quarta-feira, 25 de outubro de 2023

 

O Apagão no Amapá: os Movimentos Sociais e o Direito Fundamental à Energia Elétrica

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

 

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito

Lêda Simone Lima Rodrigues. O Apagão no Amapá: os Movimentos Sociais e o Direito Fundamental à Energia Elétrica. Dissertação de Mestrado. Brasília: Faculdade de Direito da UnB/Programa de Pós-Graduação em Direito, 2023, 99 fls.

             Com muita satisfação participo de banca examinadora de dissertação de mestrado, a primeira que integro, no contexto do programa insterinstitucional que celebraram a UnB, sua Faculdade de Direito e o Programa de Pós-Graduação em Direito e a Escola de Magistratura do Tribunal de Justiça do Amapá. Compartilho a banca com o orientador, professor Antonio Sérgio Escrivão Filho (FD/UnB), Professora Adriana Nogueira Vieira Lima, da Universidade Estadual de Feira de Santana e Professora Roberta Amanajás Monteiro, do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP); Assessora Jurídica da 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (6ª CCR/MPF).

            Participei de atividades docentes no projeto interinstitucional, desenvolvendo a disciplina O Direito Achado na Rua que certamente, trouxe muitas sugestões para os pesquisadores do projeto incluindo, explicitamente, a autora da Dissertação.

            Não só por esse trabalho, agora submetido a escrutínio de validação acadêmica. Mas na medida de aceitação dos fundamentos político-teóricos que dão lastro à disciplina. Basta ver a criação, ao tempo de realização do projeto, da coluna Coluna: O Direito achado nas ruas, campos, rios e florestas amapaenses (http://odireitoachadonarua.blogspot.com/search?q=direito+achado+nos+campos+amapaenses), cujo texto inaugural – seguiram-se outros – com o mesmo título, foi publicado na Gazeta do Amapá, edição de 23/01/2022, chamada de capa e página 17, com a assinatura do Desembargador João Guilherme Lages Mendes.

Lembra o autor do artigo e responsável pela Coluna, também pesquisador do projeto interinstitucional, os seus objetivos e o propósito da Coluna:

O Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília (UnB) e o Instituto Federal do Amapá (IFAP), em parceria com a Escola Judicial do TJAP (EJAP) realizam, virtualmente, o curso de Mestrado Interinstitucional (MINTER), inaugurado por edital para preenchimento de 27 vagas, dentre as quais 25 de ampla concorrência e duas destinadas às cotas raciais e indígenas.

Lograram êxito na aprovação Marlucio de Sousa Nascimento; Esclepíades de Oliveira Neto; Marcos Daniel Colares Barrocas; Eliel Cleberson da Silva Nery; Dheyme Melo de Lima; Cássio Paraense Borges; Lucas Bitencourt de Souza; Ulisses Paulo Lobato Gomes Júnior; Paulo César do Vale Madeira; João Guilherme Lages Mendes; Emílio Balieiro de Souza; Lêda Simone Lima Rodrigues; Naif José Maués Naif Daibes; Moisés Ferreira Diniz; Fabiana da Silva Oliveira; Andressa Barbosa Silva Gurgel do Amaral; Antonio Jamerson Mendes da Rocha; Brenno Marlon Oliveira da Silva; Phylipe Marques Santiago; Joelma Veneranda de Carvalho; Sônia Regina dos Santos Ribeiro; Antonice Pinho de Melo; Adão Joel Gomes de Carvalho; Angela Do Socorro Paiva Ferreira; Antero da Gama Machado; Anibal dos Santos Dias e Lucien Rocha Lucien.

O curso organiza-se em uma área de concentração intitulada “Direito, Estado e Constituição”, com cinco linhas de pesquisa (MOVIMENTOS SOCIAIS, CONFLITO E DIREITOS HUMANOS; CONSTITUIÇÃO E DEMOCRACIA; INTERNACIONALIZAÇÃO, TRABALHO E SUSTENTABILIDADE; TRANSFORMAÇÕES NA ORDEM SOCIAL E ECONÔMICA E REGULAÇÃO e CRIMINOLOGIA, ESTUDOS ÉTNICOS-RACIAIS E DE GÊNERO), sendo ofertadas seis disciplinas 1) Prática Ensino e Formação em Direito (Prof.: Fabiano Hartmann Peixoto); 2) Filosofia Política e Direito Constitucional (Prof.: Guilherme Scotti Rodrigues); 3) O Direito Achado na Rua (Prof.: José Geraldo de Sousa Junior); 4) Direito e Análise de Políticas Públicas (Prof.: Ana Cláudia Farranha); 5) Direito internacional (Prof.: Inez Lopes) e 6) Justiça de Transição no Brasil (Prof.: Eneá de Stutz e Almeida), totalizando 24 créditos.

