quarta-feira, 28 de junho de 2023

 

Continuidades e Descontinuidades da Posse e Apropriação da Terra/Território na Região Oeste da Bahia

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

Cloves dos Santos Araújo. Continuidades e Descontinuidades da Posse e Apropriação da Terra/Território na Região Oeste da Bahia. Tese de Doutorado em Geografia. Salvador: Universidade Federal da Bahia. Programa de Pós-graduação em Geografia do Instituto de Geociências, 2023, 301 fls.

 

Trata-se de tese de doutoramento, apresentada e defendida perante a Banca Examinadora constituída pelas professoras e pelos professores Guiomar Inez Germani – Orientadora, Universidade Federal da Bahia; Stella Rodrigues dos Santos, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Celso Antonio Favero, Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Valney Dias Rigonatto, IESA/UFG, Universidade Federal do Oeste da Bahia, UFOB; Iremar Barbosa de Araújo; Coletivo de Comunidades de Fundos e Fechos de Pasto da Bacia do Rio Corrente (Membro Externo); Gilca Garcia de Oliveira (Suplente), Universidade Federal da Bahia (UFBA). Também eu tive a honra de integrar, essa banca singular, para a defesa de uma tese que articula geografia e direito.

 

            A tese, a partir de sua abertura, já coloca a banca num espaço delimitado pelo Autor, epistemologicamente geo-referenciado. Diz ele:

Esta pesquisa surge de um processo que compreende a articulação de quatro espaço-tempos fundamentais: i) o espaço-tempo da minha vivência com a conflitualidade socioterritorial, que é mais alargado e se encontra com os demais no meio do caminho; ii) o espaço-tempo da minha formação acadêmica, cujos debates em seminários e grupos de estudo e pesquisa exerceram papel crucial para a problematização e a apreensão dos conceitos e categorias de análise, tais como os de espaço, território e renda da terra; iii) o espaço-tempo de minha participação na extensão, que articula os dois primeiros no contato e na troca de saberes com comunidades camponesas e das periferias urbanas e, iv) o espaço-tempo de minha atuação profissional como advogado de movimentos sociais urbanos e rurais.

Portanto, a tese começa e termina com uma consideração que equivale a uma licença epistemológica para estabelecer um Carrefour entre racionalidades e mapas cognitivos que permitam o trânsito entre a Geografia e o Direito.

            Na conclusão, aliás, Cloves justifica essa opção (p. 284):

 

Abrimos o caminho ou reavivamos caminhos já abertos por pesquisas anteriores, entendendo que os problemas da espacialização (da produção histórico-social dos espaços e dos territórios) e da produção/transformações dos campos político-jurídicos, e das suas inter-relações, estão situados dentre os principais desafios desta Tese. Em outros termos, na condição de pesquisador em Geografia, com a trajetória percorrida no campo do Direito, o propósito inicial foi olhar essa conflitualidade e identificar como se dão os processos de espacialização e de produção do político-jurídico de forma articulada. Essa articulação entre a Geografia e o sistema Político-Jurídico está na base da formação histórica do sistema-mundo, desde a fundação do Estado Moderno no Século XVI, com o processo de colonização da América que se inicia naquele contexto, com a Filosofia e a Ciência a serviço deste projeto de mundo cartografado e regulado, conforme já dissemos em outro lugar (ARAÚJO, 2019).

Justificativa até desnecessária, em boa medida. Basta ver Boaventura de Sousa Santos em sua emblemática aula maior proferida na Universidade de Coimbra na abertura do ano letivo 1985/1986, posta depois amplamente em circulação no formato de Um Discurso sobre as Ciências (Porto: Edições Afrontamento, 1987).

