domingo, 20 de dezembro de 2020

Uma outra carta: Do Taller Sociología de la Imagen – Invierno 2019; Do olhar e dos beijos; Do Sabbat de Yule ou Litha – Equinócios Inverno ou Verão

 


Coimbra, Portugal, 20 de dezembro de 2020

Imagem 1 - Participantes do Taller de Invierno 2019 – Na Iglesia de Carabuco (Fonte: Grupo Jallalla) 

Para começar, parece que no início das minhas cartas gosto sempre de escrever: Prezadas/os, e bem... Hoje, farei diferente. Já comecei.

Não vou falar do tempo que passei sem dar notícias e que fiz o José Geraldo esperar. Sorte a minha em poder contar com uma mulher muito querida como aliada, que deve convencê-lo, eventualmente, de ainda resguardar alguma estima e confiança por mim.

Como as/os modernistas de 1922; Sei o que eu não quero – pelo menos, eu acho que sei. Então, começarei falando sobre o que NÃO pretendo fazer; Quase como no Manifesto Antropofágico: "Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. [...] Em comunicação com o solo. [...] A magia e a vida"; Coisas que NÃO vou fazer, porque quero:

– Escrever em um formato restrito e acadêmico;

Para isso, já me basta a tese e, realmente, essa daí já me faz passar por alguns maus bocados. Neste momento, não me interessa “[o] lado doutor, o lado citações, o lado autores conhecidos [...]”, como diz Oswald de Andrade, no Manifesto DA POESIA PAU – BRASIL (1); Mesmo usando-me dele para falar que não quero citar autoras/es.

“Apenas brasileiros[as] de nossa época. [...] Práticos[as]. Experimentais. Poetas. [...] Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica.” (Andrade, 1924). Aqui, por favor e por amor, sem especialismos. É uma diversão, um prazer.

O que me interessa são fatos, e fatos, como disse Oswald, são os locais de existência da poesia. O que conversa na minha interpretação muito bem com o que Silvia Cusicanqui anuncia, tanto nos seus livros como, pessoalmente, no seu Taller Sociología de la Imagen – Invierno 2019, para as suas participantes – e eu, de maneira privilegiada, era uma delas.

Tudo é poesia e astrologia, ela diz. Temos que olhar, observar e aprender com o índio, astrólogo-poeta. Saber semear nossa comida – material e espiritual; Manual e intelectualmente.

“Indio, astrólogo, poeta que sabe del ruedo del sol y de la luna, eclipse, estrellas, cometas y hora, domingo, mes y año y de los cuatro vientos para sembrar la comida, desde antiguo.” (Cusicanqui, 2015: p. 209) Baseada na imagem de Waman Puma.

E o que comemos? Hoje, principalmente, comemos símbolos bem indigestos. Meu palpite é que nosso prato principal é feito de propagandas do Facebook e do YouTube, com calda de "tsunami de imagens" (Mondzain, 2012), do Instagram, e, de sobremesa, talvez uma dança no TikTok. Nosso cardápio anda, pelo menos para mim que sou mais analógica, bem mal...

Como disse a filósofa Marie José Mondzain: “Encontro muitas pessoas que adoram ser afogadas pelas imagens e até pelas palavras. Elas se esquecem de que, ao contrário, as imagens e as palavras, juntas, deveriam nos ajudar a não nos afogar” (2012: p. 142).

Portanto, as imagens e as palavras até poderiam ser ilhas que nos salvam e nos confortam – mesmo que as palavras, por vezes, mais encubram do que desvelem. Mas, atualmente, a maioria delas (imagens e palavras, que nem sempre andam juntas), nos afogam e paralisam. Dão medo. E quando temos medo, não processamos nada; Não nos restam ações, nem pensamentos, nem palavras. Ficamos reativas/os.
 
Digo tudo isso para arrodear e fugir do que foi prometido: Falar da minha experiência na Bolívia, em La Paz, ao ter participado, ao longo de um mês, do curso de Silvia Cusicanqui. Prometi compartilhar um pouco da minha experiência/aprendizado no Colectivx Ch'ixi (2), uma construção coletiva/comunitária da qual Cusicanqui faz parte, e falar um pouco sobre El Tambo – espaço físico onde ocorreram nossas aulas e sede do Colectivx. 

Entretanto, creio que terei de explicar melhor esse contexto rico em um outro momento. Não quero fazê-lo aqui. O que quero fazer é falar/escrever sobre uma das questões principais teórico-práticas do curso; O grandioso e difícil trabalho de saber/lapidar o olhar. Continuo com Oswald: “Contra o gabinetismo, a prática culta da vida [...] contra a cópia, pela invenção e pela surpresa. Uma nova perspectiva. Ver com olhos livres”. Olhar o que se está olhando – perceber, questionar o motivo pelo qual se vê; Desfamiliarizar o olhar; Desnaturalizá-lo. Começar a realizar uma investigação histórica sobre o que, como e porquê se olha. Questionar a prática da representação que transforma o mundo em objeto; A imagem em fetiche.

