Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça. Censura e Silenciamento
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Em Nota Pública um conjunto expressivo de Entidades e vítimas da ditadura “condenam censura à Comissão da Verdade”, manifestada em decisão judicial (6a Vara da Justiça Federal de Pernambuco, determinando a retirada de trechos do relatório da Comissão Nacional da Verdade – CNV).
Na Nota seus subscritores afirmam que esse tipo de sentença judicial é ofensiva aos familiares e vítimas da ditadura, fere a Lei de Acesso à Informação (LAI) que proíbe a restrição de acesso a “informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas” e determina que“a restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância“.
E ainda, que a decisão judicial ofende também a ampla jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos em matéria de memória, verdade e justiça, além das sentenças especificamente dirigidas ao Brasil (Caso Gomes Lund e Caso Vladimir Herzog) que determinou a todas as autoridades de todos os poderes do país a adotar medidas para garantir o direito à memória e à verdade. Ademais, a ação judicial da Vara de Pernambuco foi conduzida sem a necessária intervenção do Ministério Público Federal, obrigatória em matéria de justiça de transição, especialmente quando se discute o direito à verdade e à memória.
Têm razão os subscritores. Tenho sustentado esses mesmos fundamentos para afirmar o caráter cogente do direito à memória e à verdade e o conjunto de enunciados que formam o que atualmente se adensa como justiça de transição. Em texto publicado em 2008 –Memória e Verdade como Direitos Humanos(in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Ideias para a Cidadania e Para a Justiça. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor), sintetizo esses enunciados e lembro Hanna Arendt para dizer com ela, que “uma das lições que podem ser apreendidas das experiências totalitárias é a assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira e na capacidade de reescreverem a história para a adaptar a uma linha política”.Esse é o pressuposto que se faz núcleo da concepção de justiça de transição e que se projeta para o objetivo de que não se esqueça; para que nunca mais aconteça.
Desconfio da legitimidade de fundo da sentença criticada pelas Entidades e vítimas. Até posso admitir alguma boa-fé hermenêutica no sentido de preservar algum direito subjetivo que não deva ser protegido por outros meios e sem afrontar a dimensão cogente da justiça de transição inscrita na precedência fundante do juízo da Comissão Nacional da Verdade. Até aceito que a atitude não tenha sido a de censurar. Mas de qualquer modo ela se soma a posições recalcitrantes de violadores que buscam escapar ao juízo de responsabilização por seus atos de lesão, configurados como crimes contra a humanidade.
Em outro texto sobre esse tema (Revista do Sindjus • Fev-Mar/2010, ano XVIII, n. 64), anotei que a reivindicação de incluir uma Comissão de Verdade e Justiça, mesmo na forma atual de Comissão de Verdade, decorreu da Conferência Nacional de Direitos Humanos realizada em dezembro de 2008 com caráter deliberativo. Decorre também da natureza cogente do direito internacional dos direitos humanos, expressa em decisões de tribunais internacionais que indicaram ao Brasil a necessidade de concluir o processo de democratização com a verdade sobre os fatos, para evitar repetições de ciclos de violência. E que essa reivindicação inscreve-se nos fundamentos do que se denomina justiça de transição, que pode ser definida como esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos.
Por isso que, se não for considerada censura, a decisão se presta a fortalecer as posições de silenciamento da verdade e a robustecer o que Hanna Arendt designava dementira na política.Atitude que parece caracterizar na conjuntura, o modo de se manifestar oficialmente, sobre essas incidências de nosso passado recente que a Constituição determinou fossem submetidas ao juízo da verdade e da justiça (para o que foi instituída a Comissão Nacional da Verdade), ao lado das Comissões de Anistia e de Mortos e Desaparecidos.
Essa atitude transparece, registra notícia do sítio UOL, no desalento vivido durante décadas, pelo jornalista César Fernandes, ao buscar reparação para Maria da Conceição Chaves Fernandes, sua esposa, ambos membros da RAN (Resistência Armada Nacional), que ficaram presos no Rio por 40 dias, em 1972, ela violentamente torturada pela repressão. O testemunho de César Fernandes sobre as torturas infligidas a sua mulher, ultrapassa o cenário do horror, instituído como política de Estado que se prorroga na conclusão da Comissão na sua composição e com sua ideologia atual de que “apenas foi aplicada a legislação vigente, sem excessos, abusos ou qualquer ato ilícito pelo Estado“.
Penso que se integra a essa perspectiva de silenciamento e de ocultação da verdade, situação aqui no Distrito Federal, em relação à qual já me manifestei aqui no Brasil Popular (Honestino Guimarães: Reparação de Projeto de Vida – Brasil Popular), acentuada com o veto do Governador ao projeto de lei que renomea para Honestino Guimarães a Ponte Costa e Silva (alusão a personalidade identificada com uma das fases mais duras da Ditadura instalada no País em 1964-1985).
Tive um sobressalto pensando que entre os oito vetos derrubados pelos deputados distritais, conforme notícia dessa semana, estivesse o de restauro de memória e verdade, como marca de historicidade e iluminação sobre um passado cruento. Frustrei-me. Os líderes ainda não formaram acordo sobre essa exigência civilizatória.
É preciso, pois, insistir no “não esquecimento” que é o pressuposto para o “nunca mais”. Conforme eu disse na matéria de Brasil Popular, essa é uma lição que a ausência às classes de estudos políticos sobre conceitos de democracia e de teoria do Direito, sobre concepção de direitos fundamentais convencionais e também constitucionais, pode não ter sido aprendida. Mas é igualmente uma demonstração de rendição apequenadora (a estilo de guarda de quarteirão, conforme a advertência de Pedro Aleixo quando o texto do AI-5 foi colocado à assinatura dos ministros, entre eles aquele que “mandou às favas os escrúpulos”), aos autoritarismos renitentes naquilo que Umberto Eco denominou de fascismo eterno”.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).
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