terça-feira, 31 de janeiro de 2017

CARTA DE HAVANA: resignificando conceitos, desconstruindo falsos mitos

Gladstone Leonel Júnior
Doutor em Direito pela UnB. Membro do grupo de pesquisa Direito Achado na Rua.



Ao criticar à Revolução Cubana, o peruano Mário Vargas Llosa escreveu "O mundo dos Magos" demarcando suas desilusões. Uma pena Eduardo Galeano não estar mais entre nós para contestá-lo com um "Mundo dos Falsos Mitos", livro necessário (apesar de inexistir), para desmascarar os falsos propagandistas da contra-informação e demarcar sua perene esperança no mundo a partir do povo cubano. 

Sendo assim, nos cabe refletir alguns termos para tentar melhor captar o modo de ser/ver cubano no mundo.





A LIBERDADE.

O senhor Ramón, trabalhador de um hostel, integrante de uma numerosa família pobre no período pré-revolucionário, conviveu com toda mudança política posterior. Há alguns anos um dos seus irmãos vive nos Estados Unidos e volta à Havana com frequência. O Senhor Cândido, taxista de Havana, já teve oportunidade de ir duas vezes e irá esse ano novamente para visitar uma irmã, também nos Estados Unidos. Porém, ao trabalharem a noção de Liberdade, nenhum deles traz à tona o ato de viajar, mas sim o de poder andar em seu próprio país sem baixar a cabeça para nenhum "gringo", se sentem como "reis", apesar de manterem o respeito, a noção de humanidade e o acolhimento para com qualquer pessoa.



A forma descolonizada de captar a liberdade não vem de hoje, despertou-se, em parte, com o visio(revolucio)nário José Martí, como apresentado em seu memorial. Em uma gigantesca estátua, ele observa a Praça da Revolução e o desenho dos não menos virtuosos Ernesto "Che" Guevara e Camilo Cienfuegos, os quais contribuem para a resignificação do termo liberdade.



Andar pelo Malecón observando o mar, tomar um mojito nos jardins do Hotel Nacional ou na boêmia La Bodeguita del Medio, sentir o sincretismo religioso da Santería no centro de Havana, comprar um livro na feira da Praça das Armas, fumar charuto em Havana Velha, ou ouvir um Buena Vista Social Club são as várias formas de disfrutar essa liberdade que só a soberania de um país verdadeiramente livre e independente, segundo os próprios cubanos, pode fornecer.







A MISÉRIA.

Certa vez, lembra sempre Pedrinho Brandão, o escritor cubano Leonardo Padura, ao responder uma jornalista da "Revista" Veja sobre a miséria em seu país, disse que viu mais miséria em uma esquina de São Paulo do que toda a sua vida em Cuba.

As necessidades materiais das pessoas e do Estado, que são reais em uma ilha com poucos recursos, baixa diversidade econômica e vitimada por um embargo econômico criminoso ao longo de décadas pelo simples fato de querer andar com as próprias pernas ao invés de viver de joelhos, não se confunde com a miséria. Algo que definitivamente não está no horizonte de um Estado que garante moradia digna, educação plena, sistema de saúde universal, práticas esportivas de alto nível, estímulo as manifestações culturais populares e assistência social ampla para seu povo. Isso é real.

A DEMOCRACIA.

De fato, não é fácil do brasileiro "médio" entender o sistema político em Cuba. Afinal de contas como seria possível assimilar que qualquer cidadão tem plena igualdade de condições para concorrer a um mandato na Assembleia Nacional, seja ele padeiro ou uma médica, enquanto na democracia golpeada brasileira, não se elege um deputado com menos de alguns milhões de reais "investidos"?

Certamente essa carta não teria a pretensão de esgotar esse tema, embora não se pode negar que ele vem a reboque com outro conceito: o de dignidade.


Não resta dúvida que aquele que melhor representa essa palavra, segundo as vozes que ecoam nas ruas de Havana, é Fidel Castro. Aquele que deu um nó na história e tornou-se a grande referência, sem deixar que sua personalidade fosse cultuada em estátuas, como nome de ruas e imagens. Uma "bala de prata" no coração dos falsos propagandistas das ditas "ditaduras personalistas".

Fidel não precisava de homenagens, pois sabia que seu exemplo está entranhado em todo cidadão cubano e nas ruas de Havana.

Por isso, Cuba, mesmo reatando relações diplomáticas com os Estados Unidos, deixa escrita uma mensagem, repetida pelo povo, em um mural em frente à embaixada norte-americana: "Pátria ou Morte. Venceremos". Esse caminho não tem volta, o destino de Cuba é um só: avançar.



La Habana, Janeiro de 2017.


Gladstone Leonel Júnior
Doutor em Direito pela UnB. Membro do grupo de pesquisa Direito Achado na Rua.

Um comentário:

  1. “Enquanto releio este manuscrito, pergunto-me o que leva o ser humano, ou melhor dizendo, o que leva tantos seres humanos a condenar uma ditadura de direita e a celebrar ao mesmo tempo uma ditadura de esquerda. Que retorcido mecanismo mental os conduz a denunciar o abuso, a tortura, a marginalização, o escárnio, o exílio, a repressão e o assassinato daqueles que pensam de modo diferente sob uma ditadura de direita, mas os faz justificar essas mesmas medidas contra aqueles que se opõem a uma ditadura de esquerda? O que leva uma pessoa a condenar um general que dirige durante dezessete anos um país andino com mão de ferro e a elogiar em contrapartida um comandante que há cinquenta anos comanda de igual modo uma ilha? Será que isso se deve à ignorância, à hipocrisia ou ao oportunismo, ou a uma lealdade mal-entendida em relação a bandeiras ideológicas, à postergação da realidade diante da utopia e do indivíduo em relação à massa, ou simplesmente à exacerbação extrema da falta de humanidade de nossos dias?” (AMPUERO, Roberto: Nossos anos verde-oliva, São Paulo, Benvirá-2012, p. 481/482).

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