quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Relato "Santa Luzia, rogai por nós!"

Por Cleuton Freitas
Saímos, Marco e eu, um caminho novo de Goiás para Itapuranga: foi bom conhecer novo caminho, passando por Caiçara. Gosto de surpresas, às vezes.
Foram os dois, conversas, filosofias, teses, a Turma Evandro Lins e Silva a Bahia... Bahia fascinante. Caatinga, agreste, cerrado e mata atlântica.
Marcamos 13:00 hs no acampamento e lá estávamos. Passamos pela segurança, fomos até a cozinha (afinal a cozinha é a ágora da casa). Logo encontramos com Ivarci, Doca e outras pessoas. Peguei a petição da possessória: a mesma coisa de sempre:  que dó da propriedade improdutiva.
Quem assinava a peça? A maior surpresa! O advogado foi superintendente do INCRA nos cinco primeiros anos do Lula, coordenador da pasta agrária do PT do Estado de Goiás, advogado do movimento sindical.
Uau... Pensei essa audiência vai ser das boas, porque o cara sabe tudo de Reforma Agrária e do MST também (ou quase tudo)... Vou aprender muito, falei aos presentes.
Como disse o Allan, ao argumentar para o jovem advogado do Cerrado, essa vai ser filé mignon. Isso foi um presságio!
Chega o Valdir (Direção Nacional do MST), companheiro de 10 anos. Sou grato por ter passado raiva com ele. Mas por ter ido ao Dom Helder há 10 anos e nunca mais ter me esquecido. Amigo.
Foi almoçar.
Para a sobremesa,  as estratégias...: sensibilização da questão agrária, das pessoas, crianças, o trabalho, a dignidade, a moradia, a Reforma Agrária. 
Então, o jurídico, técnico, importante nesse front, a questão da competência. Nada mais jurídico, pois, ação possessória, turbação, posse nova:  liminar na veia. Salvo nossas sempre boas e técnicas argumentações: não falarei. Comprometo-me a falar no próximo encontro da RENAP. Ou então peguem o Livro: Questão Agrária e a Justiça. Mas técnicas que a ideologia não permite aceitar. Lyra Filho explica bem isso!
Lá chegando foi aquilo. Quer dizer, um pouco diferente. Agora, o “colega” era companheiro, que me cumprimentou com muito respeito e carinho, como sempre. “O Valdir está aí!” Disse-lhe.
- “Vou pedir bença” disse Ailtamar.
Uma conversa amistosa, sem esconder a surpresa, que, aliás, não foi a única.
Aberta a audiência, muitas pessoas na sala o promotor informou sobre a impossibilidade de realizá-la ante o elevado número de pessoas. Alguns saíram, entre eles o próprio Valdir e o Marco Antônio, logicamente com olhares e gestos de protestos – não mais que isso, afinal eles sabem que a “Justiça é soberana”.
Muitas falas, argumentações, gestos.
Do lado “deles” a propriedade em sua longa metamorfose histórica (Tudo mudo, já dizia Camões), mas sem perder sua principal característica: o poder. A bagunça, fogos de artifício, os possíveis prejuízos financeiros, o esfacelar da paz particular. Esse povo muda a rotina da Fazenda Império.
De nosso lado, a luta pela Reforma Agrária no Brasil, à custa de sangue, suor e vidas. Não há Reforma Agrária sem luta. Ambos os lados sabiam bem disso. Não há que proteger posse de imóvel rural que não cumpre a função social.
O INCRA, na pessoa de seu ouvidor, conosco concordou.
O Ministério Público atento às questões, com suas circunstâncias (yo soy, yo y mi circuntancias, Ortega y Gasset) notando a legitimidade da Reforma Agrária, manifestou: “sou favorável a causa de vocês, mas não pode ofender os particulares. Por que não invadem o Planalto?” Sempre primando por um rápido acordo, mais um, entre tantos sem ouvir as circunstâncias dos envolvidos.
A magistrada, mulher, também buscando o acordo, mas havia outra circunstância inusitada: a sensibilidade do Presidente do TJ-GO nas questões agrárias: a busca pelo acordo e pelos argumentos.
Assim, transcorreram as duas primeiras horas. Pausas para as partes se darem com seus procuradores.
Quase um acordo terrível: Lona, cestas básicas e transporte para saírem da Fazenda Império e voltarem para a beira da estrada.
Então, eis que surge a penúltima circunstancia inusitada: a inspeção judicial. Uma modalidade de prova na qual o/a magistrado (a) vai ao local para fortalecer o seu juízo sobre o caso em tela.
Incontinenti, o Promotor de Justiça pede escolta policial (GPT – Grupo de patrulhamento tático ou vulgarmente conhecido GP-TACA). “A demanda versa sobre questão social” disse o advogado do MST. “Doutor, é rotina” – retrucou o promotor.
Ok. A “Justiça é soberana”.
Na ocupação, após uma noite inteira de fortes chuvas, colchões pendurados nos arames farpados, barracos ainda mal montados e gente. O povo saia do meio do mato, dos barracos, por todos os lados.
A juíza amparada por seu assessor, usando salto agulha, 12, bico fino, seguia cambaleando, como que andando pela corda bamba. O salto afundava-se na lama. E seguia conversando com as mulheres. Foi até a cozinha: a Ágora do Acampamento Santa Luzia. Acredito que lá, pôde, sem escutar nada, olhando, tocando e sentindo o cheiro, formar seu juízo.
Dr. Ailtamar disse: “em 23 anos de advocacia, é a segunda vez que vejo uma Inspeção Judicial”. Valdir, corroborando afirmou “em 20 anos de MST é a 2ª vez que também vejo uma Inspeção Judicial”. Para mim, foi a primeira, em 10 anos de advocacia. O que me fez visualizar uma triste freqüência: a cada 10 anos uma inspeção judicial!
Finda a instrução judicial, voltamos para o Fórum de Itapuranga. Aguardamos a decisão. Nesse interregno, Argentina, vinhos, queijos e azeites eram articulados pelo advogado da Fazenda Império: as férias seriam na Argentina.
Enquanto ouvia, me encurvava mais. Numa posição de que, mais uma vez, sairíamos com uma liminar nos lombos. Quase joguei a toalha.
Feito o pregão das partes, para ouvir a decisão, eis que surge a última surpresa: A liminar foi indeferida!
Nossa, não acreditava. Aliás, as partes não acreditavam. O promotor ainda tentou outra negociação, no sentido de tirar as famílias de lá. Do nosso lado, só queríamos assinar o termo de audiência e correr para o abraço.
Mas, no seu estilo genioso, Ailtamar bradou e afirmou que a Fazenda Império não iria para a Reforma Agrária, ao que o fazendeiro concordou. Para nós, isso pouco importava, ante as batalhas que dia-a-dia enfrentamos.
Esse foi o dia em que Santa Luzia venceu a Fazenda Império.
Hoje é dia de Santa Luzia, a santa dos olhos.
Hoje, mais que nunca sei que um verdadeiro juízo, vai além das argumentações escritas e orais. Perpassa pela Fé, que seja de Tomé (vendo para crer), mas exige uma postura de querer olhar e sentir. E para olhar e sentir, é preciso olhar-se e sentir-se. “Nós, os investigadores do conhecimento, desconhecemo-nos” disse Nietzsche. Talvez o promotor e a juíza firmaram suas convicções ao se deparar com o povo, ou como diz José Geraldo, com a Rua.
E assim, terminou mais uma batalha. Voltamos para nossas casas e nossos acampamentos. Eu, feliz, mas sabia que o Império contra atacaria.
Viva Santa Luzia.
Cidade de Goiás, 13 de dezembro de 2010
Dia de Santa Luzia

