quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

 

Traços – Especial 5 Anos.

Lido para Você, por José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito.

 

Traços Especial 5 Anos. Brasília: Associação Traços de Comunicação e Cultura, novembro/dezembro de 2020.

“Quando se pega uma revista Traços nas mãos você sente que ela pulsa. Que continuará pulsando. Porque arte é sangue” (Poeta Nicolas Behr, na abertura editorial do número especial 5 Anos).                          

 

            O número especial abre assim, com a epígrafe poética de Nicolas Behr, o poeta-guia de Brasília. Não há amigo ou colega forasteiro, que chegando em Brasília, eu não o introduza à cidade com os poemas de Nicolas. Poemas e prosa que fui acompanhando refinarem-se, como os traços de Niemeyer, pois “nem tudo que é torto é errado, vejam as pernas do Garrincha e as árvores do Cerrado”. Desde Iogurte com Farinha, Chá com Porrada e tantos escritos mimeografados como devem ser os textos de protesto, que recebíamos nos 1980 nas filas do teatro da Escola-Parque, na W3 Sul, nas portas do Cine Brasília, do Atlântida, do Karim da 110 sul, tempos em que a arte ocupava os espaços, alguns dos quais depois se converteram em templos para adoração de bezerros de ouro.

            Nicolas é a primeira lição, em poesia, que ofereço aos visitantes. Confiante na sua interpretação da cidade. Por isso que, Reitor, tive o Nicolas na agenda das aulas de inquietação nas quais, na UnB, no teatro de arena, eu recepcionava a cada semestre a comunidade universitária. Ali Nicolas falou de Brasília e do Brasil, na sequência das interpelações instigantes de Miguel Nicolelis, Amyr Klink, Ênio Candotti, Leonardo Boff, Clarice Niskier, Gog, Juliano Cazarré, José Miguel Wisnisk, Eric Nepomuceno, Marcelo Gleiser e, no último semestre de meu mandato, Boaventura de Sousa Santos.

            A segunda lição é dada com as crônicas de Conceição Freitas. Na cronologia de seu mergulho na escala humana da cidade, não apenas a bucólica, a arquitetônica e a monumental. Por isso tenho instigado Conceição, agora dedicada ao refúgio cultural de sua banca de jornais na 308 Sul – Banca da Conceição, que continue o seu mergulho desde o banquinho de sua bancaUma expectativa que guardo sobre constituir esse viés interpretativo da cidade, mais pelo imaginário e pelo intuitivo, talvez até pelo contraintuitivo, tal como expressei em meu Lido para Você sobre o livro de Clôdo Ferreira – Comunicação e Música, e sobre o Guia Musical de Brasília (https://estadodedireito.com.br/comunicacao-e-musica/). A banca afinal, é uma espécie de academia. Neste começo de janeiro, celebrando seus aniversários, tal qual a ABL, Conceição recebeu com máscaras e bolo seus acadêmicos mais assíduos e como ela diz “humanos fundamentais”, José Carlos Córdoba Coutinho e Vladimir Carvalho.

            “A Traços é muito mais que uma simples revista. É um projeto social, coletivo e participativo. Porque a Traços é a maior aliada dos que brigam para ter direito à cidade e dos que lutam pelo direito de se manifestar nos espaços públicos. Expandindo o conceito de Brasília, dissociando a cidade-capital da ideia de poder. Mostrando os primeiros sinais de uma identidade cultural, rebelde, nesse diverso caldeirão cultural que é a Grande Brasília. A Traços é uma intervenção urbana ambulante. Que valoriza o impresso. Não dá pra deletar esta revista. Muito mais que informação a Traços estampa dignidade. Pois ela é comercializada pelos e pelas Porta-Vozes da Cultura. Que são, na verdade, também multiplicadores, difusores de cultura. Muitos desses e dessas porta-vozes, que viviam em estado de vulnerabilidade social, deixaram as ruas, pois com a venda de Traços conseguiram renda própria. Isso se chama cidadania. Isso se chama reinserção social” (Trecho do Editorial do número especial).