As aulas iniciaram-se em agosto/2021 e, até dezembro próximo passado, concluímos 8 créditos (duas disciplinas). No último dia 18 iniciamos a terceira denominada ‘O Direito Achado na Rua’, com o Professor Titular da UnB, o Doutor JOSÉ GERALDO DE SOUSA JUNIOR, que ensina, faz extensão e pesquisa na área de Direito, com ênfase em Teoria do Direito, principalmente nos seguintes temas: direito achado na rua, direito, cidadania, direitos humanos e justiça, cujo currículo pode ser visualizado na Plataforma Lattes (https://lattes.cnpq.br/).

A expressão “O Direito Achado na Rua” foi criada por Roberto Lyra Filho, a partir de seus estudos de teoria jurídica, social e criminológica, constituindo-se numa das mais antigas linhas de pesquisa da UnB (1987), certificada pelo CNPq. Com a morte de Lyra Filho, e sob coordenação dos professores José Geraldo Sousa Junior e Alexandre Bernardino Costa, o Direito Achado na Rua foi implementado em 1987 como curso à distância coordenado pelo Núcleo de Estudo para a Paz e Direitos Humanos (NEP) e pelo Centro de educação à distância (CEAD), da UnB.

 A Dissertação de Lêda Rodrigues se apresenta ao impulso desse projeto e sob perspectiva declaradamente assumida, conforme o resumo do trabalho:

Esta pesquisa aborda a possibilidade de inclusão do acesso à energia elétrica no rol de direitos fundamentais da Constituição Federal do Brasil de 1988. Para tanto, promove-se uma análise, a partir do estudo de caso único, de um episódio na história recente do Amapá, que deixou 90% do estado sem o fornecimento de energia elétrica. Esse evento ficou conhecido como Apagão, ocorreu entre os dias 03 e 24 de novembro de 2020, e favoreceu uma série infortúnios no cotidiano daquela sociedade, inclusive influenciou diretamente no adiamento da data das eleições municipais. Narra-se o dia a dia do sinistro, o comportamento da população nas noventa horas de blecaute total, as providências e os encaminhamentos das autoridades e dos órgãos responsáveis pelo fornecimento de energia elétrica; o sistema de rodízio ineficaz no abastecimento de energia elétrica, assim como a ocorrência de outros cinco blecautes após o restabelecimento do fornecimento de energia elétrica. Na investigação, realiza-se um levantamento sobre a importância e a necessidade do acesso à energia elétrica no cotidiano da sociedade atual e como essa ausência viola os direitos humanos, identificando onde reside a dependência, quais os direitos que foram impactados negativamente pelo apagão energético e quais medidas judiciais foram tomadas para remediar a problemática. Discorre-se sobre a função social da energia elétrica e como ela contribui para o bem-estar social e para dignidade da pessoa humana. Apresentam-se as manifestações dos movimentos sociais em desfavor do apagão energético no Amapá e como eles, historicamente, contribuem para a evolução social. Alinha-se toda a abordagem à teoria d’O Direito Achado na Rua, desenvolvida a partir das ideias de Roberto Lyra Filho e coordenada pelo Professor José Geraldo de Sousa Júnior, para consubstanciar o entendimento de que os movimentos sociais são porta-vozes dos clamores populares por mudanças que se urgenciam na sociedade e que o Estado e os políticos precisam estar atentos para essas transformações históricas que ensejam atualização legislativa. Para então, compreender que o acesso à energia elétrica, na atual conjuntura mundial, é um direito genuinamente humano, portanto, passível de compor o rol dos direitos fundamentais.