2 comentários:

  1. Realmente é uma triste verdade.Mais nada de felicidade existia nisso.Por que no dia 10 de janeiro teve outra audiencia no forum de Itapuranga no qual a fazenda Imperio pede a reentegração de posse e le é concedida.E ai sim vem a tristeza.Promotor de justiça chega com uma ordem judicial.Tinham dois dias para se retirar do local.Os acampados pediram ajuda em transportes,lonas pretas e local para ficar mas o que foi dito que nada poderiam fazer e disseram a seguinte frase "Entraram por conta propria,e sairiam da mesma forma ou muito mal acompanhados" e deu exemplos "Se nao saissem iam pedir reforço a policia de Goiânia GPT,(Conhecida como =GP Taca),Rotam e etc".
    Aí,vem a realidade de um acampamento.A verdade é triste.Mulheres,crianças,pessoas idosas carregando seus colchoes molhados,e desmontando suas barracas de lona preta,com seus GRANDES PERTENCES que seriam:panelas velhas,madeiras velhas com pregos enferrujados,palhas de coqueiros secas e outros e com uma grande chuva "no lombo".E eles nao queriam nem saber eles so queriam que desocupacem a aréa.Para onde iriam e como iriam nao importa..E assim segue o acampamento santa luzia MST,triste mais com grande esperança por que são pessoas trabalahdoras

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  2. Pois é, mas ao menos, por uns dias, a esperança foi renovada na acampamento.

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