quinta-feira, 12 de março de 2015

Boaventura: “a esquerda pode retomar as ruas”

POR 
BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS  

150311_manifestação Podemos
Manifestação em Madri, articulada pelo Podemos em 31 de Janeiro, logo após vitória eleitoral do Syriza, na Grécia. Milhares gritam “tic tac tic tac”, sugerindo fim de linha para elite política
Partidos tradicionais desprezaram mobilização social. Mas ela é resgatada por grupos que já não se baseiam em militância, vanguardas ou grandes líderes
Por Boaventura de Sousa Santos | Tradução: Inês Castilho
Há 40 anos Boaventura de Sousa Santos participou das lutas que construíram as então nascentes democracias ibéricas. Agora, este sociólogo português (Coimbra, 1940), doutorado por Yale (EUA) e professor de Coimbra e Wisconsin (EUA), continua atento aos movimentos sociais – mas quem o escuta são os dirigentes do Podemos, especialmente Juan Carlos Monedero, a quem qualifica de “cabeça brilhantíssima”.
Syriza, na Grécia. Podemos, na Espanha. Tempo de Avançar, em Portugal. É coincidência ou têm uma fonte comum?
Há um esvaziamento geral da democracia que, no sul da Europa, chegou até nós quase ao mesmo tempo. E todos os países haviam adotado o modelo atual, a social-democracia, uma combinação única de altos níveis de produtividade e proteção social. Com o desenvolvimento da União Europeia (UE), assistimos a uma transformação política que demonstrou não ser um modelo sustentável. Washington impôs o neoliberalismo, com os mercados e as privatizações, e o Estado num papel secundário; na época, os partidos socialistas eram fortes em nossos países e resistiram à mudança. Mas o modelo neoliberal entrou por uma estrutura supranacional, a União Europeia. E os partidos socialistas se adaptaram a partir de Tony Blair, com a “terceira via”, ou o “capitalismo de rosto humano”. A proteção social passou a ser vista como um engano, um grande investimento, um custo. É o que chamo de democracia de baixa intensidade, com níveis muito altos de desigualdade, aos quais não estávamos acostumados na Europa.
O grande desencadeador é a crise grega de 2010?
Sim. Em vez de considerá-la um problema europeu, optou-se por considerá-la um problema nacional da Grécia. Só recebeu ajuda ao adaptar-se às condições impostas pela UE. O modelo, não muito diferente do ditado pelo FMI e Banco Mundial à América Latina e à África, logo se aplicaria à Irlanda, a Portugal e à Espanha. E assim estamos: países onde Europa e democracia eram consideradas sinônimo de bem-estar, porque chegaram juntas, de repente representam a Europa do mal-estar.

