8 de janeiro: teste de maturidade institucional do Brasil para a defesa da democracia
"Sem anistia", diz o chefe da Advocacia-Geral da União. E também o dizemos todos e todas que se corresponsabilizam pela construção da democracia
» José Geraldo de Sousa Junior, ex-reitor da Universidade de Brasília (2008-2012), membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília e membro benemérito do Instituto dos Advogados Brasileiros
Os quatro pilares da Justiça de Transição são direito à memória e à verdade; reparação; responsabilização penal; e reforma das instituições de segurança. À luz desses elementos, o que não se pode perder de vista é que a Justiça Transicional admite, sim, reconciliação, mas implica necessariamente não só processar os perpetradores dos crimes, revelar a verdade sobre os delitos, conceder reparações, materiais e simbólicas às vítimas, mas também reformar e ressignificar as instituições responsáveis pelos abusos e educar para a democracia, a cidadania, os direitos humanos e para a não repetição desses atentados.
Cuidei desses fundamentos ao co-organizar o livro O direito achado na rua: introdução crítica à Justiça de Transição na América Latina, que pode ser conferido em https://www.gov.br/mj/pt-br/central-de-conteudo_legado1/anistia/anexos/direito-achado-na-rua-vol-7_pdf.pdf. E não posso deixar de considerá-los em face da grande mobilização, tanto de ativistas quanto de personalidades, no transcurso de um ano dos dramáticos acontecimentos que atentaram contra a Constituição, as instituições e a democracia brasileiras.
Numa virulência — que me permite resgatar o que anotei em artigo para o livro Democracia: da crise à ruptura. Jogos de armar: reflexões para a ação —, sugerindo o passo em que o Estado de Direito Democrático se converte em Estado Democrático de Direita. Um passo descrito no golpe de Luiz Bonaparte (ironicamente chamado por Marx de o 18 Brumário de Luiz Bonaparte), escancarando situações em que a própria legalidade se torna um estorvo e põe em prática políticas reacionárias e antidemocráticas.
Estou seguro de que tudo que se vivencia no país desde o 8 de janeiro de 2023 deve ser avaliado sob o enfoque da Justiça Transicional. E isso significa estar atento às reiteradas manifestações da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre estabelecer que as disposições de anistia ampla, absoluta e incondicional consagram a impunidade em casos de graves violações dos direitos humanos, pois impossibilitam uma investigação efetiva das violações, a persecução penal e sanção dos responsáveis. A Comissão afirmou que esses crimes têm uma série de características diferenciadas do resto dos crimes, em virtude dos fins e objetivos que perseguem, dentre eles, o conceito da humanidade como vítima, e sua função de garantia de não repetição de atentados contra a democracia e de atrocidades inesquecíveis.
Especificamente sobre o monitoramento que exercita em relação ao Brasil, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em seu último relatório (2021), ofereceu recomendações sobre ações que tendem a fragilizar e até extinguir esse sistema, como o enfraquecimento dos espaços de participação democrática, indicando, entre as recomendações, a necessidade de "investigar, processar e, se determinada a responsabilidade penal, sancionar os autores de graves violações aos direitos humanos, abstendo-se de recorrer a figuras como a anistia, o indulto, a prescrição ou outras excludentes inaplicáveis a crimes contra a humanidade".
Por isso, é relevante comentário do advogado-geral da União, em rede social, afirmando que "todos os golpistas, tantos os que proveram os ataques in loco no 8 de janeiro, quanto os covardes dos mentores intelectuais, estão sujeitos, na forma da lei, à investigação e à eventual condenação, garantindo a todos o direito de defesa. Difícil entender algumas críticas aos defensores de nossa democracia". Sua manifestação firme guarda uma contundência que denuncia ações já em curso, inclusive no Legislativo, mas também instigadas em colunas de opinião que não disfarçam uma disposição de cumplicidade. "Sem anistia", diz o chefe da AGU. E também o dizemos todos e todas que se corresponsabilizam pela construção da democracia.
A iniciativa do Correio Braziliense de marcar editorialmente a ocasião e o relevo que atribui aos muitos atos em defesa da democracia confirmam que o Brasil passou no teste de maturidade institucional para a defesa da democracia.
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