Logo se percebe que o estudo vai além dos requisitos acadêmicos, teórico-metodológicos que organizam o estudo, a dissertação traz uma contribuição originalíssima, quanto ao tema, vale dizer, discorrer sobre a função social da energia elétrica e como ela contribui para o bem-estar social e para dignidade da pessoa humana, “para então, compreender que o acesso à energia elétrica, na atual conjuntura mundial, é um direito genuinamente humano, portanto, passível de compor o rol dos direitos fundamentais”. A pesquisa oferece também um inédito estudo de caso, localizado mas com potência globalizante, para se constituir efeito-demonstração do alcance expandível da pauta dos direitos fundamentais. Assim como, metaforicamente, diria Fernando Pessoa (Alberto Caieiro):

            O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,

Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia

Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

 

Assim é que a Dissertação se organiza em três capítulos nucleares, definidos pela Autora (pp. 13-14):

No primeiro capítulo, intitulado “O caso do Amapá: a história de um apagão”, realizou-se a descrição do apagão energético que atingiu o estado do Amapá entre os dias 03 e 24 de novembro do ano de 2020, através de um diário. A narrativa dessa inesperada (talvez previsível) ocorrência particular, de natureza empírica, inaugurou uma nova situação, por meio de um perverso experimento realístico, que revelou a dependência da sociedade contemporânea por energia elétrica, assim como foi capaz de apontar as evidências, exibir as consequências e registrar os impactos maléficos causados pela falta desse serviço essencial no cotidiano das pessoas. Esse relato também apresentou as manifestações social (dos populares, das pessoas públicas, das entidades e das organizações pró sociedade de alcances nacional e internacional) e oficial (dos órgãos envolvidos, dos governos Federal, Estadual e Municipal, dos políticos, da polícia, das justiças comum e eleitoral) que movimentaram as ocorrências do antes, do durante e do depois do sinistro, no sentido de resolver, postular ou reivindicar sobre o imbróglio.

No segundo capítulo, denominado “Os direitos impactados pelo apagão”, apresentaram-se os efeitos negativos da ausência de energia elétrica no cotidiano dos consumidores (nas instituições públicas e privadas, no comércio e nas residências) e os mecanismos adotados para passar pela intempérie. Averiguaram-se as demandas judicializadas nas esferas estadual, nacional e internacional, que pela morosidade do judiciário ainda estavam tramitando até o fechamento desta pesquisa, e ainda analisaram-se os impactos nocivos do apagão sobre os direitos fundamentais da sociedade, a partir dos pressupostos conceituais e das categorias de indivisibilidade e de interdependência dos direitos humanos, com a finalidade de estabelecer uma fundamentação ao direito ao acesso à energia elétrica.

No terceiro capítulo, nomeado “A sociedade em mutação”, articulou-se sobre a evolução da sociedade e a participação dos movimentos sociais nesse processo; registrou-se a contribuição da teoria O Direito Achado na Rua no amparo e no anteparo dos movimentos sociais enquanto, também, legítimos autores de fontes de direito e, por derradeiro, abordou-se sobre as viabilidades do enquadramento constitucional do acesso à energia elétrica no rol de direito social. Na sequência, como arremate, as considerações finais do aprendizado e da compreensão resultantes da pesquisa.

            O Sumário da Dissertação expande analiticamente o conteúdo proposto:

INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1 – O CASO DO AMAPÁ: A HISTÓRIA DE UM APAGÃO