            Projeto bem sofisticado, conduzido por uma equipe técnica e politicamente experiente e com clareza acerca da concepção gráfica e filosófica do empreendimento. A Traços, eles explicitam e reeditam neste número especial, “é uma publicação sobre arte e cultura, vendida nos espaços culturais e gastronômicos de Brasília pelas mãos dos Porta-Vozes da Cultura – pessoas que estavam em situação de rua ou em extrema vulnerabilidade financeira. Por meio da revista, o projeto contribui com a geração de renda e o ganho de autonomia dos Porta-Vozes (coordenados e orientados conforme um Código de Conduta), que ficam com 70% de valor de cada exemplar”

         O modelo do projeto não é inédito. A Revista The Big Issue Japan ajuda e dá ofício para homeless. O projeto se inspira em experiência inglesa com uma proposta para ajudar moradores de rua. Está no país desde 2003 e oferece um ofício para quem não tem onde morar, como um incentivo para sair dessa situação, além de servir para que as pessoas voltem a socializar e aprendam um trabalho novo.

         De certo modo essas experiências compõem o que já se designa como organização internacional dos moradores de rua –http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252005000100003.  Uma das iniciativas mais bem-sucedidas internacionalmente são os chamados street papers, jornais e revistas elaborados ou vendidos por moradores de rua, e têm sido tema de debates em conferências, que já ultrapassaram mais de dez realizações da International Network of Street Papers (INSP), uma rede internacional que abrange as publicações do gênero.

         A matéria publicada conforme a referência acima, dá conta de uma Rede dos Sem-Teto, sediada em Glasgow, na Escócia, que reúne 55 publicações de 28 países, responsáveis pela circulação total de 26 milhões de exemplares por ano. Todas as publicações são editadas em papel de boa qualidade, apresentam projetos gráficos inovadores e, além de questões ligadas ao cotidiano dos moradores de rua, abordam assuntos relacionados a arte, entretenimento, projetos sociais e comportamento. A rede começou a ser tecida em 1991, com a revista inglesa The Big Issue, inspirada na iniciativa do Street Journal vendido pelos chamados homeless (sem-teto) de Nova York.

         A matéria dá conta também de experiências no Brasil. Duas publicações brasileiras integram a INSP: a revista Ocas da Organização Civil de Ação Social, entidade criada em 2002 em São Paulo e no Rio de Janeiro, e o jornal Boca de Rua, de Porto Alegre, que já participou de duas conferências da INSP:

         Embora faça parte da rede, cada jornal ou revista executa seu projeto de forma autônoma e coerente com a realidade da qual faz parte. O jornal Boca de Rua, por exemplo, atua de modo diferente da grande maioria das publicações que integram a INSP. Na medida em que são apenas vendidas por moradores de rua, poucas delas têm o seu conteúdo integralmente feito por eles, já que o objetivo principal desses jornais e revistas é a geração de renda. ‘A proposta do Boca de Rua é diferente: é dar voz a quem não tem. Nossa meta é conferir cidadania aos moradores de rua, por meio de um projeto de comunicação’, afirma Rosina Duarte que, juntamente com Clarinha Glock e Eliane Brum, criaram o Boca de Rua no ano de 2000. As jornalistas são responsáveis pela reuniões semanais de pauta e pela edição final do jornal. Boa parte da finalização consiste na transposição da linguagem oral para a escrita, já que a maioria dos 35 moradores de rua que produzem o conteúdo do jornal, é analfabeta. O tema de cada edição, as reportagens, fotografias e ilustrações são discutidos e produzidos pelos moradores de rua, que também escolheram o nome e o logotipo do jornal.

         A experiência do Boca de Rua permite, assim, lembrar uma faceta pouco discutida a respeito dos moradores de rua: a sua exclusão cultural. ‘A exclusão cultural e a material não devem ser concebidas de modo isolado, pois são simultâneas. Buscar a integração social dos moradores de rua fornecendo-lhes apenas a alternativa para a sobrevivência econômica ou comida e abrigo é importante, porém insuficiente. Essas pessoas procuram, como quaisquer outras, um sentido para a sua existência e só pomeio da cultura é que essa busca se faz possível’, afirma a antropóloga Cláudia Magni, da Universidade de Santa Cruz do Sul (RS)”.