Conhecemos os efeitos da crise, mas não a receita desses partidos.
Syriza e Podemos são embriões, buscam uma reconstrução democrática de alta intensidade, de um estilo novo. Não vão voltar à social-democracia dos anos 70.
Seu crescimento se dá às custas dos partidos de esquerda clássicos.
É que os partidos da esquerda tradicional – os socialistas, os comunistas – não estavam enfrentando a crise. A sociedade utilizou então outras vias políticas; primeiro, ocupando as ruas, porque é o único espaço público não colonizado pelos mercados. Acreditam que os parlamentos e os governos estão colonizados pelos mercados. Enxergam a promiscuidade política entre a elite política e a financeira.
Ocupam as ruas e… ?
E conseguem mobilizar pessoas que nunca tiveram interesse pela politica. Nesse processo de esvaziamento democrático, os partidos tradicionais – e muitos intelectuais – haviam desprezado as ruas. Consideravam que com as massas não se faz política, porque estão despolitizadas. Syriza e Podemos dizem que essas massas não estão despolitizadas, estão desencantadas, e essa ideia transforma os protestos numa construção política totalmente diferente: não assentada na militância, nas vanguardas ou nos grandes líderes, mas em organizações de bairro que muitas vezes começaram seu trabalho pela via social.
Uma nova era?
Eu a considero a segunda liberação (a primeira foi o fim das respectivas ditaduras). Até agora olhávamos para a Standard&Poor’s cada vez que ousávamos aumentar o salário mínimo. Com a vitória do Syriza, vivemos um novo tempo. De repente, a troika desapareceu. Politizamos a Europa outra vez. Isso é bom.
Não parece bom para a Alemanha.
Custa a Angela Merkel aceitar que haja na Europa uma outra política emergente. Àqueles que haviam dito que o problema grego era um problema europeu, voltamos a dizer que a solução grega é uma solução europeia. Ninguém imagina que vá haver uma solução para a Grécia que não repercuta na Espanha, Portugal e Itália.
E os mercados serão derrotados?
O capitalismo inflexível vai ter de mudar, e mudará. O capitalismo sempre se adapta, porque acaba sendo lucrativo.
E como será ele?
Mais inovador e com mais imaginação econômica. O que o ministro das Finanças grego, Yanis Varoufakis, anda dizendo é o que expressão também economistas nada revolucionários, mas prêmios Nobel como (Joseph) Stigliz e (Paul) Krugman: renegociar a dívida e dar à Grécia as condições oferecidas à Alemanha para sua reconstrução.
Todos economistas. Não há políticos imaginativos?
Tivemos uma geração de políticos preguiçosos, porque todos haviam vindo de cima, da UE ou dos mercados. Seus antecessores — Willie Brandt, Felipe González, Mário Soares — tinham imaginação, sabiam que havia decisões que dependiam deles. No caso de Syriza e Podemos são jovens, gente politizada já há tempos, que não entrou agora no barco, o que poderia acarretar-lhes a acusação de populistas.
Mas parece que são acusados.
Populismo é o terceiro grande insulto do período a que nos referimos. Na ditadura, o insulto àquele que contestava o regime era comunista; com a democracia, quem criticava era chamado de fascista; e agora estamos com populista. Populismo é a ligação direta entre o líder e o povo; a perda da intermediação política, e uma confiança carismática no líder. O Syriza e o Podemos vêm de movimentos de base, assembleias de cidadãos…, o contrário do populismo ou, se quiser, o populismo invertido, de baixo para cima – uma combinação de democracia participativa e democracia representativa. Tampouco são pioneiros. Nos anos 90, a prefeitura de Porto Alegre (Brasil) realizava orçamentos participativos: a população decidia quanto de dinheiro ia para a saúde. O problema sempre foi que a democracia participativa funcionava bem no âmbito local, mas não havia mecanismos para estendê-lo a todo o país. Veremos se o Syriza e o Podemos conseguem.
Você parece otimista.
Estamos num bom momento para os cidadãos; não sei se tão bom para os mercados. Mas é bom para a democracia e para a Europa. Não será tampouco um momento de revolução socialista. Estamos na construção de uma sociedade digna. Esses partidos devem manter o nível de participação com certa rotina. Se, uma vez alcançado o poder, as pessoas se desmobilizam, haverá retrocesso social.
E o que acontecerá com os partidos socialistas e comunistas?
Depois de muitos anos pensando apenas em si mesmos, é hora de atravessar o deserto. No fundo, são os responsáveis pela emergência dessas novas forças.
O paradoxo é que o Podemos, diz que não é nem de esquerda nem de direita.
Não são nem desta esquerda nem desta direita. Rejeitam as receitas antigas de esquerda e de direita. A lógica da alternância desacreditou uma e outra.
Parece que, ao culpar os mercados, nos esquecemos da corrupção.
Para estas novas forças, a luta contra a corrupção vai ser fundamental.
Um dos criadores do Podemos, Juan Carlos Monedero, já começava a defraudar a Fazenda.
Comparado ao caso Bárcenas, o de Monedero é ridículo. As acusações são uma manobra desesperada dos que se opõem a ele.
Conhece Monedero?
Em 2011 ele escreveu o prólogo do meu livro O milênio órfão: ensaios para uma nova cultura política. É um intelectual brilhante, com uma formação teórica extraordinária.
O núcleo do Podemos é formado por professores com salário público, e que a universidade mantém firme para quando voltarem. São a nova casta?
Eu me considero um intelectual de retaguarda. Há uma tradição das ciências sociais envolvidas com as lutas sociais. Essa geração da Universidade Complutense de Madri quer contribuir com o bem-estar da sociedade. Além disso, peço aos professores que impulsionem uma renovação democrática a mesma credibilidade que se dá aos economistas que acreditam na bondade da “austeridade”. De modo que privilégio, nenhum

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