Nesse texto que teve o alcance de um protocolo para o estabelecimento de um paradigma emergente para um conhecimento emancipatório e humanizador, Boaventura vai caracterizar um mal-estar no racional cognitivo (hoje ele já fala em império cognitivo agonizante), para identificar o desconforto de campos mal dispostos nas dicotomias impotentes do paradigma dominante fundado no positivismo científico (natureza/cultura; mente/matéria; observador/observado; subjectivo/objetivo; colectivo/individual; animal/pessoa). E, para superar essas distinções dicotômicas nas disciplinas científicas, ele vai localizar mobilizações internas a alguns desses campos para se reverem em seus protocolos epistemológicos, e nesse passo, considerar a exemplaridade…da Geografia (p. 40):

Sempre houve ciências que se reconheceram mal nestas distinções e tanto que se tiveram de fracturar internamente para se lhes adequarem minimamente. Refiro-me à antropologia, à geografia e também à psicologia. Condensaram-se nelas privilegiadamente as contradições da separação ciências naturais/ciências sociais. Daí que, num período de transição entre paradigmas, seja particularmente, do ponto de vista epistemológico, observar o que se passa nessas ciências.

Pode-se, sim, mesmo em recorte mais disciplinar, chegar-se a modelos em que o pluralismo de sistemas geográficos e jurídicos (urbano, rural, ambiental, energético, transportes, saneamento etc.) seja percebido em limite que “inviabilize a compreensão da Geografia de Estado e do Direito Administrativo como um todo, sem uma governança que possibilite a produção de informações espaciais que sejam oficiais e confiáveis, e tampouco o emprego de uma tecnologia que impeça a ausência de padronização, de sobreposição de mapas com conceitos antagônicos, bem como de espaços territoriais não cartografados”, conforme  Luiz Ugeda, em Direito administrativo geográfico : fundamentos na geografia e na cartografia oficial do Brasil. Brasília: Geodireito, 2017, p. 388, originada de tese de doutorado defendida na UnB, em 2014, no Departamento de Geografia, quando tive a oportunidade de examinar o trabalho, na banca examinadora, formada por mim e pelos professores Alcindo José de Sá, Marilia Luiza Peluso, Ricardo Mendes Antas Júnior e do orientador Rafael Sanzio Araújo dos Anjos.

Mas, para mim, primeiro território epistemológico demarcado por Cloves é o da subjetividade, posição que o Autor assume de saída. O que me leva também a me posicionar sobre a legitimidade dessa perspectiva, e o faço, repetindo ponto de vista que externei há poucos dias no exame de outro trabalho com características epistemológico-metodológicas de igual estirpe.

Refiro-me a Dissertação de Carlos Henrique Naegeli Gondim, cuja defesa Cloves acompanhou “É LIVRE: o Direito Achado nas terras coletivas de Quebradeiras de Coco Babaçu, de Quilombolas e de assentados da Reforma Agrária em Monte Alegre – Olho d’Água dos Grilos, Maranhão”. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2023, 199 fls.:

 

 

Uma subjetividade, contudo, convertida em rigor teórico-metodológico, que não se deixa refletir em subjetivismo enviesado. Mas que repercute todo esse enlace de saber-sentimento tecido por racionalidades sensíveis (Maffesoli) ou poéticas (Martha Nussbaum), que possam animar compromissos de solidariedade, em linguagem inclusive pastoral própria dos seus engajamentos com a ação emancipatória, libertadora, agora se reencontrando depois de um purgatório pontifício, com a teologia poética do Papa Francisco, que a mim também me tem tocado, não fosse eu membro ativo da Comissão Justiça e Paz de Brasília, para preservar a formação pastoral e missionária que o Autor revela, numa referência a sua adesão a uma teologia posta a serviço do mundo e da história, feita de libertação.

Epistemologicamente preservado o distanciamento que o científico positivista tanto valoriza, mesmo num campo de conhecimento que admite juízos de valor e não somente juízos de fato, a Dissertação felizmente mantem, no estilo, na estrutura, nas metáforas, o arranjo co-razonado, senti-pensante (Fals Borda), de forte aplicação nas abordagens de O Direito Achado na Rua. Para uma referência de aplicação, ver PEÑA AYMARA, Shyrley Tatiana. A Subjetividade do Sujeito Coletivo de Direito: Senti-pensar e Co-razonar, in FIGUEIREDO, Ana Cláudia Mendes de et al (organizadores)O Direito Achado na Rua: sujeitos coletivos. Só a luta garante os direitos do povo! Coleção Direito Vivo volume 7. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023.

