quarta-feira, 5 de março de 2014

Conversações de Erasmus: 1ª Carta, de Gotemburgo



Ana Luiza Almeida e Silva *



Olá, José! Como vai você? Me senti na obrigação de relatar, ainda que parcialmente, o que vivi até aqui. Bom, a Suécia foi realmente muito mais do que esperava. A melhor coisa deste programa é sermos mandados para lugares que nunca imaginaríamos antes. Como se vendassem nossos olhos e escolhêssemos. Ok, o processo não é exatamente esse. Mas o fato de não termos expectativas e muito menos preconceitos é fantástico. Fiquei em Gotemburgo, segunda maior cidade da Suécia que, no entanto, para os padrões brasileiros, seria quase uma cidade de interior com seus 500 mil habitantes. A cidade é linda, histórica – recorrentemente me lembrava Coimbra – pelas ladeiras, igrejas, construções históricas. Todos os paradigmas referentes à cultura nórdica foram quebrados: “são frios”, “são fechados”, “são mecânicos”. A integração com os suecos, numa relação mais próxima, é realmente difícil – mas nada que eu não tenha vivenciado em Brasília. Eles são sim diferentes, mas eles têm uma espécie de acolhimento especial. São muito atentos aos detalhes, hospitaleiros e, claro, eficientes. A estrutura da Universidade de Gotemburgo não cansava de me surpreender. A biblioteca é algo que nunca tinha acessado antes (mesmo tendo estudado em Coimbra). A ideia de universidade além da sala de aula também é fantástica. O aspecto puramente acadêmico - sala de aula – me deixou um pouco frustrada, mas essa é uma discussão longa a respeito do sistema de ensino europeu, Bolonha e os alunos que aqui estão sendo formados. Ah sim, esse é um fator importante. A minha turma “Erasmus Mundus” é bem especial. Somos 19 estudantes de todo o mundo. A proporção é mais ou menos 50% europeus e 50% resto do mundo: inglesa, francesa, italiana, holandesa, brasileira, canadense, argentina, síria, libanesa, tailandesa, cingapuriana, kosovar, georgiana, sueca, indiana, australiana, alemã. Essas são as nacionalidades presentes. E pro debate de direitos humanos é mais que enriquecedor. Mas o melhor da Suécia foi ver uma social-democracia funcionando de pertinho. Não me contaram não. Funciona de verdade. E o primeiro aspecto que me chamou atenção foi ver, como nunca havia visto antes, pais e mães apreciando a paternidade/maternidade. A licença maternidade de uma mãe sueca pode durar até um ano e meio. E o melhor: pode ser dividida igualmente com o pai. Eu que sempre fique encantada com rapazes que dominavam as tarefas domésticas, vendo os pais trocando frauda e dando mamadeira, fiquei estarrecida. O sistema de saúde é eficiente, o sistema de educação é de altíssima qualidade (ainda que tenha restrições quanto ao que vivenciei) e garantido gratuitamente até a universidade. Os 32% de impostos que são pagos pelo trabalhador sueco são absolutamente revertidos em serviços. Sem falar nos impostos proporcionais ao montante de bens – lá, ser rico não é um bom negócio. Outro fator que impressionaria qualquer brasileiro é que toda e qualquer profissão é absolutamente respeitada. A senhora que limpava nossa acomodação concluiu seus estudos, falava um inglês fluente e fazia seu trabalho como outro qualquer. E, claro, o salário recebido também garante uma vida digna. Embora não haja um piso salarial nacional – é determinado pelos respectivos sindicatos – a renda média de uma família sueca (pai, mãe e dois filhos) é de 30 mil coroas, o que equivale a aproximadamente 12 mil reais. Era difícil explicar aos suecos como no Brasil a relação impostos pagos/services prestados funciona de maneira desproporcional e, especialmente, a imensa disparidade entre as classes sociais. O movimento feminista lá também é fortíssimo. Ele foi capaz de mudar a regra de sucessão monárquica há alguns anos atrás. A princesa, que era a filha mais velha, perderia a sucessão do trono para o príncipe por conta do gênero. No entanto, a regra passou a ser apenas de que o filho/a mais velho/a tomará o trono idependente do sexo. Uma das coisas mais fantásticas foi a criação de um pronome pessoal neutron – hen - para evitar a distinção de gênero. Além disso, “gender equality” é a premissa máxima de governo aqui. Em Estocolmo, nós fomos recebidos por representantes do Ministério de Relações Exteriores e da SIDA (agência de fomento a projetos sociais em outros países) e ambos confirmaram a diretriz. Um dos fatores que é incômodo, especialmente para uma estudante bolsista, é o fato de bebidas alcoólicas (acima de 3.5%) terem sobretaxação pelo governo e não podem