Em um dos seus exercícios, Silvia propôs-nos, como técnica, o treinamento do olhar. Sairíamos à rua à procura de descrever, a partir da linguagem escrita (um pequeno texto), uma cena não verbal baseada em gestos corporais que mereceriam nossa atenção. 

Aplicaríamos nossa olhada periférica e o olhar vagabundo, deveríamos deixar-nos vaguear até sermos captadas por algo “digno de ser narrado”.

Seríamos voyeurs – aquela/e que vê, sem participar. 

E é sobre isso que quero compartilhar. Sobre o exercício que entreguei. Sobre o que olhei e o que escrevi. Sobre minha presença. Pois, ao olhar, percebemos que somos olhadas. Percebemos o efeito do "ojo intruso". E, começamos a nos perceber, por meio da/o outrx. 

Abaixo segue o texto que apresentei à Silvia para, após leitura, concluir meu pensamento:

Taller Sociología de la Imagen – 2019 (invierno)
Profa. Silvia Rivera Cusicanqui

Vannessa Alves Carneiro; 11/07/2019 – La Paz, Bolívia
Revisado 14/11/2020

Imagem 2 - Sob a Joyeria Crystal (Fonte: Meu arquivo) 

Ejercicio I – Mirada y comunicación no verbal

Era uma manhã, ensolarada, de quarta-feira, em El Alto, La Paz, Bolívia. Estranhava tudo: As mil casas pequenas cor de montanha, a própria montanha com ponta de gelo, las casitas de los brujos, os cenários montados no meio da grande praça para tirar as fotos de família impressas na hora – com direito a llamacitas vivas y palomas blancas pintadas na paisagem do fundo fotográfico. Especialmente, estranhava o clima. Ao desembarcar do teleférico urbano mais alto e extenso do mundo, na estación 16 de Julio/Jach'A Qhathu, senti um pouco mais de frio. Disseram-me: “- É claro! É El Alto”. Estamos a 4.150 m de altitude. Dentro de uma paisagem distante, para mim, totalmente estranha, onde era-me tudo menos familiar: Língua, comidas, pessoas, vestimentas, las mantas y aguayos, el humo y las cholas. Entrando, sentindo-me desconfortável e perdida, com resquícios de mal de altura, dentro daquele caos funcional – onde quase tudo é vendido e exposto; Em tendas, prateleiras ou sobre panos junto ao chão. Ao mesmo tempo em que passam o lixeiro, as pessoas, os cães e mais pessoas.

 
Imagem 3 - Em El Alto; Las casitas de los brujos (Fonte: Meu arquivo) 

Processando, ainda, uma situação incômoda que acabei de vivenciar, quando, denunciada por meu corpo – minha fala, minha roupa e minha cara –, ao perguntar o preço de uma pilha e me recusar a comprar dando “gracias”, saí com a fala do vendedor imitando-me, em tom zombeteiro, e fazendo uma careta: “- Gracias”; Ele retruca. Sentindo meu ego ferido, deslocada, bombardeada pelo excesso de informação visual: Vende-se, compra-se, ouro, habitaciones con wifi, dentista; Exatamente, na esquina de uma encruzilhada, caí-me, como se caísse do céu, protegidos sob a placa “Joyeria Crystal”, beijando-se, infinitamente, dois jovens adolescentes: Olhos fechados, tão abraçados, tão agarrados, tão escondidos.

Paro, observo. A cena mexe comigo. Vejo o beijo (dado num canto, atrás de una tienda verde, que os protege e ao mesmo tempo os esconde da multidão que passa acelerada e não para como eles). Sincronizados estão; Pelos seus ritmos e suas jaquetas de couro pretas. Ela ligeiramente mais alta que ele, ele com a mão envolvendo a cintura dela, ela com a mão tocando no rosto dele. E o beijo eternooo, longoo, entregue. Imediatamente, reconheço tudo: Encruzilhada (el cruce) y el bejo. De deslocada do meu localismo, sou retida pela memória e bruscamente familiarizada. Recordo das diversas encruzilhadas, como aquelas, em que deixei meus ebós; Para amor, para proteção, como forma de zelo e cuidado com meus guias, pombas-gira, cigana, exus, meus protetores. Encruzilhadas onde habitam o povo da noite, guardiões dos portais, do axé, mensageiros e cumpridores da lei. Os quais peço, quase a todo tempo, proteção. Onde se entrega, entre outras coisas, vela vermelha e preta, cachaça e fumo, para exu homem, e cidra, cigarrilha e rosas vermelhas para exu mulher.