Também o trabalho de Cloves se reveste dessa licença autorizada para literalizar a narrativa, inserindo biografia e projeto de vida, afetos que trazem amorosidade para o enredo da Dissertação, com histórias, em primeira pessoa (Boaventura de Sousa Santos. Sociologia na Primeira Pessoa: fazendo pesquisa nas favelas do Rio de Janeiro. Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, nº 49, São Paulo: Editora Brasiliense, primavera/1988), de amizades e de afetos, também de referências acadêmicas eletivas.

Essa subjetividade, contudo, não é um delírio, mas como lembra Eduardo Lourenço, no âmbito literário falando dos heterônimos de Fernando Pessoa, para designar a apropriação do real por meio de outra linguagem (Eduardo Lourenço. A Mitologia da Saudade. São Paulo: Companhia das Letras, 1999). Não é essa a mediação que aparece em Itamar Vieira Junior, em seu Torto Arado, literalizando os mesmos temas? Sobre esses sujeitos que ele diz ser: “gente forte que atravessou um oceano, que foi separada de sua terra, que deixou para trás sonhos e forjou no desterro uma vida nova e iluminada. Gente que atravessou tudo, suportando a crueldade que lhes foi imposta” (VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto arado. [s.l.]: Leya, 2019, p. 261). Gente que, “graças as suas crenças [fez vigorar] uma ordem própria, [para] atravessar o tempo até o presente” p. 196.

O propósito da tese, ou antes, a sua motivação, voltado para “compreender a atuação do sistema políticojurídico nos conflitos fundiários coletivos e de que modo essa atuação contribui com o processo de produção do espaço agrário. Entendia, e continuo entendendo, que os problemas da espacialização (da produção histórico-social dos espaços e dos territórios) e da produção/transformações dos campos político-jurídicos, e das suas inter-relações”, logo se orientou para designar “as mudanças  e permanências (como continuidades/descontinuidades) que acontecem nos processos de valorização do espaço, sobretudo na área desta pesquisa, visto que se trata de região de fronteira agrícola; e, igualmente, de como essas mudanças e permanências repercutem no campo político-jurídico”.

O Autor, originado do campo do Direito, encontrou na Geografia e sobretudo nas ações de extensão, notadamente no Geografia Pés no Chão, ambiente para aprofundar “estudos da formação do espaço agrário e da teoria da renda da terra, abordada no século XIX por Marx (2017) e revisitada por autores contemporâneos, como David Harvey (2013)” e com esse aporte dar-se conta de que  “o processo de valorização do espaço provocou e provoca mudanças profundas na região Oeste da Bahia, no conjunto contraditório de sujeitos sociais que a habitam e na vida das pessoas; provoca, sobretudo, conflitos cada vez mais complexos em torno do apossamento e da apropriação da terra, nas suas diversas formas, com repercussões ambientais irreversíveis. Em outros termos, o que se percebe com o processo de valorização do espaço é a intensificação dos conflitos fundiários na região, e, ao mesmo tempo, a reconfiguração dos sujeitos sociais envolvidos nesses conflitos. Se, inicialmente, tínhamos os camponeses, e se, nesse contexto, a posse era a relação quase exclusiva dos mesmos com a terra, tudo isso passou por profundas transformações nessas últimas décadas”.

Tal como ele explica, p. 31-32:

ante esse processo de valorização do espaço que provoca a intensificação dos conflitos, e, concomitantemente, o surgimento de novos sujeitos sociais e da reconfiguração dos sujeitos tradicionais neles envolvidos, a preocupação segue no sentido de entender como ocorrem as mediações entre esses sujeitos, inclusive as de caráter político e jurídico que entranham os conflitos. Nesse sentido, pergunta-se, o Estado, em sua função enquanto um dos mediadores, como é que ele atua nesses conflitos? Como atuam o agronegócio, o empresário e o latifundiário, com as suas diversas expressões? E como os camponeses resistem e enfrentam nos conflitos decorrentes das mudanças introduzidas na região? Aqui reside uma das preocupações deste pesquisador. Os modos de mediação são diversos, pois os conflitos socioterritoriais são complexos. São diversos os mediadores nos tempos e nos espaços. Ou seja, não só o Estado é mediador, e a mediação acontece não só por intervenção/decisão judicial.

