quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O público é o privado de todos

Trabalho para a faculdade de Jornalismo, em dezembro de 2009
Fonte: http://temmaismangadoquegente.blogspot.com/2010/01/o-publico-e-o-privado-de-todos.html

Em algumas cidades européias como Berlim, Paris e Barcelona, os metrôs e ônibus não possuem assentos preferenciais. Num primeiro momento, pode-se pensar na inadequação desse tipo de organização do espaço público em países tão evoluídos do ponto de vista das relações sociais coletivas.
O que ocorre nesse tipo de estrutura social é uma atribuição de valor inata ao comportamento do indivíduo sobre questões que transitam na esfera da coletividade. A prioridade é assunto tão sério, que chega a ser óbvio. Simplesmente, nesse modelo de relações sociais, não cabem assentos exclusivos. Cabe a cada cidadão a consciência de levantar-se ou não quando entra um idoso, um cadeirante ou uma grávida.
Essa forma de perceber o coletivo vai tão além da imposição, que o cidadão imerso nesse tipo de organização da esfera pública tira do Estado a responsabilidade e assume para a si certas questões que permeiam as relações sociais.
Roberto DaMatta em A Casa e a Rua, diz que “Na rua a vergonha da desordem não é mais nossa, mas do Estado. Limpamos ritualmente a casa e sujamos a rua sem cerimônia ou pejo… Não somos efetivamente capazes de projetar a casa na rua de modo sistemático e coerente, a não ser quando recriamos no espaço público o mesmo ambiente caseiro e familiar”.
Para o jurista e reitor da Universidade de Brasília (UnB), José Geraldo de Sousa Júnior, a praça, a rua é do povo. Assim como as leis. Para ele, o direito não está só na lei. A partir da esfera pública, pode-se e deve dar legitimidade aos direitos do povo. “Não é o Estado que cria o direito, mas a sociedade”, diz o reitor convicto de que a rua é o lugar do acontecimento, como expressão do indivíduo e sua coletividade. Para ele, é trabalho dos juristas compreender o direito a partir de suas fontes materiais, a sociedade organizada.
José Geraldo é defensor de uma corrente alternativa de direito, o chamado Direito Achado na Rua, que legitima direitos básicos do indivíduo e é balizado pelos Direitos Humanos. Roberto Lyra Filho, pai do Direito Achado na Rua, não colheu em vida os frutos de seu ideário social, mas José Geraldo tornou-se um eloquente porta-voz da Nova Escola Jurídica Brasileira, berço do Direito Achado na Rua. Para Lyra Filho, essa forma de organização social é a “enunciação dos princípios de uma legítima organização da sociedade”.
Colocar em prática o Direito Achado na Rua significa romper com uma relação mecanicista entre Estado e sociedade, de modo que eles possam relacionar-se e não hierarquizar-se. Da mesma forma que nem todo ato legal é legítimo do ponto de vista humanitário, as relações na esfera pública não o são simplesmente por estarem contidas em âmbito público. É necessário um fundamento ético, uma base dos Direitos Humanos como critério de auferição do que possa ser considerado direito ou não. Faz-se necessário, para tanto, que se reconheça menos no Estado o papel de provedor essencial, de modo que cada indivíduo esteja ciente de seus direitos e possa engajar-se na construção de uma coletividade que contemple ideais de justiça.
Roberto Lyra Filho utiliza o epigrama hegeliano no. 3 de Marx (Marx-Engels, 1983) aplicado ao campo de estudos do Direito Achado na Rua: “Kant e Fitche buscavam o país distante,/pelo gosto de andar lá do mundo da lua,/ mas eu tento só ver, sem viés deformante/o que pude encontrar bem no meio da rua”. A rua é o lugar simbólico do acontecimento, das redes de relações sociais, é o direito do povo.
Nesse sentido, chega-se a uma análise crítica do direito estatal, privilegiando a transformação social por meio da própria ação social. É uma mediação com horizonte emancipatório que serve para superar direitos violados e empoderar o cidadão. “A legislação não é o limite, é o ponto de partida”, diz José Geraldo. Empoderar o indivíduo significa reconhecê-lo na condição de agente da verdadeira transformação social.
Certa feita, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes disse que “O direito deve ser achado na lei, e não na rua”. Questionado sobre o que significaria a frase do ministro em relação ao Direito Achado na Rua, José Geraldo disse que a frase não questiona o Direito Achado na Rua. “Não é que o direito está na lei e não na rua. Ele só quis dizer que o juiz não pode ficar a mercê da manifestação social, o que não significa que deve ignorá-la”.
Para José Geraldo, o Direito Achado na Rua nasce da dialética que se origina do pensamento de interpretação do mundo como organismo em constante transformação. A partir da esfera pública, pode-se dar legitimidade a direitos do povo. “O direito não está só na lei”, diz ele. Trazer o Direito para as ruas significa acompanhar a dinâmica da sociedade, que se reiventa em ciclos distintos ao longo de seu processo de ação e reação no decorrer da história.
O Direito Achado na Rua presume participação ativa do cidadão no sentido de buscar para si um senso de responsabilidade sobre o coletivo. Cabe à sociedade uma postura auto-crítica sobre papéis e reponsabilidades, assumindo um limite claro porém mutável, entre dever do Estado e direito individual.
Transformar essas questões em pautas para reflexão, tanto da sociedade quanto das instituições faz parte do processo conciliatório que enquadra o público e o privado em categorias socialmente próximas do ponto de vista da atuação do Direito. Trata-se de um ciclo que se retro-alimenta: O Estado abrindo as portas para maior participação popular faz com que a população tome a frente em ações participativas, propondo e entendendo cada vez mais seu espaço de atuação no âmbito das instituições e exigindo do Estado cumprimento do seu papel enquanto instituição soberana de poder.
O caso de um linchamento, por exemplo, pressupõe uma injustiça anterior. As pessoas se mobilizam de modo a resolver na esfera pública esse questão. O linchamento causa alienação, no sentido de que tira a consciência daqueles que a praticam e tomam para si a responsabilidade de punir.

Quando a alienação se faz presentePara o reitor da UnB, questões como machismo, escravidão e patriarcalismo são “formas de alienação antigas”. Após o caso ocorrido na UniBan, quando uma garota foi rechaçada por colegas de faculdade por trajar roupas curtas, houve na Universidade de Brasília uma manifestação a favor da garota Geisy.
Alguns manifestantes tiraram a roupa em protesto e o reitor foi indagado a respeito desse posicionamento. Com muita naturalidade, ele pergunta “O nu é, em si, um ato obsceno, um atentado ao pudor?” Ele entende que não. “Não havia carga de obscenidade. Aceitei como legítima a manifestação. Havia caráter político”. Apenas pedi a eles que, quando se encontrassem com o reitor, por decoro, estivessem vestidos”.

O POVO AO PODER
“A praça! A praça é do povo
Como o céu do condor
É o antro a liberdade
Cria águias em seu calor
Senhor! pois quereis a praça?
Desgraçada a populaça
Só tem a rua de seu...”
Castro Alves

Nenhum comentário:

Postar um comentário