domingo, 23 de novembro de 2014

Conversações de Erasmus: Carta da Noruega: o país das desigualdades reconhecidas

Ana Luiza Almeida e Silva *

Ao pensar na Noruega antes de viver aqui, seria automaticamente conduzida à ideia de isonomia. Pela minha experiência na Suécia, onde todos podem ser tudo, naturalmente seria levada a pensar que, aqui, o princípio da igualdade seria premissa máxima e que ações discriminatórias estariam fora de cogitação, em qualquer hipótese. Como uma maneira dinâmica e intensa de mergulhar em uma cultura, comecei a estudar norueguês, mesmo ciente do desafio de se aprender uma língua escandinava. Aqui, raramente se encontra alguém que não fale inglês e, em geral, eles têm pouquíssima paciência para suportar a gagueira mental de quem se arrisca no idioma – por isso o aprendizado se torna um desafio. Ocorre que, entender o norueguês é entender a diversidade e a não linearidade histórica da Noruega. Muito frequentemente me deparava com a dificuldade de compreender os sotaques de regiões diferentes daquela em que fui introduzida a língua. Apesar da nem tão vasta extensão territorial – quando comparado ao Brasil, por exemplo - a Noruega possui quatro dialetos oficialmente reconhecidos que, para fins didáticos, convergem na língua norueguesa formal, o Bokmål. Ao contrário do processo de uniformização linguística(forçada) promovida no Brasil, a Noruega é resultado de uma unificação de grupos regionais diversos que, devido ao tempo e a globalização, linguisticamente assemelham-se mais e mais a cada dia. Por algumas semanas insisti que a diferença linguística não alcançava níveis de distinção de dialeto, mas sim, apenas a diferenciação de sotaque, como em qualquer país marcado pela extensão territorial ou histórico de disputas políticas. No entanto, a cada dia que ligava a televisão, o rádio ou lia sobre a questão, entendia que reconhecer a diferença linguística consistia também em um ato de afirmação cultural. Em uma comparação simples, imagine ligar a televisão no canal de TV mais popular do Brasil e reconhecer sotaques do Rio Grande do Norte, Acre ou Rio Grande do Sul. Essa e a proposta de comunicação norueguesa, permitir a todos os espaço e reconhecimento cultural que merecem, tentando, ao máximo, evitar a “institucionalização” de um sotaque oficial, como ocorre no Brasil quanto ao sotaque do Rio de Janeiro (aqui falo sem qualquer parcialidade, pois sou carioca) O meu segundo choque com a “desigualdade” norueguesa também se refere a língua, mas se estende apolítica, economia e políticas sociais. Provavelmente você não sabe, mas a Noruega tem duas línguas oficiais: o norueguês e a língua Sami. Sami é um povo indígena internacionalmente conhecido pela sua luta por reconhecimento e, quando comparado com outros povos indígenas ao redor do mundo, pela implementação efetiva do princípio da autodeterminação. Não é preciso ir muito longe na história para reconhecer o passado de subjugação e assimilação forçada sofrida por eles. Logo ali, após a primeira guerra mundial, sob a justificativa de proteção de fronteiras e integridade territorial – especialmente quanto as fronteiras do Norte, sob ameaça Russa - a Noruega promoveu uma severa política de assimilação forçada que incluiu proibição do uso da língua nativa, envio de crianças para internatos para que recebessem educação nos moldes noruegueses e, principalmente, a estigmatização da cultura Sami. Foram necessárias mais que cinco décadas para que o movimento indígena fosse reconhecido e tais políticas fossem definitivamente eliminadas, mas esse tempo também foi suficiente para parcialmente dizimar a cultura Sami. Novas políticas de reparação foram iniciadas, especialmente no âmbito da educação. Um estatuto Sami foi estabelecido, sua condição indígena foi declarada e, finalmente, ao fim dos anos oitenta, um parlamento Sami foi criado. Trata-se de um órgão consultivo, no entanto, a importância política e a repercussão internacional que suas reivindicações têm, hoje em dia, são singulares e por isso suas decisões são levadas em consideração pelo Estado norueguês. Fato interessante é que, dada a dispersão