Por isso, na medida em que o processo de apreensão do objeto e do método foi se tornando mais claro, na qualificação e no diálogo com os sujeitos sociais em conflito, e com pesquisadores do tema, percebi a necessidade de dar visibilidade a sujeitos sociais diversos (camponeses/posseiros, geraizeiros, agricultores familiares, latifundiários, empresários, agronegociantes, mineradores, Estado) que participam direta ou indiretamente do processo de produção do espaço e das relações nos conflitos em estudo.

Deste modo, não se trata de focar apenas no Judiciário, mas, principalmente, nos sujeitos sociais diversos que participam e estruturam as teias, com suas fraturas, das relações sociais em estudo.

 

Conforme propõe o Autor, o eixo da sua tese é o estudo da atuação dos diversos e contraditórios sujeitos sociais em conflito e seus mediadores. Seguindo em certa medida o enunciado nos objetivos específicos, o trabalho foi desenvolvido em quatro capítulos. Da Introdução extrai-se os pressupostos já indicados. No segundo capítulo, ao lado da revisão da literatura (teórico/conceitual) sobre os processos sociais de produção e valorização do espaço e dos conflitos socioterritoriais, são ununciados os conceitos centrais que estruturam a tese: produção e valorização do espaço, conflitos socioterritoriais que produzem espaços e os sujeitos sociais que se relacionam nos processos de produção do espaço.

O terceiro capítulo é dedicado à identificação dos conflitos agrários coletivos, dos sujeitos sociais e das suas ações nos processos de apossamento e apropriação da terra/território no Oeste da Bahia. A abordagem neste capítulo concentra-se, como primeiro passo, na espacialização dos conflitos socioterritoriais nos Territórios de Identidade Bacia do Rio Corrente e Bacia do Rio Grande, Oeste da Bahia, buscando alargar os caminhos da pesquisa. Na sequência, aborda-se os processos sociais de apropriação e produção do espaço, buscando identificar as suas contradições e múltiplas formas de superações.

No quarto capítulo a abordagem é centrada na análise do processo de produção e valorização do espaço agrário no Oeste da Bahia, suas contradições e implicações na emergência dos conflitos socioterritoriais coletivos. Retoma-se, para essa finalidade, a base teórica e analítica definida no primeiro capítulo, e, igualmente, o conteúdo do segundo capítulo, onde são apresentados os conflitos e os múltiplos sujeitos neles envolvidos, através das suas ações. Esta análise é focada em dois conflitos socioterritoriais inscritos em diferentes bacias hidrográficas: a) o conflito que tem, de um lado, as Comunidades Geraizeiras do Alto Rio Preto, e, de outro, o Condomínio Cachoeira do Estrondo, localizado na Bacia do Rio Grande; b) o Conflito da “Larga” de Porteira de Santa Cruz, localizado na Bacia do Rio Corrente.

A tese é um precioso exercício de articulação dessas possibilidades, as quais, em seus desdobramentos são examinados em profundidade pelas diferentes formas de aproximação propostas pelos membros da Banca.

De minha parte, em relação a esses aspectos, quero me cingir aqueles que mais diretamente tocam o marco teórico cuja base o Autor confirma ter sido um encontro potente para ancorar sua análise, notadamente quando ela se aproxima da formulação de Roberto Lyra Filho, em sua concepção dialética do direito pautada no pluralismo jurídico. Daí que adota a proposta não dogmática do Direito Achado na Rua, nos sentidos de legitimidade atribuídos ao direito a partir das práticas sociais, da rua, para a construção de uma rede urbana popular e para a própria criação do direito à cidade, em movimento, bem como no seu objetivo central de (i) determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos ainda que contra legem; (ii) definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; e (iii) enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas.

