Direitos Humanos, Democracia, Paz e Progresso
terão se transformado em biombos para ocultar um mundo cada vez mais desigual,
violento e alienado? Mas como superá-los?
Por Boaventura de Sousa
Santos, 05/08/2018
Os seres humanos, ao contrário dos pássaros, voam com raízes. Parte das
raízes estão nos conceitos que herdamos para analisar ou avaliar o mundo em que
vivemos. Sem eles, o mundo pareceria caótico, uma incógnita perigosa, uma
ameaça desconhecida, uma jornada insondável.
Os conceitos nunca retratam exactamente as nossas vivências, até porque
estas são muito mais diversas e mutantes que as que servem de base aos
conceitos dominantes. Estes são, afinal, os conceitos que servem os interesses
dos grupos social, política, econômica e culturalmente dominantes, ainda que
matizados pelas modificações que lhes vão sendo introduzidas pelos grupos
sociais que resistem à dominação. Estes últimos nem sempre recorrem
exclusivamente a esses conceitos. Muitas vezes dispõem de outros que lhes são
mais próximos e verdadeiros, mas reservam-nos para consumo interno. No entanto,
no mundo de hoje, sulcado por tantos contactos, interações e conflitos, não
podem deixar de tomar em conta os conceitos dominantes, sob o risco de verem as
suas lutas ainda mais invisibilizadas ou mais cruelmente reprimidas. Por
exemplo, os povos indígenas e os camponeses não dispõem do conceito de meio
ambiente, porque este reflete uma cultura (e uma economia) que não é a deles.
Só uma cultura que separa em termos absolutos a sociedade da natureza, de modo
a pôr esta à disposição incondicional daquela, precisa de tal conceito para dar
conta das consequências potencialmente nefastas (para a sociedade) que de tal
separação podem resultar. Em suma, só uma cultura (e uma economia) que tende a
destruir o meio ambiente precisa do conceito de meio ambiente.
Em verdade, ser dominado ou subalterno significa antes de tudo não poder
definir a realidade em termos próprios, com base em conceitos que reflitam os
seus verdadeiros interesses e aspirações. Os conceitos, tal como as regras do
jogo, nunca são neutros e existem para consolidar os sistemas de poder, sejam
estes velhos ou novos. Há, no entanto, períodos em que os conceitos dominantes
parecem particularmente insatisfatórios ou imprecisos. São-lhes atribuídos com
igual convicção ou razoabilidade significados tão opostos, que, de tão ricos de
conteúdo, mais parecem conceitos vazios. Este não seria um problema de maior se
as sociedades pudessem facilmente substituir esses conceitos por outros mais
esclarecedores ou condizentes com as novas realidades. A verdade é que os
conceitos dominantes têm prazos de validade insondáveis, quer porque os grupos
dominantes têm interesse em mantê-los para disfarçar ou legitimar melhor a sua
dominação, quer porque os grupos sociais dominados ou subalternos não podem
correr o risco de deitar fora o bebê com a água do banho. Sobretudo quando
estão a perder, o medo mais paralisante é perder tudo. Penso que vivemos um
período com estas características. Paira sobre ele uma contingência que não é
resultado de nenhum empate entre forças antagônicas, longe disso. Mais parece
uma pausa à beira do abismo e a olhar para trás.
Os grupos dominantes nunca sentiram tanto poder nem nunca tiveram tão pouco
medo dos grupos dominados. A sua arrogância e ostentação não têm limites. No
entanto, têm um medo abissal do que ainda não controlam, uma apetência
desmedida por aquilo que ainda não possuem, um desejo incontido de prevenirem
todos os riscos e terem apólices contra todos eles. No fundo, suspeitam serem
menos definitivamente vencedores da história quanto pretendem, serem senhores
de um mundo que se pode virar contra eles a qualquer momento e de forma
caótica. Esta fragilidade perversa, que os corrói por dentro, fá-los temer pela
sua segurança como nunca, imaginam obsessivamente novos inimigos, e sentem
terror ao pensar que, depois de tanto inimigo vencido, são eles, afinal, o
inimigo que falta vencer.
Por sua vez, os grupos dominados nunca se sentiram tão derrotados quanto
hoje, as exclusões abissais de que são vítimas parecem mais permanentes do que
nunca, as suas reivindicações e lutas mais moderadas e defensivas são
silenciadas, trivializadas pela política do espectáculo e pelo espectáculo da
política, quando não envolvem riscos potencialmente fatais. E, no entanto, não
perdem o sentido fundo da dignidade que lhes permite saber que estão a ser
tratados indignamente e imerecidamente. Que melhores dias terão de vir. Não se
resignam, porque desistir pode ser-lhes fatal. Apenas sentem que as armas de
luta não estão calibradas ou não são renovadas há muito; sentem-se isolados,
injustiçados, carentes de aliados competentes e de solidariedade eficaz. Lutam com
os conceitos e as armas que têm mas, no fundo, não confiam nem nuns nem
noutras. Suspeitam que enquanto não tiverem confiança para criar outros
conceitos e inventar outras lutas correrão sempre o risco de serem inimigos de
si mesmos.
Tal como tudo o resto, os conceitos estão à beira do abismo e olham para
trás. Menciono, a título de exemplo, um deles: direitos humanos.