                                          Imagem 4 - Em El Alto; Encruzilhadas (Fonte: Meu arquivo) 

E o beijo?! Continuava, intermitente. Como disse, era lugar de passagem. Eu tinha que passar. Todos estavam passando. Não pude parar. Resguardados estavam eles, não eu. Passei, mas voltei – uma, duas e três vezes – até eles desaparecerem. Pelo que vi, o fôlego parecia ser o mesmo. Repito: Intermitente. Pensei mil hipóteses: Seriam namorados? Se sim, namorariam escondido? Estariam fugindo? Do que? De quem? Seria uma despedida ou um reencontro? Não parecia se tratar de um parar súbito, de uma eventual demonstração de carinho entre parejas. Aquela cena, nitidamente, só acontecia quando o tempo se perde e se tem tudo o que deseja nas mãos e, literalmente, bem diante de si. 

Minha memória ataca novamente e lembro-me de uma primeira paixão. Para nós, o tempo não representava nada. Consequências, causas e efeitos. Nada era pensado, só sentido. Só o instante, o beijo, valia. E, como se passasse por um portal, fui e voltei décadas, compartilhando, como cúmplice, o mesmo segredo daquela sensação há muito experimentada. O segredo de saber o que é ter o pleno desejo saciado, atendido. Essa sensação tão bem conhecida, mas, agora, perdida em um tempo longínquo. Pergunto-me será que um dia voltarei a senti-la? Ou essa sensação de totalidade é digna somente de um tempo/espaço específico que não volta? De súbito, retorno do meu conflito amigo e lembro-me do descontínuo conforto (ou contínuo desconforto) com a atual paisagem.


Imagem 5 - Cenários fotográficos: Eu e a lhama (Fonte: Meu arquivo) 

 Imagem 6 - Sessão de fim de curso; Compartindo imagens e comidas (Fonte: Grupo Jallalla

Imagem 7 - Subindo o serro de Tuturasi; Rituais/Pedindo permissão de passagem:"La mesa negra(Fonte: Meu arquivo) 

Ao reler esse exercício de uma página, contemplei uma certa integração dos seis sentidos e revi a minha própria construção subjetiva e cognoscente. Ao olhar o casal de enamorados, acessei minhas memórias familiares, sensações e sentimentos profundos que não entrava em contato. E isso, pode-se dizer, que foi uma espécie de catarse do que significou a minha vivência na Bolívia: Esse olhar questionador, que ao se interessar pela/o outra/o, fala mais de mim e para mim, em um denso momento de autoreencontro. 

É só por meio do autoconhecimento e do contato com nossas feridas, aquelas que não acessamos, que podemos nos desconstruir e nos reescrever. E isso, não é um exercício individual, é coletivo. Necessitamos sempre da/o outra/o; Da relação.

Não pude deixar de notar como a minha vida mudou de julho de 2019 para cá. 

Muitas pessoas lindas cruzaram o meu caminho; Na Bolívia, como a própia Sílvia, a Bea e sua família (a Nora e a Sumaya), o Ivan, o Marco Arnez, a Elsa, a Catalina, a Paula, a Meli, a Ana, a Yanette, a Lu, a Viole e todas as meninas do Taller Video Documental – com as quais criamos, juntas, um especial curta-metragem que fala de festa/alegria e de resistência/luta, "Do dia 16 de Julho, dia de La Paz", em um encontro a partir de "16 miradas"https://www.facebook.com/malyevadas/videos/526592538077642/; E as meninas e os meninos do Wak’as y Lenguajes de la Pacha: Ritualidad, memoria y reconexión con la vida, com as/os quais fui à Waka ancestral Jach’a Tuturasi, em cima do Lago Titicaca (Ancoraimes, província de Omasuyos), subindo a pé 4.500 metros de altura;

No Brasil, a Renata, a Guiga, o Mateus, a Nat, a Helen, o Leandro, a Fabi, a Alexandra, a Martinha, a Eliane, o Sérgio, a Lúcia, as Leilas, a Edna, a Lilian, a Lourdes, o Wlad, a Mari, o Max, a Lu e outras tantas pessoas incríveis que reconheci, em especial as crianças com as quais desenvolvi laços de afeto e que fizeram parte desse grande encontro que foi, para mim, voltar à minha cidade natal, Brasília, para a pesquisa de campo na escola Comunidade de Aprendizagem do Paranoá (CAP). E, no meio desse caminho, o estudo veio acompanhado de um novo amor que me fez ressignificar muitos questionamentos e dores – e que se transformou em coisas distintas ao longo do seu processo. 

