08 de jan 2017
Isamara Filier já havia buscado por cinco vezes a Delegacia Especializada de Atendimento às Mulheres (Deam) para realizar denúncia contra o seu ex-marido, Sidnei Ramis de Araujo, antes de ser vítima da chacina promovida por ele na cidade de Campinas (SP) durante festa de réveillon, marcando o início de 2017 com um grande ato de feminicídio. Além dela, outras mulheres foram assassinadas pelos seus companheiros ou ex-companheiros nas celebrações de ano novo, como Renata Rodrigues Aureliano, em Campestre (MG).
A primeira vez que atendi uma mulher vítima de violência doméstica eu estava no primeiro ano da graduação em Direito, em 2003, atuando em um projeto de extensão no Capão Redondo, na cidade de São Paulo (SP). Com o olho roxo, ela nos relatou que estava em processo de separação do marido em razão da violência que sempre sofreu, mas que o juiz havia decidido pelo retorno do ex-marido para a sua casa, atendendo a uma alegação dele de que ela sofreria de distúrbios psíquicos e necessitaria de seus “cuidados”. Para isso, ele usou como prova o fato de ela tomar medicação para depressão. No mesmo período, atendemos uma funcionária de uma escola local que havia passado a madrugada com os filhos na rua porque a Deam se encontrava fechada e ela não conseguiu ser atendida na delegacia comum.
Todas essas histórias ocorreram antes da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340) ser promulgada em 2006. O que preocupa é que após mais de dez anos essas histórias ainda se repetem. As Deams em São Paulo continuam funcionando apenas em horário comercial e não nas madrugadas, quando a violência de fato ocorre. As questões de “direito civil”, como divórcio, guarda, divisão de bens do casal, continuam a serem tratadas de forma dissociada da violência doméstica. O enunciado três do Fonavid, uma organização de magistrados(as) das Varas Especializadas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, prevê que mesmo nos casos nos quais a violência doméstica se faz presente na dinâmica conjugal e familiar, essas ações devem ser processadas e julgadas pelas Varas Cíveis e de Família comuns, e não nas Varas Especializadas, formalizando essa ruptura do tratamento da violência em relação às questões cíveis na atuação judicial.
Na carta deixada pelo autor da chacina que vitimou Isamara, fica explícito que a disputa da guarda do filho comum do casal era utilizada como mote para o cometimento de agressões contra ela. Isamara havia denunciado abusos também cometidos contra o menino de apenas oito anos que acabou sendo uma das vítimas de assassinato pelo próprio pai. É comum nos casos de separação nos quais há presença de violência doméstica que a guarda de filhos(as) se torne o grande instrumento de tentativa de manutenção do controle da mulher por parte do homem.
Não são poucos os casos nos quais homens passam a se colocar como vítima de “alienação parental”, ou seja, como alguém que quer exercer a paternidade, mas que é impedido por uma ação de “vingança” da mulher que era violentada por ele. A leitura comumente é essa: a mulher é a louca e o pai é a vítima, mesmo que este não cumpra nem ao menos com a obrigação de pagamento de pensão alimentar e muito menos tenha prestado a adequada e necessária afetividade aos(às) filhos(as) quando no convívio com eles(as). Essa é a visão que o autor da chacina tem sobre si próprio e deixa explícita na sua carta.
A QUESTÃO QUE SE COLOCA É QUE O SISTEMA JURÍDICO FOI PENSADO HISTORICAMENTE APENAS PARA PROTEÇÃO DE INTERESSES DOS HOMENS
Em alguns casos, a denúncia da mulher em relação à violência praticada contra filhos(as) se volta contra ela. Há inclusive um projeto de lei n. 4488/2016, na Câmara dos Deputados, que vem incluir como crime na lei n. 12.318/2010, que trata da prática de alienação parental, o seguinte parágrafo: “§ 2.º O crime é agravado em 1/3 da pena: I – se praticado por motivo torpe, por manejo irregular da Lei 11.340/2006, por falsa denúncia de qualquer ordem, inclusive de abuso sexual aos filhos”. Assim, esse projeto de lei vem reforçar o uso da alienação parental e da denunciação caluniosa como forma de desqualificação da fala das mulheres, colocando inclusive em risco a integridade física das crianças ao tirar das mulheres a segurança para praticar denúncias.
