segunda-feira, 3 de março de 2014

O Direito à Contemporaneidade

3ª Carta sobre ensino superior – o direito à contemporaneidade
Layla Jorge Teixeira Cesar (*), de Tampere, Finlândia


Há poucos meses, em novembro de 2013, a Universidad Intercultural de Nacionalidades y Pueblos Indígenas Amawtay Wasi, do Equador foi reprovada na avaliação do Consejo de Evaluación, Acreditación y Aseguramiento de la Calidad de la Educación Superior (CEAACES), órgão de regulação e acreditação do país.

Com um modelo de ensino superior inovador e fortemente conectado ao contexto cultural local, a instituição obteve apenas 26,9 de 100 pontos na escala criada pelo CEAACES e, portanto, foi impedida de continuar exercendo atividades educacionais. Neste semestre, a universidade foi fechada e seus(suas) estudantes transferidos(as) para outras instituições.

O representante da CEAACES responsável pela avaliação afirmou que a “qualidade educacional” é um conceito que pertence aos povos e às nacionalidades e não pode ser abandonado. A direção da universidade, em resposta, afirmou que a “qualidade educacional” não pertence ao CEAACES e que é um conceito ocidentalizado e alheio à diversidade institucional.

A Universidade Amawtay Wasi poderia se organizar apenas como centro de estudos e seguir oferecendo o conteúdo educacional que desejasse, desde que não provesse diplomas que autorizassem a atuação profissional de seus(suas) estudantes. Desprovida da legitimidade do ensino superior, contudo, não seria possível à instituição reinscrever no registro de dominante o discurso e as práticas dos povos indígenas equatorianos.

O caso representa um retrocesso para os movimentos indígenas e coloca questões fundamentais. Ante a diversidade institucional no ensino superior, existirá um denominador comum capaz de reunir a todos num mesmo sistema? Se não, quem define os limites dessa exclusão?

Há tantas respostas possíveis quantos são os matizes que separam as percepções de qualidade do representante da CEAACES e da direção da Universidade Amawtay Wasi.

Em linhas gerais, se a educação superior for compreendida como bem comercializável, como pretende o Acordo Geral sobre Comércio de Serviços da Organização Mundial de Comércio (em vigência desde o final dos anos 90), então o denominador comum que reúne suas instituições é a relação custo-benefício. Quanto cada tipo institucional é capaz de oferecer em retorno como capital financeiro.

Se, por outro lado, a educação superior for compreendida como bem público, então o denominador comum passa a ser a transmissão de uma ética de coletividade.

Para qualquer perspectiva adotada, haverá a necessidade de algum tipo de regulação da qualidade institucional, dado o atual cenário de mobilidade estudantil e o estreito vínculo que o ensino superior tem com o mercado de trabalho, mas as características dessa regulação variarão de acordo com o fim que se atribui à educação: em que escala os(as) estudantes são vistos(as) como futuros(as) proprietários(as) de um diploma ou como agentes multiplicadores(as) de princípios de formação da identidade social.

São dois polos entre os quais há um continuum, e a predominância de um ou outro modelo tem raízes políticas e estruturais.

No Brasil, tendemos a perceber a educação a partir de seu potencial retorno financeiro. Já não se pode ignorar a presença do capital privado e estrangeiro na organização do nosso sistema de ensino superior. A empresa Kroton, que se fundiu com a Anhanguera Educacional no último ano, soma cerca de 1 milhão de matrículas, quase um sétimo do corpo discente total do ensino superior do país.

28% do capital total da Kroton é oficialmente propriedade da Advent International, empresa norte-americana que investe em diversos setores e tem grande entrada na América Latina, com escritórios em São Paulo, Bogotá e Cidade do México.

Não é possível fazer um julgamento moral simples, condenando ou glorificando este processo de privatização. Há importantes aspectos positivos na expansão do ensino superior privado no Brasil, dentro dessa linha empreendedora. O número de matrículas que temos hoje dificilmente poderia ser alcançado de maneira tão rápida por outras vias, e seu potencial sobre a mobilidade social ascendente dos(as) estudantes é enorme.

Por outro lado, aquiescer esta posição de comodificação e mercantilização da educação é criar fronteiras de exclusão muito severas.

O ensino superior já há séculos vem operando como uma poderosa ferramenta de produção e manutenção da identidade cultural de qualquer sociedade onde se instale, e sua apropriação por uma perspectiva de globalização neoliberal pode trazer consequências perigosas para a definição do saber.

O artifício da globalização neoliberal é a criação de uma zona de temporalidade: quem não esteja coincidindo com seu projeto não tem direito a compartilhar da sua “contemporaneidade”. São excluídos e identificados como agentes “tradicionais” ou “anacrônicos”, e suas práticas percebidas como ultrapassadas.

Para abrigar sob um mesmo rótulo, sob um mesmo sistema de ensino superior, projetos tão distintos quanto a Universidade Amawtay Wasi ou o grupo Anhanguera, é preciso estender os limites dessa temporalidade, e compartilhar, numa ética de coletividade, o poder de definição dos meios de produção da vida material e simbólica.


(*) Layla Jorge, mestre em Sociologia pela UnB, foi assessora do Reitor José Geraldo de Sousa Junior, no período de seu mandato na UnB (2008-2012). Participa atualmente do programa MARIHE - Mestrado em Pesquisa, Inovação e Gestão de Ensino Superior, uma ação do consórcio entre universidades na Àustria, Finlândia, China e Alemanha. Faz parte da rede Diálogos Lyrianos – O Direito Achado na Rua

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