV_2016_11.pdf>. Acesso em: 19 de abr. de 2017.
BRASIL. Projeto de Lei
867, de 2015. Inclui, entre as diretrizes e bases da educação nacional, o
"Programa Escola sem Partido". Disponível em: <www.camara.gov.br/sileg/integras/1317168.pdf>.
Acesso em: 19 de abr. de 2017.
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