do povo Sami durante os anos de assimilação forçada, muitos deles mudaram nomes, interromperam o uso da língua e abandonaram suas atividades tradicionais (predominantemente caça de renas). As políticas atuais de afirmação do povo Sami incluem cotas em universidades, órgãos públicos e, claro, a participação política, começando pela adoção da língua Sami em documentos oficiais, muito embora a maioria dos indivíduos Sami tenham domínio do Norueguês. Além do parlamento Sami, um canal de TV, uma estação de rádio e uma universidade Sami (com cursos voltados para sua cultura, como artesanato) também reafirmam o reconhecimento do histórico de subjugação e sua desvantagem social. Uma reação quase automática de um brasileiro seria atribuir tais conquistas ao fato de tratar-se de um Estado rico. De fato, a divisão do valor estimado do fundo norueguês de petróleo, hoje, tornaria cada cidadão um milionário , mas problemas comuns a movimentos sociais permeiam realidades distintas, seja na América Latina, na África, ou aqui mesmo na Noruega. Em conversas com alguns dos parlamentares Sami, as reclamações comuns quanto as restrições orçamentárias (hoje a verba destinada as políticas Sami somam aproximadamente 45 milhões de Euros), a especulação do setor extrativista sobre as terras indígenas e a falta de estrutura para a capacitação da população Sami. Quando se fala em capacitação, trata-se se capacitação cidadã, em que nas consultas às populações locais, por exemplo, para a instalação de empresas exploradoras de minério, as escolhas sejam feitas sob consentimento prévio, livre e informado. Todas essas questões nos são muito familiares e, como sabemos, extrapolam a esfera orçamentária, mas permeiam sobretudo um processo de emancipação política e cultural. A experiência na Noruega desponta em mim uma nova percepção sobre noções de igualdade e subjugação. Desperta novos questionamentos sob elementos econômicos, políticos e culturais, seja por um sistema fiscal progressivo que e capaz de deduzir até55% sob altos salários, ou pela noção de que a família monárquica trabalha para os cidadãos (ao questionar o sistema monárquico a cidadãos de outros países, como a Inglaterra, nunca ouvi tal argumento). Ter acompanhado as eleições brasileiras imersa na realidade norueguesa foi um exercício diário de entendimento de contradições em todos os discursos políticos (direita e esquerda, se e que elas realmente existem). Frequentemente ouvem-se estórias de noruegueses que optaram por trabalhar em outros países para fugir desse sistema de taxação “cruel” (alguns brasileiros chamariam de comunista). Trata-se de reconhecer as diferenças e trabalhar para amenizá-las e esse processo nem sempre é prazeroso. Em um discurso inflamado nas redes sociais, logo após a divulgação do resultado da eleição presidencial, li: “Todo mundo quer morar nos Estados Unidos, mas vota como se fosse Cuba”. Eu, que nunca tive a menor pretensão de viver o sonho americano(tampouco o norueguês), apenas concluía que reconhecer as diferenças exige coragem, sobretudo para sair da zona de conforto. Aqui o princípio da isonomia é relativo, a meritocracia não é absoluta, a e as disparidades sociais estão cada vez mais distantes.

*Ana Luiza Almeida participa do Programa de Mestrado Human Rights Policy and Practice, uma ação do consórcio entre universidades da Suécia, Reino Unido, Noruega e Índia. Suas cartas têmsido publicadas neste Blog desde que iniciou o programa (ver Cartas de Gottemburgo).

3 comentários:

  1. A unificação dos sotaques do Brasil é feita por causa principalmente da Globo, e os cariocas ainda não se conformaram da corte ter sido tirada de lá.

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  2. A unificação dos sotaques do Brasil é feita por causa principalmente da Globo, e os cariocas ainda não se conformaram da corte ter sido tirada de lá.

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  3. A unificação dos sotaques do Brasil é feita por causa principalmente da Globo, e os cariocas ainda não se conformaram da corte ter sido tirada de lá.

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