São esses referenciais que vão lhe dar confiança para aventar categorias fundantes de sua análise, a de espaço e a de sujeito, retiradas da fortuna crítica que em O Direito Achado na Rua, que tem levado a alargar, na ação dos sujeitos coletivos de direitos e suas práticas instituintes de novos direitos, a demarcação de novos espaços sociais, para além da metáfora da rua, e assim discernir, ressignificando, espaços críticos como direitos achados na rede, nas águas, nas aldeias, nas florestas, no campo, no cárcere, no manicômio, no armário, no gueto…na noite. Uma construção que dialoga com os sujeitos em seu protagonismo inter-subjetivo quando assumem a titularidade coletiva de direitos.

 O próprio Cloves e seus co-organizadores da obra O direito para além do capital: janelas e trilhas / Paulo Rosa Torres, Carlos Eduardo Soares de Freitas, Cloves dos Santos Araújo, Celso Antonio Favero, organizadores. – Feira de Santana: UEFS Editora, 2023, 488 p., entre eles Celso Antonio Favero presente aqui nesta Banca, já havia sinalizado para essa aproximação, quando incluíram nesse livro e o justificaram, meu ensaio elaborado com Sara da Nova Quadros Côrtes, “Direito achado na rua e perspectivas para além do capital”. Sobre esse trabalho conferir minha recensão em Lido para Você: http://estadodedireito.com.br/o-direito-para-alem-do-capital-janelas-e-trilhas/.

Com efeito, tal como anotaram, o ensaio, após contextualizar o momento da escrita acerca das reflexões aqui correntes afetadas pelo  quadro geral de “intenso sofrimento na Pandemia do COVID-19 e agudização da crise nacional brasileira” e, mais especificamente, pelo balanço    “autorreflexivo da crítica coletiva que ocorreu no evento internacional realizado entre 11 e 13 de dezembro de 2019 na Universidade de Brasília, denominado o Direito como Liberdade: 30 Anos de O Direito Achado na Rua”, propõem  a abertura de um diálogo crítico e autorreflexivo  para interrogar  sobre o lugar da experiência do  Direito Achado na Rua, no sentido  “propor projetos de vida para a humanidade em geral. Aludem a três eixos discursivos que situam, justificam, refletem e abrem janelas para o agir emancipatório: fundamentos e possibilidades; retomada da travessia e as questões emergentes; o “‘achado’ como ‘elo fraco’ do Direito Achado na Rua.” E, nesse passo, o relevo para as dimensões imperativas na base do Direito Achado na Rua, como:    assumir o sujeito coletivo como central nos movimentos de luta, interpelar os sistemas formais estatais e burocráticos do direito para humanizar a formação jurídica, promover a coparticipação, dentre outras.

Eis que o próprio Cloves, agora em co-autoria com Sara Côrtes, antecipando o que se põe na tese, vêm a falar em espaço político, como o território no qual “sujeitos podem adquirir consciência coletiva, estabelecer redes, operar afetos, desenvolver práticas sociais, visibilizar e consolidar direitos, conduzir transformação social emancipadora, estruturar solidariedade e materializar alternativas contra-hegemônicas, como sugere o percurso de O Direito Achado na Rua”. Espaços que se afiguram, ontologicamente, como eu com meu colega co-autor Antonio Escrivão Filho (Para um Debate Teórico-Conceitual e Político sobre os Direitos Humanos. Belo Horizonte: Editora D‘Plácido, 2016), sugerimos se constituirem lugares  de criação e realização do direito, apresentado e posto à disposição do povo na qualidade de sujeito histórico com capacidade criativa, criadora e instituinte de direitos, e, metaforicamente, como a esfera pública onde se reivindica a cidadania e os direitos, onde se agregam cidadãos, onde se lhes protege da dispersão e da desmobilização.

Esses são os espaços de cidadania, como sustenta Milton Santos, enquanto compreendem territórios como lugares em disputa na construção das cidades, quando se envolve relações humanas e suas produções materiais, formando uma geografia cidadã e ativa, conforme lembram Sara da Nova Quadros Cortes e Cloves Araújo, em belo texto – “Dialética Social no Rastro dos Pensamentos de Roberto Lyra Filho e de Milton Santos: aportes teóricos no campo do direito e da geografia” – também publicado nesse dia 1º de setembro, na Revista Direito.UnB (volume 6, número 2 – maio/agosto 2022), com um dossiê em homenagem a O Direito Achado na Rua e a Contribuições para a Teoria Crítica do Direito.