         É sobre essa experiência que o filme “De Olhos Abertos”, da diretora e roteirista Charlotte Dafol, trata em seus 112 minutos. Lançado pela Agência Livre para Informação Cidadania e Educação (ALICE), o filme conta a história dos quase 20 anos do jornal Boca de Rua. O filme já foi indicado em diversos festivais pelo mundo, e, recentemente, o documentário foi selecionado para o Hollywood Independent Filmmaker Awards, um festival de produtores independentes realizado em Hollywood, nos Estados Unidos (https://www.brasildefators.com.br/2021/01/11/documentario-sobre-jornal-boca-de-rua-e-selecionado-em-festival-de-hollywood?fbclid=IwAR2ZjLiFbfzRguZpzUbdA69VBSdk92dswlBcOeaRhUYbwJytX-OfuaJQGZQ).

         Eis aí o horizonte de verdadeira inclusão e de protagonismo como condição para engajar, para além do empreendimento, a verdadeira emancipação desses sujeitos como titulares de sua própria interpretação da vida e da realidade. Sempre me impressionou e me mobilizou nesse sentido, a disponibilidade de minha colega de UnB a professora, hoje aposentada e notável escritora (por todos menciono seus livros Perdão África Perdão: Jornalismo Peregrina Entre os Cinco Continente; Crônica do Salário Mínimo; Além do Silêncio: Peregrinação Ecumênica por Mosteiros da Europa;  Memória e Libertação), Arcelina Helena Públio Dias, atualmente entre seus retiros espirituais em mosteiros do mundo ou em Vila Boa de Goyaz, ou Goiás Velho, mas que na universidade e nos movimentos populares, desenvolveu projetos de formação em jornalismo comunitário.

         Leia-se, a respeito o seu paradigmático texto O jornalismo comunitário como instrumento de mobilização social e gerador de renda para desempregados Uma experiência na formação de jornalistas populares (https://web.archive.org/web/20060502102245/http://www.eca.usp.br/nucleos/nce/pdf/019.pdf).

         Para Arcelina, Revistas de rua no mundo lutam contra a exclusão. Revistas e jornais voltados para os problemas dos excluídos podem ser encontrados em quase todas as metrópoles do primeiro mundo. Semanais ou mensais, esses periódicos são vendidos pelas ruas, bares e metrôs, por desempregados, organizados em associações, o que lhes garantem, como renda, no mínimo, metade do valor de cada exemplar. A tiragem ultrapassa, na maioria das vezes, cem mil exemplares. O Street News, de Nova Iorque, e o Big Issue, de Londres, chegam a tirar meio milhão”. Ela participou ativamente, em Brasília, do surgimento, em final de 1997, da primeira revista pela inclusão social, vendida na rua por desempregados: NÓS – resultado de um curso de formação de jornalistas comunitários.

         Penso que esse será um caminho indeclinável para Traços. Realizar rotineiramente o que há pouco celebrou como se fora um tesouro na ponta do arco-íris: “Traços tem primeira Porta-Voz da Cultura a iniciar uma graduação”, trazendo a história de Priscila do Carmo, que sonha em ser juíza de Família”:

         “A Revista Traços começou o ano com uma grande notícia para o time de Social da publicação, que há três anos mantém de pé o projeto de inclusão social de pessoas em situação de rua ou extrema vulnerabilidade. Com base na geração de renda e autonomia, a iniciativa oferece aos Porta-Vozes da Cultura, os vendedores da Traços, setenta por cento do valor de capa de cada exemplar. E foi assim que a Porta-Voz Priscila do Carmo Limoeiro, 29 anos, conseguiu se planejar para estudar, fazer a prova do ENEM e garantir, este ano, o ingresso na graduação em Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). As aulas começaram no dia 12 de fevereiro, mas Priscila já tem planos e sonhos a longo prazo: quer ser juíza de Vara de Família”.

         Priscila costuma circular em meu território da Asa Norte e da UnB e é dela, prioritariamente, que recebo edições atualizadas de minha coleção de Traços. E mais de uma vez precisei mediar com gerentes e proprietários o seu direito e a importância de circular entre as mesas de seus estabelecimentos para exercitar o seu papel de porta-voz de um projeto cultural que impulsiona objetivos de inclusão e de circulação cultural para fazer pulsar a cidade. Fazer valer a sua engajada proposta editorial: “A proposta de Traços rompe com o traçado racionalista de Brasília, desafia a burocracia, o oficial. Escancara com a tensão entre o Plano Piloto (centro histórico) e as quebradas. E dessa tensão, desse conflito, nasce a arte, brota a criatividade, germina a lucidez de tantos artistas, consagrados e iniciantes. Todos têm vez e voz em Traços”.