Isso não quer dizer que a paternidade não seja relevante, ao contrário, ela é essencial. E deve ser realizada de modo afetivo, responsável e associado ao respeito às mulheres que compõem a vida da criança. Da forma como vem sendo tratada a questão, a tese jurídica de que nas ações de guarda o que deve se priorizar é o melhor interesse da criança cai por terra quando é substituída pelo melhor interesse do “pátrio poder”, como forma de sua manutenção prática. O “pátrio poder” centralizava o poder nas famílias nas mãos dos homens e foi retirado formalmente do Código Civil em 2002 quando passou a ser denominado de “poder familiar” por se aceitar teoricamente que esse possa ser compartilhado com as mulheres.
A questão que se coloca é que o sistema jurídico foi pensado historicamente apenas para proteção de interesses dos homens, brancos e proprietários que redigiram as teses contratualistas que deram origem aos Estados-Nação modernos como o nosso. Inclusive foi por meio desse sistema que se criou a divisão dicotômica na sociedade entre espaço público, esse ordenado pelo Estado no qual poderia atuar por meio de sua força policial, e o espaço privado no qual o Estado não interferiria e o que regeria seria o poder do patriarca, como indivíduo capaz de regular as suas próprias relações, apenas adstrito aos limites do direito civil. Isso significa que nas causas de violência doméstica tem sido negada a discussão acerca exatamente da regulação das forças de poder presentes no espaço privado no qual a violência é exercida, aplicando apenas um Código Penal criado para uma lógica na qual esse tipo de violência não se encaixa.
As teorias jurídicas construídas a favor das mulheres, buscando apenas incluí-las nos mesmos instrumentos normativos e institucionais já existentes têm se demonstrado disfuncionais. Isso se torna ainda mais dramático quando tratamos da realidade das mulheres fora do marco branco e urbano. O Mapa da Violência de 2015 apresentou que, enquanto os homicídios de mulheres brancas no Brasil reduziram em 9,8% no período de 2003 a 2013, os homicídios de mulheres negras, ao contrário, aumentaram em 54,2%. Outros problemas de impacto comunitário e cultural se verificam quanto ao uso desses instrumentos estatais para a população rural e indígena em virtude dessa forma de intervenção meramente policialesca.
Carole Pateman em seu livro “O contrato sexual” explica que o patriarcado é algo estrutural ao Estado moderno e que as mulheres nunca conseguirão se encaixar no conceito de “indivíduos”, pois “seus corpos nunca são esquecidos”. Vivemos num Estado em que apenas 9,9% das mulheres ocupam o Congresso Nacional e no qual uma presidenta é retirada do poder sob discursos machistas, o que demonstra que esses espaços de poder estão longe de ser algo pertencente também às mulheres. A desconstrução dessa estrutura patriarcal e, consequentemente, o enfrentamento à violência contra as mulheres não é possível sem ter nas próprias mulheres, em toda a sua pluralidade, as protagonistas dessa luta, o que só pode ser alcançado nessa conjuntura a partir de uma pressão que venha de fora das instituições formais.
A experiência das “Promotoras Legais Populares”, iniciada em 1994 pelas ONGs Themis do Rio Grande do Sul e a União de Mulheres de São Paulo e espalhada pelo Brasil inteiro, tem como intuito criar um espaço de diálogo e articulação política entre as mulheres, dos mais diversos perfis e realidades, de forma a construir pautas conjuntas e, ao mesmo tempo, diversas, para atender a todas as realidades vivenciadas pelas mulheres, principalmente por aquelas mais distanciadas dos lugares de poder. Dessa maneira, o direito das mulheres deixa de ser um imperativo estatal masculinizado e branqueado para ser expressão das inspirações das mulheres por libertação das opressões que vivenciam. Como cantava Etta James, esse é um mundo de homens, mas que nunca foi e nunca será nada sem as mulheres ou as meninas.
Lívia Gimenes Dias da Fonseca, advogada e doutora em Direito pela Universidade de Brasília, integrante da coordenação do projeto Promotoras Legais Populares do Distrito Federal e Entorno e do grupo de pesquisa “O Direito Achado na rua” da Universidade de Brasília.
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