1.1. SINT TENEBRAE! NOVENTA HORAS SEM ENERGIA ELÉTRICA

1.2. ROTATIONIS! REVEZAMENTO DESORDENADO GERA ONDA DE PROTESTOS

1.3. CONTINUOS BLACKOUTS! O SEGUNDO, O TERCEIRO, O QUARTO E O QUINTO APAGÃO.

O FIM DO RODÍZIO

CAPÍTULO 2 – OS DIREITOS IMPACTADOS PELO APAGÃO

2.1. A FALTA DE ENERGIA ELÉTRICA NO COTIDIANO

2.2. O PANORAMA DA JUDICIALIZAÇÃO SOBRE O APAGÃO

2.3. OS DIREITOS HUMANOS E O DIREITO À ENERGIA ELÉTRICA

CAPÍTULO 3 – A SOCIEDADE EM MUTAÇÃO

3.1. FIAT TENEBRAE! QUANDO OS MOVIMENTOS SOCIAIS ENXERGAM NA ESCURIDÃO

3.2. FIAT LUX! O DIREITO ACHADO NA ESCURIDÃO

3.3. O ACESSO À ENERGIA ELÉTRICA COMO DIREITO FUNDAMENTAL

CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS

ANEXO A: IMAGENS RELACIONADAS AO APAGÃO NO AMAPÁ

Percorrendo o texto do fim para o começo, ressalto das conclusões, a consideração segundo a qual “nesta pesquisa foi viável demonstrar que o acesso à energia elétrica tem um condão de ser enquadrado como um direito fundamental, pois a sua ausência macula à garantia das necessidades mais vitais dos indivíduos, aviltando os direitos humanos, que por sua vez, regem as relações entre indivíduos, entre estes a sociedade e o Estado. Pois foi justamente porque ocorreu uma sucessão de violação de direitos que inúmeras manifestações sociais se levantaram em desapreço pelos impactos maléficos que o apagão energético ocasionou no estado do Amapá no mês de novembro do ano de 2020. A população indignada foi às ruas para protestar. Pessoas públicas no país, fizeram campanhas de arrecadação de água potável e de alimentos. Onze entidades sociais manifestaram apoio a vítimas do blecaute no Amapá por meio de manifestos, publicações, campanhas de arrecadação e de cobrança das autoridades, protocolização de documento exigindo esclarecimento, interposição de medida cautelar e até disponibilização de modelo de petição para ressarcimento dos danos”.

Aliás, quando contribui para a obra Comentários Críticos à Constituição da República Federativa do Brasil. Gabriela Barreto de Sá, Maíra Zapater, Salah H. Khaled Jr, Silvio Luiz de Almeida (Coordenadores); Brenno Tardelli (Organizador). São Paulo: Editora Jandaíra (Carta Capital), 2020, obra da qual um dos organizadores é hoje ministro dos Direitos Humanos, lembrei (http://estadodedireito.com.br/comentarios-criticos-a-constituicao-da-republica-federativa-do-brasil/) que na linha de comentários celebratórios,  não se deve ignorar a incompletude concretizadora do projeto ainda em construção da Constituição de 1988 e as tensões que ele vivencia, nesse contexto de retirada de direitos (http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/7230-a-constituicao-e-ainda-projeto-de-construcao), numa publicação do IHU-Unisinos (IHU On-Line, Revista do Instituto Humanitas Unisinos, n. 519, ano XVIII, 9/4/2018, p. 67-71): o processo em curso teve início com o afastamento da presidenta da República eleita, se faz atentado à Democracia, à Constituição e, em última análise, aos trabalhadores, com a Constituição arguida contra a própria Constituição. Ou ainda com iniciativas de reformas constitucionais e legislativas, retirando direitos, transferindo ativos e reorientando o orçamento público para transferir o financiamento de políticas sociais para subsidiar a lucratividade financeira e industrial em nítido movimento de estrangeirização O que nos impõe postura de engajamento, resistir em face de ameaças e avançar sem temer enfrentamentos, sabendo que as energias utópicas acumuladas nessa experiência podem animar o protagonismo que mobilize, nas crises, as forças emancipatórias do social.

Desse modo, os direitos inscritos no art. 6º da Constituição de 1988, resumem e traduzem o grande programa social formulado pelos Movimentos Sociais (Populares e Sindicais). Agora, sob ataque direto justificando.cartacapital.com.br/2016/09/12/direitos-sociais-garantidos-pela-constituicao-estao-sob-ataque-de-um-governo-ilegitimo-2/, tal como conferido pelo professor Pedro Pulzatto Peruzzo, abre-se a perspectiva de que o próprio Judiciário, que sobre esse dispositivo pouco tivesse diretamente constrangido as promessas nele contidas, ao contrário, como mostra o professor Peruzzo,  houvesse inclusive iniciado uma hermenêutica de proibição de retrocesso social, sustentando haver obstáculo constitucional à frustração e ao seu inadimplemento pelo poder público, ou em perspectiva de controle constitucional de políticas públicas, tenha afastado a dirimente da reserva do possível que  não se constitui justificativa para que o Poder Público possa se eximir das obrigações impostas pela Constituição, renda-se ao movimento neo-liberal de desconstituição desses direitos e do programa social nele investido.

