Cartas Espanholas – Um retrato do
intercâmbio
Julia
Taquary.
Escrevo
essa carta como uma recordação da minha experiencia de cinco meses como
estudante intercambista de Direito no sul da Espanha, na cidade de Granada. Foi
uma grande aventura de conhecimento e de autoconhecimento que fico feliz por
ter vivido.
Granada
tem o ar de cidade pequena, mas sua importância na história espanhola é grande:
foi o último território a ser conquistado pelos espanhóis na guerra de reconquista
marcando o fim do califado na região e ainda foi a cidade onde Cristóvão
Colombo recebeu o aval da Rainha Isabel para desbravar a América, inclusive posteriormente
colonizou e denominou os territórios do Peru à Colômbia de Nova Granada. A
cidade de Granada é muito bonita, seu horizonte é marcado pela Alhambra, antiga
fortaleza árabe nunca de fato invadida pelos espanhóis e sim cedida pelo último
governante mulçumano após longo cerco, e suas ruas evidenciam o grande
sincretismo entre Europa e África Mediterrânea.
A
verdade é que embora tenhamos a imagem da Europa como o centro de influência
mundial, por muito tempo, e até hoje, a influência de muitas outras culturas
caracteriza a vida europeia. Enquanto estive na Espanha, a influência árabe era
visível na arquitetura e na comida, por exemplo, os prédios possuíam a
decoração de azulejos árabes, os chás mais famosos eram marroquinos. Em Granada
em especial, talvez por ter sido o ultimo território a ser reconquistado ou por
ser mais ao sul, muitos cidadãos eram oriundos da Tunísia ou do Marrocos.
Tamanha a quantidade de imigrantes residentes naturalizados espanhóis que
muitos outros cidadãos do norte africano que vinham para Granada não se
importaram em aprender espanhol, pois apenas com o árabe era possível conviver
na cidade.
Durante
meu intercâmbio tive a oportunidade de visitar e conhecer outros países e foi
perceptível que esse cenário de influência árabe não se limita apenas à
Espanha. Portugal possui um estilo de arte marcado pelo azulejo branco e azul,
mas a forma de arte em azulejos é tipicamente árabe. A Grécia, cuja culinária
conquista os turistas, possui diversos pratos árabes inseridos em seu menu
grego. Até na França, que eu pensava ser dominada apenas pelas lojas de grife
francesas, as ruas ricas estavam marcadas pela presença de lojas de artigo de
luxo com símbolos e escrita árabe. Ou seja, muito antes da Europa colonizar o
mundo, ela antes foi colonizada em sua cultura, em suas entranhas pelo mundo do
outro lado do mediterrâneo.
Essa
noção de mundo me deixou maravilhada. Como pode, mesmo séculos antes do advento
da internet ou dos aviões, o mundo ter se conectado de tal maneira que se quer
notamos suas interseções? As pessoas, as culturas não vivem separadas pelas
fronteiras, elas se entrelaçam de maneira tão natural que se quer nos
perguntamos de onde veio essa arquitetura, arte ou comida, apenas a apreciamos.
Não existe fronteira, grade ou muro que possa segurar as pontes que a
humanidade cria. Todavia, todo mar de rosas possui espinhos. Mesmo com todas as
maravilhas que chegam e se entranham na cultura europeia, a ignorância,
especialmente em sua forma xenofóbica, se faz presente.
Como
disse, na cidade onde eu vivia, Granada, muitas pessoas eram oriundas de países
árabes e uma grande maioria seguia o islamismo, ouso dizer que, mesmo morando
no país mais católico da Europa, convivi com mais mulçumanos do que cristãos, e
ainda assim não deixei de ouvir comentários grosseiros sobre o ramadã, por
exemplo. Observo infelizmente que a falta de informação não se restringe a
religião, pois eu mesma já fui questionada em diversas ocasiões como poderia eu
ser uma mulher branca e ao mesmo tempo brasileira como se a imagem de um
brasileiro estivesse confinada a similitude do Neymar.