Aplicadas essas noções à cidades ou à territorialização que se dá no campo, para Cloves, na tese, as obras públicas e as outras ações dos sujeitos sociais no processo de valorização do espaço contribuem para mudar a localização do lugar em relação aos outros lugares. A relação entre lugar e localização, como coisas diferentes, na abordagem de Milton Santos, é relevante para a compreensão do que acontece no âmbito desses processos sociais de reconfiguração territorial da região e da produção de novos espaços. Para este autor, “O lugar pode ser o mesmo, as localizações mudam. E lugar é o objeto ou conjunto de objetos. A localização é um feixe de forças sociais se exercendo em um lugar”.

Mas a minha atenção mais definida na tese de Cloves se dá sobre a designação da categoria sujeito de direito e, mais distinguidamente, a categoria sujeito coletivo de direito. Essa é uma categoria fundante de O Direito Achado na Rua enquanto concepção político-teórica.

A tese já estaria depositada e portanto sem que tivesse acessível obra que já está publicada mas que ainda não foi lançada: O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, Coleção Direito Vivo. Ana Cláudia Mendes de Figueiredo, Andréa Brasil Teixeira Martins, Edilane Neves, José Geraldo de Sousa Junior, José Roberto Nogueira de Sousa Carvalho, Luana Nery Moraes, Shyrley Tatiana Peña Aymara, Vítor Boaventura Xavier (Organizadores). Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2023, 428 p.

Penso que a Apresentação, para cuja redação colaborei como co-autor expõe e situa a obra. Dela se vê que o livro, O Direito Achado na Rua. Sujeitos Coletivos: Só a Luta Garante os Direitos do Povo!, volume 7, da Coleção Direito Vivo, da Editora Lumen Juris, é o resultado do esforço continuado de reflexão teórico-prática sobre o Direito, promovida por pesquisadores e pesquisadoras, estudantes, professores e professoras, em atividades de ensino, pesquisa e extensão, que formam o acervo crítico que dá identidade à Coleção Direito Vivo.

A obra reúne ensaios preparados por participantes do programa acadêmico de O Direito Achado na Rua – que é a designação geral dos seis volumes já publicados e que tem continuidade no trabalho desenvolvido no segundo semestre de 2022, na Universidade de Brasília (nas Pós-graduações em Direito – Faculdade de Direito e Direitos Humanos e Cidadania – Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares), sob a coordenação do professor José Geraldo de Sousa Junior, também regente da disciplina O Direito Achado na Rua, vinculada à linha de pesquisa com a mesma denominação.

Deste modo, apesar das múltiplas trajetórias dos autores e das autoras, o elemento aglutinador dentre suas histórias é o fato de sua participação num programa comum e de assumirem o compromisso autoral de elaboração narrativa sobre uma questão também compartilhada, definida para mobilizar a disponibilidade analítica de sua atuação no coletivo assim constituído. O componente que mantém a coesão do livro, portanto, não é a formação dos autores e das autoras, mas, sim, a temática da obra, as estratégias para a sua composição, com etapas preparatórias de leituras e recensões sobre textos previamente discutidos, de modo individual num primeiro momento e em seminários numa etapa subsequente.

Assim, os artigos do livro tratam, cada um do seu modo, da categoria jurídica do sujeito coletivo de direito. Com cerca de três décadas desde a formulação do conceito, tal como indicado nessas leituras preparatórias, a obra em questão serve como uma espécie de compêndio que promove balanços, inovações e direcionamentos acerca da fortuna crítica dessa categoria e de seu alcance nos âmbitos da teoria e da práxis.

A identidade política dos movimentos sociais e a possibilidade de que eles venham a se investir de uma titularidade jurídica coletiva, ou seja, de atuarem como um sujeito coletivo de direito, são questões caras para a política e para o ensino jurídico. Assim, as reflexões com o pano de fundo teórico do Humanismo Dialético e d’O Direito Achado na Rua são, por sua vez, uma referência para a leitura crítica da realidade.