ser vendidas em qualquer esquina. Devido ao histórico de alcoolismo do país, o governo tem o monopólio da venda de bebidas alcoólicas que só pode ser feita nas suas próprias lojas (system bolaget) e em horário comercial. Mas pensando bem, esse é um dos poucos mecanismos de controle que vi. Em geral, o que se vê mesmo é a prática libertária reinando. Na universidade não há presença obrigatória, o direito ao reexame no caso de reprovação autoriza três avaliações – segundo o próprio regulamento, porque eles acreditam na capacidade do aluno. O sistema de transporte tem livre acesso – sem roletas. E a maioria paga sem reclamação. Os suecos são doces em sua essência. Eles têm um dia nacional pro bolo de chocolate. Tem a fika também. É um chá da tarde com quitutes suecos. A comida deixou um pouco a desejar, mas todo o resto compensou. Agora estou na Inglaterra. Cheguei há um mês. Como já havia estado em Londres, o impacto não é tão grande. Ainda assim, entender essa pretensão de perfeição britânica é e sempre será um desafio pra mim. A prática libertária aqui já não é uma realidade. Aliás, tudo é muito vigiado. Desde os ambientes públicos, passando pelos transportes, até o ambiente doméstico. A inglesa que mora comigo me aterrorizou sobre assistir programas de TV na internet sem autorização. Aqui todo canal de TV é pago e as empresas ficam rondando as casas com um detector de sinal para saber o que você esta assistindo. 1984 perto de Londres é para principiantes. Outro desafio é manter-se apaixonado por uma cidade turística quando se vive nela. Eu que sou no Rio de Janeiro sei bem da relação de amor e ódio que esse tipo de cidade causa. É preciso vivenciar bem os detalhes para não ser tomado pelo caos. No momento estou engatinhando na minha dissertação da UNB e enlouquecendo com a proposta de pesquisa daqui. É, aqui o projeto é elaborado durante o curso. A parte boa é que a gente vê coisas diferentes, aperfeiçoa ou muda o que pensava. Ou abandona de vez. A parte ruim é que a dúvida diante de tantas opções desgasta e consome o tempo sem que a gente perceba. Ah, claro. Tive aulas de sueco oferecido pela universidade, mas aprendi pouquíssimo (embora a estrutura gramatical da língua seja muito simples – outro mito desfeito). Mas na Suécia, ou mesmo aqui, estou sendo realfabetizada. José, eu tive trabalhos publicados no Brasil e até então achava que escrever era a única coisa que sabia fazer na vida. Pois não. Estou reaprendendo a escrever, a me expressar de maneira diferente. E, sobretudo, ficar mais tempo calada e prestar atenção aos detalhes. É um processo doloroso, mas vai valer a pena. O inglês nunca é suficiente até que você se depare com um seminário sobre o direito sobre as manipulações genéticas, a discussão sobre um ralo entupido, a conversa com o cabeleireiro sobre como você quer o corte de cabelo, etc. Olha, eu não sei se terei filhos, mas se os tivesse, daria apenas um conselho: estudem línguas. Como bate um arrependimento por ter negligenciado tanto nesse aspecto – e acredite, meu inglês, pros padrões brasileiros, é muito bom. Porém, na vida real é preciso muito mais. Aqui em Londres estou trabalhando em uma organização chamada Fair Trials International. Ela lida com presos detidos fora de seus países de origem. Damos uma assessoria indireta, mas o trabalho mais forte é de campanha e lobby. O último projeto foi sobre a INTERPOL e os alertas vermelhos que acabavam prendendo perseguidos políticos, dado que a INTERPOL seguia a recomendação dos países sem checar as denúncias. Agora estou participando de uma pesquisa sobre prisão provisória. O âmbito é Europa, mas sou responsável pela análise comparada com a América Latina. Olha, confesso que já estava pensando em te enviar o link do blog há algum tempo, mas os posts estão realmente bagunçados. Nessa mensagem consegui resumir um pouco de tudo que aconteceu. Obrigada pelo apoio, José. E também pela curiosidade. Em breve escreverei um pouco mais sobre o Reino Unido. Beijo grande,  

* Ana Luiza Almeida e Silva é aluna do mestrado em Direito, Estado e Constituição da Universidade de Brasília e do programa de mestrado Human Rights Policy and Practice, uma ação do consórcio entre universidades na Suécia, Reino Unido, Noruega e Índia.

Um comentário:

  1. Que relato empolgante, quantas experiências e que vontade de fazer tudo isso também! Continue compartilhando, Ana Luiza, e aproveite cada segundo! A riqueza de conhecer pessoas novas e conviver com elas é inestimável!

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