O
que muitas vezes eu ouvia sobre o mundo fora da Europa me faziam sentir como se
tivesse adentrado à caverna de Platão, o senso comum era apenas uma sombra
estereotipada do brilhante mundo multicultural que existe para além dos
oceanos. A impressão é de que as notícias sobre as colônias nunca serão de
grande relevância para os cidadãos das metrópoles.
E
devo dizer que não os culpo, a Europa enfrenta rixas e desafios internos que me
surpreenderam pela sua complexidade. Nesse assunto não estou mencionando os
problemas econômicos ou sociais, como acredito que a maioria dos brasileiros
como eu pensaria, estou falando do dissenso sobre a própria história europeia.
Explico com uma situação que vivenciei durante um café da manhã com meus
colegas: uma discussão de Napoleão foi ou não um bom homem.
Para
mim a analise ética e moral sobre os atos de Napoleão não parece relevante.
Napoleão e todos os seus feitos são parte da história, reviver a dor ou glória
de seus comandos nunca me passou pela cabeça, apenas usufruímos daquilo que
frutificou de sua época como, por exemplo, o código napoleônico que inspirou
diversas leis em inúmeros países. Contudo, para meus colegas europeus não. Em
uma manhã fria meus colegas intercambistas franceses e italianos travavam uma
discussão acalorada sobre a moral de Napoleão como se suas vidas dependessem
daquele resultado. Veja que desafio complexo colocar no tribunal do júri uma
figura histórica que faleceu a mais de décadas para ser julgada por pessoas de
diferentes localidades.
Haviam
dois lados, os que enalteciam Napoleão, sem grandes surpresas afinal em seu
país existem diversos monumentos que engrandecem a história do imperador, e os
que tinham os olhos horrorizados pela história de devastação do comandante. É
um debate sem saída. Ambos os lados apenas se uniram com a sensação de espanto
quando eu declarei que nunca antes havia pensado em discutir sobre isso.
O
choque de culturas, claro, era inevitável, mais que isso, esperado. Uma das
razões pelas quais decidi me aventurar em um intercâmbio foi conhecer o
diferente e por mais que momentos desagradáveis possam ocorrer o descobrimento
de novas visões de mundo é maravilhoso, é se iluminar por um sol que faz
brilhar inclusive lugares que eu pensava que conhecia.
Um
desses lugares que brilhou diferente em minha mente foi o meu próprio país,
Brasil. Como ex-colônia é muito comum termos a síndrome do vira-lata e
valorizarmos tudo que vem de fora sem perceber os tesouros que temos em nossas
mãos, mas ao sair de casa e ver que o “fora” não tem samba ou açaí, fica claro
como o nosso país tropical é uma pátria que merece muito ser amada.
Ao
encontrarem o Brasil, Pero Vaz de Caminha relatou ao Rei que nessa terra recém
descoberta “em se plantando tudo dá” e não poderia ser o contrário. Temos
música desde Chico Buarque até Anitta, temos comida desde feijoada até sushi
frito, temos natureza de praias até florestas, temos inúmeras variantes da
língua portuguesa com sotaques lindos e divertidos de todos os tipos. Aqui
temos uma riqueza cultural inigualável que, todavia, somente percebemos quando
sentimos sua falta.
Como
pode uma festa tocar no máximo dois ou três estilos de música? Alternar entre
salsa e tecno? Onde está o funk, samba, sertanejo, pagode e todas as variantes
de cada um desses gêneros? Como pode irmos ao mercado e haver apenas um tipo de
banana? Onde estão as arvores quebrando esse cenário de longas paredes de
pedra? Como podem se acostumar a sair com três casacos pesados para sobreviver
ao frio congelante? Que desastre.
Claro,
o Brasil sofre de inúmeros problemas estruturais, mas viver em um país
aconchegante como o nosso, é um privilégio.
A
respeito dos problemas socioeconômicos do Brasil devo dizer que o sol do
intercâmbio também iluminou uma parte que eu não havia percebido com tamanha
clareza: como somos parecidos com nossos conterrâneos da América Latina. Tive a
oportunidade de fazer amizades não apenas com europeus, mas também com
intercambistas latinos de variados países como Mexico, Peru, Argentina e Chile
e a convivência com eles aclarou como nosso continente é mais unido que eu
imaginava. Uma coisa é ler sobre os problemas econômicos ou sociais que nossos
vizinhos sofrem, outra completamente distinta é conversas com os cidadãos sobre
esses problemas.