Mais que nunca descortina-se a preocupação já anunciada por Gomes Canotilho, acerca da multiplicidade de sujeitos que se movem no debate constitucional contemporâneo que tende a abrir expectativas de diálogo político estruturado na linguagem do direito, gerando na expressão dele, “posições interpretativas da Constituição” que emergem desse processo e formam uma luta por posições constituintes, luta que continua depois de aprovada a constituição (CANOTILHO, J. J. Gomes. Cf. Entrevista que me concedeu: Pela Necessidade de o Sujeito de Direito se Aproximar dos ‘Sujeitos Densos’ da Vida Real.  Constituição & Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 24, julho de 2008, p.12-13) tal como se deu, por exemplo, no STF na decisão unânime em reconhecimento à constitucionalidade das cotas raciais para acesso à universidade (ADPF 186).

É o que mostra a professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa, conforme Trabalhadores Pobres e Cidadania. A experiência da exclusão e da rebeldia na construção civil. Uberlândia: EDUFU, 2007 http://estadodedireito.com.br/trabalhadores-pobres-e-cidadania/.

Em Trabalhadores pobres e cidadania, Nair Heloisa Bicalho de Sousa, apoiada em enunciados de Tradição, Revolta e Consciência de Classe (E. P. Thompson), trata exatamente do processo de formação do sujeito coletivo na construção civil a partir da vida em família, da experiência de trabalho nos canteiros de obra e da cidadania do protesto presente nos quebra-quebras, onde os trabalhadores usam a violência para garantir direitos até a vivência das greves operárias, momentos de configuração emergencial do sujeito coletivo. Com base nas suas experiências no mundo privado e nos conflitos vivenciados no cotidiano de trabalho, nos quebra-quebras, nas greves e nas representações sociais sobre justiça, lei e direito, a Autora constata a configuração de uma identidade de interesses compartilhados eu tornam possível a instrumentalização de uma luta coletiva pela criação de direitos.

A tese exposta no livro reforça o significado transformador presente na ideia de redescoberta democrática do trabalho, como condição para projetar um novo mundo possível. Ainda que empurrados para o limite da exclusão com a supressão dos direitos da cidadania, a luta operária e sindical, quando articulada à questão da justiça, abre um campo simbólico nas representações culturais da ação, para o autoreconhecimento de um sujeito coletivo, capaz de se tornar protagonista de estratégias de alcance público que garantem legitimidade e reconhecimento para suas demandas e seu projeto de sociedade e de mundo.

Penso que esse é o principal achado da pesquisa de Lêda, quando remarca a luta pela mediação da cidadania. Ela diz:

A energia elétrica é essencial para toda sociedade, mas a garantia de acesso a ela não é alcançada por todos os seus componentes, sobretudo, por conta do fator financeiro. Mas, o Estado tem obrigação de garantir minimamente esse acesso por meio de políticas públicas que assegurem o uso da energia elétrica, promovendo a justiça social. Aqui não há defesa para gratuidade sem parâmetro ou endosso para inadimplemento voluntário, mas, que o acesso seja garantido para todos indistintamente e, que as pessoas menos favorecidas sejam assistidas por ações estatais voltadas para o auxílio na manutenção eficaz desse acesso. Entretanto, na atual conjuntura, somente as políticas públicas não têm assegurado esse acesso, em virtude, sobretudo, dessa temática ser abordada por leis infraconstitucionais, o que permite um descaso de tratamento que não condiz com a real importância do assunto para o bem-estar das pessoas. Em vista disso, necessário se faz que o acesso à energia elétrica seja incluído ao rol de direitos fundamentais, e que seja tratado como um direito social, uma vez que todas as características e os requisitos para essa condição o acesso de energia elétrica preenche, pois a sua dimensão social está intrinsecamente relacionada à dignidade, ao bem-estar e à comodidade para o indivíduo viver em sociedade.

É desse modo que os direitos se expandem e se instituem. Por isso diz a professora Marilena Chauí que a democracia não é somente uma forma de governo. É também uma forma de sociedade. E se caracteriza por ser um sistema de criação permanente de direitos, pois os direitos não são quantidades, são relações.