Nos últimos cinquenta anos os direitos humanos transformaram-se na
linguagem privilegiada da luta por uma sociedade melhor, mais justa, menos
desigual e excludente, mais pacífica. Tratados e convenções internacionais
existentes sobre os direitos humanos foram sendo fortalecidos por novos
compromissos no plano das relações internacionais e do direito constitucional,
ao mesmo tempo que o elenco dos direitos se foi ampliando de modo a abranger
injustiças ou discriminações anteriormente menos visíveis (direitos dos povos
indígenas e afro-descendentes, mulheres, LGBTI; e direitos ambientais,
culturais, etc.). Movimentos sociais e organizações não-governamentais foram-se
multiplicando ao ritmo das mobilizações de base e dos incentivos de
instituições multilaterais. Em pouco tempo, a linguagem dos direitos humanos
passou a ser a linguagem hegemônica da dignidade, uma linguagem consensual,
eventualmente criticável por não ser suficientemente ampla, mas nunca
impugnável por algum defeito de origem.
Claro que se foi denunciando a distância entre as declarações e as práticas
e a duplicidade de critérios na identificação das violações e nas reações
contra elas, mas nada disso abalou a hegemonia da nova literacia da convivência
humana. Cinquenta anos depois, qual é o balanço desta vitória? Vivemos hoje
numa sociedade mais justa, mais pacífica? Longe disso, a polarização social
entre ricos e pobres nunca foi tão grande, guerras novas, novíssimas,
regulares, irregulares, civis, internacionais continuaram a ser travadas, com orçamentos
militares imunes à austeridade, e a novidade é que morrem nelas cada vez menos
soldados e cada vez mais populações civis inocentes: homens, mulheres e,
sobretudo, crianças. Em consequência delas, do neoliberalismo global e dos
desastres ambientais, nunca como hoje tanta gente foi forçada a deslocar-se das
regiões ou dos países onde nasceu, nunca como hoje foi tão grave a crise
humanitária. Mais trágico ainda é o facto de muitas das atrocidades cometidas e
atentados contra o bem-estar das comunidades e dos povos terem sido perpetrados
em nome dos direitos humanos.
Claro que houve conquistas em muitas lutas, e muitos ativistas de direitos
humanos pagaram com a vida o preço da sua entrega generosa. Acaso eu não me
considerei e considero um ativista de direitos humanos? Acaso não escrevi
livros sobre as concepções contra-hegemônicas e interculturais de direitos
humanos? Apesar disso, e perante uma realidade cruel que só não salta aos olhos
dos hipócritas, não será tempo de repensar tudo de novo? Afinal, a vitória dos
direitos humanos foi uma vitória de quê e de quem? Foi a derrota de quê e de
quem? Terá sido coincidência que a hegemonia dos direitos humanos se acentuou
com a derrota histórica do socialismo simbolizada na queda do Muro de Berlim?
Se todos concordam com a bondade dos direitos humanos, ganham igualmente com
tal consenso tanto os grupos dominantes como os grupos dominados? Não terão
sido os direitos humanos uma armadilha para centrar as lutas em temas
setoriais, deixando intacta (ou até agravando) a dominação capitalista,
colonialista e patriarcal? Não se terá intensificado a linha abissal que separa
os humanos dos sub-humanos, sejam eles negros, mulheres, indígenas, muçulmanos,
refugiados, imigrantes indocumentados? Se a causa da dignidade humana, nobre em
si mesma, foi armadilhada pelos direitos humanos, não será tempo de desarmar a
armadilha e olhar para o futuro para além da repetição do presente?
Estas são perguntas fortes, perguntas que desestabilizam algumas das nossas
crenças mais enraizadas e das práticas que sinalizam o modo mais exigentemente
ético de sermos contemporâneos do nosso tempo. São perguntas fortes para as
quais apenas temos respostas fracas. E o mais trágico é que, com algumas
diferenças, o que acontece com os direitos humanos acontece com outros
conceitos igualmente consensuais. Por exemplo, democracia, paz, soberania,
multilateralismo, primado do direito, progresso. Todos estes conceitos sofrem o
mesmo processo de erosão, a mesma facilidade com que se deixam confundir com
práticas que os contradizem, a mesma fragilidade perante inimigos que os
sequestram, cooptam e transformam em instrumentos dóceis das formas mais
arbitrárias e repugnantes de dominação social. Tanta desumanidade e chauvinismo
em nome da defesa dos direitos humanos, tanto autoritarismo, desigualdade e
discriminação transformados em normal exercício da democracia, tanta violência
e apologia bélica para garantir a paz, tanta pilhagem colonialista dos recursos
naturais, humanos e financeiros dos países dependentes com o respeito
protocolar da soberania, tanta imposição unilateral e chantagem em nome do novo
multilateralismo, tanta fraude e abuso de poder sob a capa do respeito das
instituições e do cumprimento da lei, tanta destruição arbitrária da natureza e
da convivência social como preço inevitável do progresso!
Nada disto tem de ser inevitavelmente assim e para sempre. A mãe de toda
esta confusão, induzida por quem beneficia dela, de toda esta contingência
disfarçada de fatalismo, de toda esta paragem vertiginosa à beira do abismo
reside na erosão bem urdida, nos últimos cinquenta anos, da distinção entre ser
de esquerda e ser de direita, uma erosão levada a cabo com a cumplicidade de
quem mais seria prejudicado por ela. Foi por via dessa erosão que desapareceram
do nosso vocabulário político as lutas anti-capitalistas, anti-colonialistas,
anti-fascistas, anti-imperialistas. Concebeu-se como passado superado o que
afinal era o presente mais do que nunca determinado a ser futuro. Nisto
consistiu estar no abismo a olhar para trás, confiante que o passado do futuro
nada tem a ver com o futuro do passado. Esta a maior monstruosidade do tempo
presente.
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