Primeiramente
ressalto como foi mais fácil me conectar com outros latinos, pois os costumes
culturais são muito parecidos. Encontrar alguém em um país distante e
desconhecido que te compreende nos detalhes do cotidiano é como se sentir
abraçado. Uma das minhas maiores amizades eu fiz com uma mexicana que se ficou
tão espantada quanto eu ao perceber que na república em que morávamos não havia
um tanquinho na lavanderia para lavar os tênis ou panos de chão.
Quando
começamos a conversar e aumentar o nosso ciclo de amizades com peruanos e
chilenos percebemos que quando falávamos de nossos países era como se
estivéssemos falando do mesmo lugar. Todos sofrendo com a alta do euro ou com a
instabilidade política de cada governo como se fossemos compatriotas. Os
problemas que afligem os brasileiros, ouso dizer, são os problemas que afligem
todas as ex-colônias latino-americanas.
Embora
seja um cenário triste, vejo também como um cenário de grandes oportunidades,
pois se tantos sofrem com desafios tão parecidos, talvez as respostas não
estejam nos acadêmicos estrangeiros, mas sim nos registros e estudos feitos
pelos nossos irmãos. São muitas cabeças pensando no mesmo problema, pois são
muitos sofrendo com as mesmas instabilidades e assim talvez se as pequenas
conquistas que cada um atingiu fossem mais valorizadas e reproduzidas, os
resultados fossem melhores. Vejo que é muito comum tentarmos imaginar soluções
nos espelhando no que aconteceu na Europa, mas talvez a verdadeira resposta
esteja ainda para ser descoberta no solo latino-americano.
Por
fim não posso deixar de comentar sobre o mais importante do intercambio, a
faculdade em que estudei. Fui durante o primeiro semestre de 2024 estudar
Direito na Universidade de Granada pelo programa de intercambio da Universidade
de Brasília e cursei diversas matérias interessantes que não havia encontrado
antes no currículo das faculdades de Direito brasileiras, por exemplo, a
disciplina de psicologia do testemunho na qual aprendemos sobre os efeitos da
memória ao descrever um fato para o júri.
Contudo,
creio que o mais interessante dessa experiência de estudar em outro continente
é poder provar uma metodologia de ensino e aprendizagem distintos do que eu
estava acostumada. Diferente não é necessariamente melhor, porém, o diferente
nos enriquece na medida em que auxilia a mente a imaginar novas formas de
pensar.
A
maneira como os espanhóis escrevem seus textos ou o modo de conduzir a aula
mudam em pequenos detalhes do jeito que os brasileiros fazem e embora seja uma
mudança muito sutil me forçou a acostumar com esse novo modelo de apresentar
uma informação e assim ampliou a resiliência da minha mente para aprendizagem.
Esse ganho de resiliência, principalmente na minha área de estudo, Direito, que
é muitas vezes complexa devido a linguagem utilizada para apresentar o assunto,
é imprescindível para superar os desafios intelectuais e por isso sou muito
grata por ter tido a oportunidade de estudar em outro país. Esse é o sentimento
que prevalece dessa experiência que é fazer um intercambio: gratidão por tudo
que vivi.
Em
suma, por mais que haja momentos difíceis, ampliar sua visão de mundo é uma
aventura maravilhosa. Agradeço a todos aqueles que sempre me incentivaram a ir
nessa jornada, meus pais em primeiro lugar por serem as pessoas que me dão forças
para ser quem sou e que me apoiam para eu fique mais forte a fim de me tornar
alguém melhor. E não posso deixar de agradecer pelo incentivo que meu querido
professor José Geraldo de Sousa Junior que, como o excelente docente que é,
sempre apoia seus alunos a alcançarem novas conquistas.
Obrigada
a todos que abriram minhas asas para voar cada vez mais alto.
Julia
Taquary.
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