Assim foi, por exemplo, com a criação por expansão de expectativas do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas. Conforme pudemos destacar no livro Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas: enunciados jurídicos. Organizadoras e organizadores Valéria Torres Amaral Burity, Antonio Escrivão Filho, Roberta Amanajás Monteiro, José Geraldo de Sousa Junior (Organizadores). Brasília: FIAN Brasil e O Direito Achado na Rua, 2021, 195 p. (http://estadodedireito.com.br/28954-2/), inferimos pressupostos e intencionalidades que dão conta de pretensões políticas, agudamente interpelantes, que a FIAN Brasil (Organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas) traduz numa expressão de lutas sociais inscritas na consigna “Exigir Direitos, Alimentar a Vida”.

Trabalhamos essa agenda de lutas, entre organizadores e autores, presentes na banca Antonio Escrivão Filho e Roberta Amanajás. Na obra, com Escrivão e Renata Carolina Correia Vieira trouxemos à reflexão o tema O Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas em tempos de expansão judicial.

Volto à Dissertação e a sua conclusão:

Assim, tem-se um pretexto para responder a problemática da pesquisa. O acesso à energia elétrica auxilia positivamente no cotidiano da sociedade, porque a sua função social na contemporaneidade é de contribuir para o alcance da qualidade de vida, para o bem-estar e para a comodidade das pessoas em sociedade.

Lêda, com forte e bem construída fundamentação, divisa o potencial interpelante da tragédia como uma possibilidade de expansão dos direitos fundamentais constitucionalizáveis. Concordo com ela. Mas abro um questionamento.

Em boa medida e com rápido acolhimento político, editorial e jurídico, a resposta judicial foi instantânea: interdições, ajustamentos de conduta, projetos legislativos, multas. O mundo assimilável do consumo.

Mas Lêda joga suas expectativas de alargamento dos direitos, como resultado de mobilizações da cidadania, dos movimentos sociais, do protesto, na perspectiva de uma pauta de reconhecimento dos direitos humanos e neles inscrita a função social da energia elétrica. Até de vale de nossos pressupostos, meus e do seu orientador, conforme o nosso Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos (Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2021).

Ela põe em relevo, nesse aspecto, as iniciativas de organismos de defesa de direitos humanos e da cidadania, como a ONG Terra de Direitos, a Intervozes, que por diferentes fundamentos levaram a demanda de reparação à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Um lugar crítico para reconhecer os enunciados dessa formulação. Afinal, foi nesse lugar, notadamente sob a presidência do juiz brasileiro Antonio Augusto Cançado Trindade que se deu o alargamento criativo do alcance dos direitos humanos, assim por exemplo, o de reparação não apenas indenizatória mas de reposição da dignidade ofendida por violação de projetos de vida.

Mas o próprio Cançado Trindade, que define o projeto de vida (Sentencia de 19 de noviembre de 1999, Caso Villagrán Morales y Otros – Caso de los Niños de la Calle), como a disponibilidade das condições integráveis ao universo conceitual do direito de reparação quando violado, porquanto “el proyecto de vida se encuentra vinculado a la libertad, como derecho de cada persona a elegir su próprio destino. (…) El proyecto de vida envuelve plenamente el ideal de la Declaración Americana (de los Derechos y Deberes del Hombre) de 1948 de exaltar el espíritu como finalidade suprema y categoria máxima de la existência humana”, adverte para alguns obstáculos, com implicações na construção de aberturas hermenêuticas para a expansão de direitos.

Cançado Trindade se refere ao obstáculo epistemológico do positivismo jurídico, na sua versão mais vulgarizada e empobrecida, ainda hegemônica na formação jurídica e na atividade judicial, responsável por impedir relativamente ao reconhecimento e à proteção dos direitos humanos, um entendimento mais avançado contido em interpretações dinâmicas ou evolutivas dos tratados internacionais, baldas de respostas criativas da própria ciência do direito impossibilitada de libertar-se das amarras daquele pressuposto explicativo do conhecimento jurídico (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de (org). O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2015).

Como Lêda avalia esse obstáculo, para além de seus próprios argumentos criativos? Estarão o sistema institucional de justiça e seus operadores atentos aos direitos achados nas ruas, nas águas, nos campos amapaenses, conforme ela e seus colegas do programa que contribuiu para o desenvolvimento de sua dissertação, se deram conta ao criarem a Coluna na Gazeta do Amapá?

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

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