         A foto de Priscila, está estampada nesse número especial de Traços, posto que ela não seja a sua homônima das catacumbas em que se escondessem os primeiros cristãos na ainda clandestinidade romana. Com a sua 27 outras estampas aparecem na edição, num painel de “alguns dos porta-vozes da revista Traços”, entre as 300 pessoas que “ao longo dos primeiros cinco anos da publicação” foram recebidas no projeto. Todos eles, e todos os que foram atendidos no projeto, têm seus nomes impressos na edição comemorativa, na consideração dos editores que esperam “que gostem do passeio por essa história que, agora, já não é mais ó nossa”, porque, eles afirmam, “a Traços é da gente!”. Do mesmo modo, há registro remissivo dos “artistas, espaços e iniciativas culturais que passaram por nossas páginas nos últimos cinco anos”.

         Vislumbro nesse projeto aquela dimensão discursiva que inseri como argumento ao participar do projeto Feirinha do Quadrado (https://www.feirinhadoquadrado.com.br/) quando convidado por sua coordenadora Carolina Nogueira para participar de uma live abrindo a sessão de debates do projeto, para discutir o tema Quem tem direito a Brasília? Tal como se pode ver na página, a descrição da proposta estava assim orientada: “No primeiro debate, a Feirinha do Quadrado 2020 tem a alegria de receber o ex-reitor da UnB José Geraldo de Sousa Júnior, ideólogo do Direito Achado na Rua. Ele discute conosco e com Luísa Porfírio e Guilherme Black, da ONG No Setor, como o direito à moradia, à livre circulação e ao lazer é distribuído na cidade de Brasília. Pessoas que moram na rua, vendedores ambulantes, pessoas que não moram no Plano Piloto: quem tem direito a Brasília? Em que contextos os espaços urbanos são apropriados de maneira real, para além de eventos temporários?” (https://quadradobrasilia.com.br/feiras/os-debates-da-nossa-vida-parte-1/?fbclid=IwAR2AqzFPfz-4W2QXTrUlkblkqDbbCFWhk_WaLcfnlZJQJFkwaA9pWlTpclE).

         Ao fim e ao cabo, procurei, como se pode ver em minas locuções na live,  recuperar o sentido de polis que o social reivindica para o projeto de Brasília, e que orienta a ação e o discurso sobre a cidade, na disputa entre consumo e cidadania, e que precisa ir além da civitas e da urbs, a cidade bela e funcional, pensada no projeto e usufruída por sua elite descendente dos pioneiros e com sensível tensão com os descendentes dos candangos, e inserir na interpretação da cidade o lugar que só a história de protagonismos pode inscrever, para a instaurar como polis (ver, em adição, minha coluna Lido para Você, publicada no Jornal Estado de Direito (https://estadodedireito.com.br/a-rua-de-todo-mundo/).

         Número especial, o Sumário da edição é, necessariamente, um revival (está dicionarizado, pelo menos no Houaiss). Renascimento e ressurreição. Traz uma matéria de cada ano e, naturalmente, do ano 5, tudo embalado com muita arte, arrojo gráfico e ensaios, prosa, verso, fotografia. Entre elas de Luis Humberto. Desse mestre da fotografia, eu já disse, também em minha Coluna Lido para Você: “retenho a lição do duplo olhar intimista, para o dentro e para o fora (HUMBERO, Luis. Do Lado de Fora da Minha Janela. Do Lado de Dentro da Minha Porta. Brasília: tempo d’imagem, 2010)” (https://estadodedireito.com.br/retratofalado/).

         Assim esse número especial de Traços de tantas linhas que se desenrolam para tantos enredamentos e que fecha a edição como uma espécie de profecia tão bem exibida pela querida Maria Maia: “vivemos face a face sem disfarce”.

 

José Geraldo de Sousa Junior é Articulista do Estado de Direito, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestrado em Direito pela Universidade de Brasília (1981) e doutorado em Direito (Direito, Estado e Constituição) pela Faculdade de Direito da UnB (2008). Ex- Reitor da Universidade de Brasília, período 2008-2012, é Membro de Associação Corporativa – Ordem dos Advogados do Brasil,  Professor Titular, da Universidade de Brasília,  Coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua

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