Engraçado como pensamos, por vezes, estar anestesiadas/os e vem a vida e surpreende. Sempre; Para o bem ou mal. Sempre com uma lição e aprendizado. Porque, como diz Cusicanqui, a experiência do conhecimento vivido nos escreve (e é escrita nas nossas peles, adendo meu). Se esquecermos dessas experiências, que são formas de conhecimento, somos tábuas rasas. Não se pode esquecer quem se é e de onde se veio. E foi na Bolívia, com suas multidimensões, que senti as minhas/nossas raízes de Latinoamérica.

2020 foi um ano muito difícil, coletivamente falando. De muitos desafios, perdas e dores; Mas, também, para quem conseguiu (ou teve a oportunidade) de trazer luz/consciência para a inconsciência, foi um ano de desvelamentos e de contatos íntimos com nosso ser e as nossas sombras. E é só no útero, no completo vazio, na escuridão, que há gestação.  

Neste final de ano, cuja virada de ciclo ser dará, principalmente, pelo solstício de amanhã, segunda-feira, dia 21/12/20; Inverno ou verão, Sabbat de Yule ou Litha, tempo de nascimento ou morte simbólica; De rituais. Ocorrerá o que as/os astronômas/os estão chamando de “a grande conjunção planetária". Júpiter e Saturno estarão tão próximos um do outro que poderão criar uma ilusão de ótica, vista a olho nu, de “planeta duplo” ou justaposto – Ch'ixi. Essa observação só foi possível há quase 800 anos, na Idade Média (em 1226) (3). Marca-se, assim, o início da nova era de aquário. Uma era do coletivo e do comunitário; Do conhecimento e da nova consciência; Era do sair de si. Não importa; O que eu desejo para mim e para vocês (especialmente às/aos amigas/os que mandei esta carta), é que estejam ao lado das pessoas realmente queridas e que importam neste final/início de ciclo espiralado. Ao lado, quero dizer, em contato, perto ou, em tempos de corona, a distância - não importa metros, kms, cidades, países, continentes. O importante é saber que se têm pessoas que se ama e que se quer ver bem, e que o cuidado delas é o que faz com que a vida esteja no centro (Reyes; Pascual; Herrero; Gascó, 2019).  

O privilégio de ter 43 anos de casados, apaixonados, como Nair e José Geraldo, é para poucos. Agora, redescobrir, como foi o meu caso, que a paixão, o beijo e O AMOR vai além de parejas e é um sentimento que extravasa e que ALIMENTA. Uma sensação compartida que nutre ALMAS próximas por afinidade; Famílias, amigas/os, irmãs/ãos e mais velhas/os. É o que eu desejo à você e a todas/todos, nesta virada. Reconhecer e ter o poder de fazer magia, de verbalizar esse afeto e de se comprometer com ele; São atos imprescindíveis e é o que sustenta a construção do nosso eixo pessoal. 

E o desejo, que vai além da imagem superficial e se aprofunda, faz parte da microfísica do poder, é uma “[...] rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir” (Foucault, 2009: p. 8). 

E o meu desejo, como diz a minha musa Bethânia, "faz subir marés de sal e sortilégio".

Vannessa Carneiro

Doutoranda do Programa de Doutoramento em Direitos Humanos nas Sociedades Contemporâneas – Centro de Estudos Sociais – Universidade de Coimbra
Bolsista da CAPES – Brasil
Membro do Grupo de Pesquisa do CNPq "Direitos Humanos, Educação, Mediação e Movimentos Sociais”

Notas de rodapé:

1. Disponível em: https://www.ufrgs.br/cdrom/oandrade/oandrade.pdf. Acessado em Dezembro de 2020.

2. Disponível em: http://colectivachixi.blogspot.com/. Acessado em Dezembro de 2020.


Referências bibliográficas:

Cusicanqui, S. R. (2015). Sociología de la imagen: Miradas chíxi desde la historia andina. Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina: Tinta Limón.

Foucault, M. (2009). Verdade e Poder. Em M. Foucault, & Graal (Ed.), Microfísica do Poder (R. Machado, Trad., pp. 1-14). Rio de Janeiro, Brasil.

Mondzain, M. J. (2012). O que você vê? Uma conversa filosófica. (M. Haddad, Trad.) Belo Horizonte, Brasil: Autêntica.

Reyes, M. G; Pascual, M.; Herrero, Y; Gascó, E. (2019). La vida en el centro: Voces y relatos ecofeministas. Madrid, Espanha: Libros en Acción.


Um comentário:

  1. Adorei ler esta pessoa, que conheci ainda em 2019. Pelas imagens, fluidez e velocidade do texto, como algo descendo das montanhas, como se fosse água, neve, consciência ou amor.

    Beijo, Mateus.

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