Os textos foram organizados em quatro eixos, tendo em vista o modo como os ensaios foram construídos em sua elaboração autoral ou co-autoral, processo que acabou por pautar os diferentes enfoques e as aproximações que as leituras lograram trazer para a atualização, a revisitação, as aplicações de um protagonismo do sujeito coletivo de direito, na pluralidade de múltiplos desafios para o seu reconhecimento teórico e político no movimento complexo do social.

Nessas condições, coube às autoras e aos autores e às organizadoras e aos organizadores desta obra enunciar 4 eixos, que, conforme o seu descritivo, permitiram agrupar e aproximar os ensaios que formam o sumário:

Eixo 1 – Discussões teórico-filosóficas sobre a categoria sujeito coletivo de direito;

Eixo 2 – Aproximações sobre a noção de sujeito coletivo de direito;

Eixo 3 – Sujeitos coletivos de direito achados nos territórios indígenas e no campo;

Eixo 4 – Lutas dos movimentos das pessoas com deficiência, negros, mulheres e contra a ditadura.

Embora o desenho editorial do livro, no balizamento da Coleção e na linha teórica que decorre da concepção e da prática de O Direito Achado na Rua, tenha indicado um fio diretor para “validar” as opções temáticas e os enfoques de cada autor ou autora ou grupos de autores ou autoras – portanto, um compromisso político-teórico inafastável que quer se inscrever na síntese conceitual que designa O Direito Achado na Rua, vale dizer, conceber o Direito, seguindo a diretriz formulada por Roberto Lyra Filho, como “a enunciação dos princípios de uma legítima organização social da liberdade” –, é possível encontrar num texto ou noutro alguma singularidade autoral que não seja acordo unânime da edição sobre a fidelidade a esse enunciado.

Contudo, todos os textos, produzidos segundo o protocolo da autonomia subjetiva de quem os assina, vieram para a edição porque neles, em contexto, esse protocolo, na linha dos princípios, foi lealmente seguido, guardando os ensaios o objetivo de contribuir para a emancipação do humano, contra todas as formas de opressão ou de espoliação, no engajamento para a construção de uma sociedade democrática que se realize enquanto projeto de reconhecimento dos direitos humanos que designam o protagonismo instituinte dos sujeitos coletivos de direito.

No meu ensaio de Introdução, entretanto, recupero o itinerário dessa categoria cara, em seus registros antecedentes, discorrendo sobre  O Sujeito Coletivo de Direito: uma Categoria Fundante de o Direito Achado na Rua  que, na condição de texto de Introdução à Obra,  localiza e rastreia o percurso de um conceito forte, sua concepção e prática como contribuição à teoria crítica do Direito, de seus primeiros enunciados nos anos 1980 ao seu protagonismo, inscrito nos movimentos sociais, e sua ação democrática e instituinte atual para criar direitos. Aliás, os estudantes de graduação em Direito da UnB, na disciplina Pesquisa Jurídica, têm desenvolvido verbetes para a wikipedia, articulados à perspectiva crítica de O Direito Achado na Rua, e um desses verbetes é exatamente Sujeitos Coletivos de Direito, por eles caracterizado como “aquele que adquire fundamento jurídico por meio da ação coletiva dos movimentos sociais. Esse conceito envolve o entendimento da atuação dos movimentos sociais, os quais conciliam a bagagem histórica e o conhecimento prático de suas reivindicações no contexto político e social em que se encontram. Dessa forma, os movimentos sociais coletivos são protagonistas nos processos de transformação social” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Sujeito_coletivo_de_direito).

Note-se que o Eixo 3 – Sujeitos coletivos de direito achados nos territórios indígenas e no campo, reúne ensaios que guardam proximidade com a tese de Cloves e que podem ser úteis para agregar sobretudo referências bibliográficas que contribuam para a bem posta tese, no seu contexto, prescindindo desses elementos para a sua completude.

