“A título de reflexão geral, se os povos do Chile pretendem ter uma nova constituição a partir de uma assembleia constituinte, não podem negligenciar esses três processos sul-americanos [do Equador, Bolívia e Venezuela], com fortalezas e fraquezas, que apenas evidenciam que não basta escrever uma constituição que contenha múltiplos direitos, se não for acompanhada pela mudança das estruturas de poder mercantis, coloniais e patriarcais do próprio Estado”, alerta Andrés Kogan Valderrama, sociólogo e editor do Observatório Plurinacional de Águas no Chile. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
No que diz respeito à continuidade das mobilizações no Chile, iniciou-se um processo de assembleias autoconvocadas e abertas, onde a população começou a estabelecer as bases para dar início a um processo constituinte inédito, que restaurará a dignidade de um povo que teve que lidar por mais de 40 anos com uma Carta Magna de origem espúria, durante a ditadura de Pinochet, e que tem a particularidade de ter sido ajustada à ideologia neoliberal, o que foi visto no mundo todo como um verdadeiro experimento político, implementado através de uma doutrina do choque.
É assim que os primeiros resultados dessas assembleias manifestam demandas prioritárias que buscam recuperar e expandir direitos de todos os tipos, privatizados e negados na constituição de 1980. É o caso de um novo sistema previdenciário, proteção ambiental, nacionalização dos recursos naturais, aumento do salário mínimo, educação pública gratuita, sistema de saúde único, acesso à moradia, impostos para os mais ricos, igualdade de gênero e abordagem feminista nas políticas públicas, democracia participativa e vinculante, direitos dos migrantes, reconhecimento dos povos indígenas e realização de uma assembleia constituinte.
É essa última demanda, a realização de uma assembleia constituinte, que pode ser vista como a pedra no sapato dos grupos mais conservadores do país, vista por eles como uma ameaça a uma democracia de mercado que se aprofundou, nos últimos 30 anos, não apenas graças à direita, mas também graças a uma esquerda que acreditou na ideia do fim da história, como aconteceu com a ex-Concertación, que governou entre 1990-2009, através do aprofundamento e administração do modelo econômico existente.
Não surpreende, portanto, que enquanto países como Bolívia, Equador e Venezuela realizavam profundos processos constitucionais, a esquerda de mercado legitimava a constituição de Pinochet, com a ratificação do ex-presidente Ricardo Lagos, em 2005. Além de destroçar aqueles processos, tratando-os como populistas, enquanto no Chile se fortalecia uma instituição que privatizou a educação, a saúde, a água, as estradas, os meios de comunicação, os portos, etc.
Por outro lado, somente com a chegada da ex-Nova Maioria ao poder, em 2014 (ex-partidos da Concertación junto com o Partido Comunista), houve um giro tímido ao progressismo, em sintonia com o que estava acontecendo na região. Não obstante, a discussão constitucional estava em segundo plano, reduzida a diálogos cidadãos não vinculantes e sem capacidade de interferência política.
Daí a importância de abrir um inédito processo constituinte no Chile, mas que se conecte com a experiência dos países vizinhos, que têm muito a contribuir com o que pode eventualmente acontecer, não apenas no que diz respeito aos elementos participativos que levaram à redação das novas constituições, mas também aos elementos autoritários dos governos progressistas realmente existentes naqueles países mencionados.
Para refletir sobre isso, o que foi apontado por pessoas como Alberto Acosta, do Equador, Raúl Prada Alcoreza, da Bolívia, e Edgardo Lander, da Venezuela, pode nos ajudar a abordar esses processos em uma chave sul-americana, mas em uma perspectiva crítica. Ou seja, indo além dos discursos ideológicos reducionistas, que estão com ou contra esses processos de maneira absoluta, que nada mais fazem do que reproduzir lógicas binárias na política.
No caso do economista Alberto Acosta, presidente da Assembleia Constituinte do Equador em 2008, afirmou que, embora a Constituição de Montecristi tenha sido a primeira no mundo a incorporar princípios quéchua, como o Bem Viver ou Sumak Kawsay, seu problema foi a implementação, tanto durante o governo de Rafael Correa como de Lenin Moreno, subordinados a políticas desenvolvimentistas, focadas na produção e consumo de mercadorias. O mesmo acontece com os Direitos da Natureza, que também podem ser vistos como uma virada civilizatória, tão necessária nos dias de hoje, mas que na prática não só não foram respeitados, como também a mineração e o extrativismo de petróleo foram aprofundados naquele país.
Portanto, Acosta propõe que a constituição seja entendida como uma caixa de ferramentas para os cidadãos, onde seja esta quem deva fazer valer o respeito aos direitos constantemente. Em outras palavras, o processo constitucional não termina quando se escreve e aprova a Carta Magna, ao contrário, é apenas o começo de um caminho de vida comum sem fim, como é a democracia.
Sobre a Bolívia, o que foi levantado pelo sociólogo Raúl Prada Alcoreza, que participou da elaboração da Constituição da Bolívia, aprovada em 2009, tem uma perspectiva semelhante à de Acosta, mas vai além em suas críticas. Embora reivindique também a presença no nível constitucional da noção aimará do Viver Bem ou Suma Qamaña, a Lei dos Direitos da Mãe Terra e a construção de um estado de caráter plurinacional, o problema não é apenas em relação ao extrativismo levado ao extremo por Evo Morales, mas a própria reprodução de um fetichismo jurídico, onde o direito acaba sendo o próprio sentido do Estado.
Em outras palavras, o que aconteceu na Bolívia é que transformou sua constituição em um fetiche, onde se passou de um conteúdo liberal a um conteúdo socialista, com características indígenas, que renuncia à mobilização social, esta entendida como potência, para dar lugar a uma burocracia legal, onde a figura do líder autoritário se apropria de um discurso que deriva dos povos.
Por último, o caso da Venezuela, talvez o mais dramático dos três, levantado pelo sociólogo Edgardo Lander. Referindo-se ao chamado giro decolonial, aponta-nos que a constituição de 1999 marcou o início dos ciclos progressistas posteriores na região. Embora a constituição não tivesse fortemente elementos indígenas, como nos casos do Equador e da Bolívia, a ideia de construir um Estado comunal, centrado na autogestão e na democracia participativa, em um contexto regional, onde o neoliberalismo se expandiu através dos governos, foi revolucionária.
O problema, como bem diz Lander, é que o processo venezuelano ao longo do tempo nada mais fez do que aprofundar o rentismo do petróleo de décadas, através de um estado completamente autoritário, clientelista e corrupto, onde a militarização do país permitiu que fosse hipotecado 12,2% do território nacional, do chamado Arco Mineiro do Orinoco, que possui caráter totalmente ecocida e de violação dos direitos dos povos indígenas que ali vivem.
Da mesma forma, o personalismo excessivo, primeiro com Hugo Chávez, depois com Nicolás Maduro, lembra o pior dos socialismos reais do século XX, onde a concentração do poder político chegou ao extremo de ter que fazer uma nova assembleia constituinte, em 2017, feita sob medida para o atual governo, que não faz nada além de desacreditar o que foi feito em 1999 democraticamente e com participação plural do povo venezuelano.
A título de reflexão geral, se os povos do Chile pretendem ter uma nova constituição a partir de uma assembleia constituinte, não podem negligenciar esses três processos sul-americanos, com fortalezas e fraquezas, que apenas evidenciam que não basta escrever uma constituição que contenha múltiplos direitos, se não for acompanhada pela mudança das estruturas de poder mercantis, coloniais e patriarcais do próprio Estado. As constituições podem ter horizontes democráticos, comunitários, interculturais e participativos, mas, se não dispõem de mecanismos reais de intervenção cidadã para a sua execução, o fantasma do autoritarismo estatal está ao virar da esquina.
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