Até porque, e esse é o ponto da tese que foco para justificar minha participação na Banca, em que localizo uma significativa contribuição de Cloves. De resto, por ele próprio posta em relevo, com uma convicção que dá como pressuposta a relevância do achado de sua pesquisa: os sujeitos sociais em conflito.

Na conclusão Cloves reafirma a centralidade do “conceito de sujeitos sociais diversos e contraditórios que se relacionam nos processos sociais de produção e valorização do espaço”.

E é categórico ao afirmar, também em conclusão, p. 292, até me trazendo para apoio de suas considerações, que

É na totalidade dialética em movimento permanente que deparamos com as contradições decorrentes das relações socioterritoriais que produzem espaços hegemônicos ou espaços de opressão, através dos grandes projetos direcionados à produção capitalista, nas diversas conjunturas que mudam as localizações dos lugares. Mas é também neste mesmo movimento que são produzidos contraespaços ou espaços de liberdade, através dos diversos levantes populares identificados nos diversos momentos históricos da formação espacial brasileira (MOREIRA, 2014). E é também neste mesmo movimento dialético da história que os levantes populares conseguem impulsionar a produção do Direito como Liberdade (SOUSA JUNIOR, 2011).

Contudo, de minha leitura da tese restou uma ligeira impressão de ambiguidade o que Cloves formula na p. 31:

na medida em que o processo de apreensão do objeto e do método foi se tornando mais claro, na qualificação e no diálogo com os sujeitos sociais em conflito, e com pesquisadores do tema, percebi a necessidade de dar visibilidade a sujeitos sociais diversos (camponeses/posseiros, geraizeiros, agricultores familiares, latifundiários, empresários, agronegociantes, mineradores, Estado) que participam direta ou indiretamente do processo de produção do espaço e das relações nos conflitos em estudo.

Deste modo, não se trata de focar apenas no Judiciário, mas, principalmente, nos sujeitos sociais diversos que participam e estruturam as teias, com suas fraturas, das relações sociais em estudo.

 

O próprio Cloves, na sua condição de intelectual orgânico do Coletivo (Grupo de Pesquisa) O Direito Achado na Rua, e nessa atribuição, durante o Seminário Internacional Direito como Liberdade – 30 anos do Projeto O Direito Achado na Rua (2019), se distinguiu como garante de uma posição em plano de relatoria –  Seção VIII – Movimentos Sociais e os Desafios da Assessoria Jurídica e Advocacia Popular, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al (orgs). O Direito Achado na Rua – volume 10: Introdução Crítica ao Direito como Liberdade. Brasília: Editora UnB/Editora OAB Nacional, 2021. Texto de síntese da Seção: Assessoria Jurídica Popular em Tempos de Barbárie: resistência, luta e memória histórica. Cloves dos Santos Araújo, Érika Lula de Medeiros, Helga Martins de Paula, Ludmila Cerqueira Correia e Pedro Teixeira Diamantino (p. 599-609; em destaque p. 607).

E nesse texto, está afirmado:

Dessas experiências repletas de abordagens com os pés no chão, o direito revela-se uma criação sociopolítica, econômica, cultural e, decisivamente, intersubjetiva, coletiva, pluralista, conflitiva, processual. Nas experiências trazidas, o direito passa a ser refletido com corpos e olhares deslocados dos gabinetes para as lutas e conflitos, criando-se um espaço de diálogo horizontal em torno de O Direito Achado na Rua como referência, justamente por ser uma concepção forjada no seio da teoria crítica no Brasil e que gravita em torno da atuação jurídica dos novos sujeitos coletivos e das experiências sociojurídicas de criação e defesa de direitos por estes desenvolvidas.

 

Minha questão para o Cloves, assim, é para que esclareça essa promiscuidade que põe na mesma identificação de subjetidade ativa coletiva – camponeses/posseiros, geraizeiros, agricultores familiares, latifundiários, empresários, agronegociantes, mineradores, Estado .Tal como os estudantes na wikipedia, indicam, a caracterização de sujeito coletivo de direito, a partir de O Direito Achado na Rua, não permite essa extensão descaracterizadora.

 

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua.

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