sábado, 19 de maio de 2018

No Casarão, Portugal: linguagem e poesia

Coimbra, Portugal, 19 de maio de 2018.

Bem, hoje quero escrever. Implodi e quase explodi de tanta novidade.
 
Continuando com as cartas (quase-cartas) sobre minha experiência em Coimbra...
O tempo, finalmente, começa a melhorar, e a aquecer. As flores brotam por todas as esquinas. Em quase todos os lugares tem algum jardim. Graças a Deus, é primavera! Tão esperada, demorou tanto, mas, até que enfim veio.

Na minha varanda, hoje, tenho: alecrim, alfazemas, arruda, capim-limão, jasmim, tomilho, menta e até um morangueiro. Acho tão engraçado isso. Essa coisa da divisão de estações, que a gente aprende na escola, no Brasil, e que simplesmente não vê na realidade. Sinto uma saudade do sol e da seca dai. Amo muito meu planalto central. Só quando você sai é que você reconhece que muitas coisas não saem de você. É o seu pertencimento.  

Hoje quero fazer uma carta mais informal, sem tantas citações de autoras/es. Pelo menos, daquela forma acadêmica da última carta. Mas, no final, quero é continuar falando de poesia... Ou, simplesmente, falar/escrever.

Sábado passado, dia 12/5, fiz uma oficina muito interessante no CES (Centro de Estudos Sociais), chamada Curso de Escrita Criativa da/na Emigração, com a Professora Graça Capinha. A poesia experimental foi uma delícia de experimentar! Capinha, é ótima. Ela falava com uma aura verde ao seu redor. De cura. Reforçou o quanto a linguagem é a raiz do político. Disse que já nascemos gritando/comunicando algo. Falou que o objetivo da linguagem não é comunicar, mas também encobrir, impor relações de poder e esconder pensamentos. Não é colaborativa, é um dos mais fortes instrumentos de dominação.

Só há criação quando há criatividade. E a criatividade vem da liberdade! Quanto mais INCOMPREENSÍVEL, ILEGÍVEL, MELHOR (Etnopoética)! Pois, existem coisas que simplesmente nos escapam, são incomensuráveis e intraduzíveis. Vazios insolúveis.

“Quem se interessa por escrita, tem que deixar o sentido vir... temos que nos obrigar a nos livrarmos, a abdicarmos de nós mesmos”, disse Capinha. Tem que haver um momento de libertação. O espaço criativo é louco. O sentido sou eu quem crio. A subversividade impera.  

Muito engraçado. Para mim a linguagem sempre foi um desafio. Mais ainda a comunicação. Meus vazios, às vezes, são insolúveis mesmo. Pois meu corpo sempre falou antes de mim.

Uma vez vi o documentário Entreatos, de João Moreira Sales, que filmou a campanha para presidência do Lula, de 2002. Lula falou que uma das grandes sacadas (de marketing) foi quando “Duda” disse: “Em comunicação, o importante não é o que a gente diz, é como as pessoas compreendem o que a gente diz. ”

A construção do discurso não verbal precede o discurso (encarcerado). A imagem é fortíssima. Como criar empatia nessa dialética encobrimentos e descobrimentos?

Em um texto bem curtinho da Revista Crítica, de 1993,  Boaventura disse: “Quem descobre é descoberto. Se por qualquer razão esta reciprocidade é negada ou ocultada, o acto de descobrir, sem deixar de o ser, torna-se simultaneamente um ato de encobrir”. Ou seja, há sempre algo a mostrar e a esconder. O discurso é delineado por “procedimentos de exclusão”, interdição (quem é o sujeito que fala), separação e rejeição (razão e loucura), oposição (verdadeiro e falso) - A ordem do discurso, (Foucault, 2005, pp. 9-13). Nesse sentido, há sempre molduras e enquadramentos, como disse Butler, lembra?

A linguagem sempre tem um sentido, mesmo quando não tem sentido algum. E o importante não é o que você fala, mas talvez mais ainda como as pessoas te leem. Como recebem e interpretam a informação. (Em toda conversa há um emissor e receptor)

Isto é, em um primeiro momento, antes do discurso (linguagem verbal), devo ter a consciência de como os outros me leem. O que meu corpo fala sobre meu lugar. Mulher, branca, “jovem” (ou quase jovem, pois sempre me considero um pouco mais velha do que cronologicamente ainda sou), classe média, sis. Enfim, com muitos, inúmeros, privilégios, substanciados na minha imagem. Desde acesso a espaços como possibilidades de novas escolhas e descobertas.

Apenas reflexões... "food for thought"

Voltanto ao tema principal, escrito no título da carta inclusive: o Casarão.
Estamos finalizando uma série de Aulas Magistrais do Professor Boaventura de Sousa Santos. Todas elas são transmitidas ao vivo online. (ver aqui) A próxima, que será apresentada na sexta, dia 25/5, é: A arte e as Epistemologias do Sul: as linguagens da libertação.

Escrevi tudo isso para dizer que, após toda aula, temos um jantar com o Professor Boaventura no Casarão (um restaurante daqui). A comida não é o maior atrativo, na verdade, vamos lá para comer poesias e beber vinho.

Vou explicar melhor: todas as pessoas que vão às palestras estão convidadas. O restaurante fecha para gente. São diversas mesas. Começam a servir a entrada, o prato principal. Em um momento, as pessoas que vem pela primeira vez, precisam se apresentar: falar o nome, o que faz lá e seu interesse. Depois, começa o Sarau. Muitas declamações de poesias, recita quem quer. Em todas as línguas/idiomas. Tem também RAP e outras pessoas que levam violão, cantam e dançam.

Muito divertido.    

No primeiro jantar em que fui, declamei uma poesia autoral, de 2015, que fiz para uma disciplina coordenada pelo Prof. José Geraldo e pelo Escrivão. Fiquei bem feliz ao reler a “poesia” e ainda me identificar com alguns trechos (não todos, claro). Vou colocar aqui a parte que apresentei.

VERSOS LIVRES SOBRE O CENÁRIO INTERNACIONAL E OS DIREITOS HUMANOS

II – OS DIREITOS HUMANOS

Direitos Humanos
Conceito em disputa
O qual se reflete,
O qual se debruça,
Mas delineado por quem?
Pelo colonizador?

Para alguns são inerentes
À condição humana
Para outros são processos,
Provisórios, de luta,
Continua, assim, a reflexão:
Direitos Humanos
Conceito em disputa!

Onde há a força do direito
Há a força da lei?
Ou é a força
Do mais forte que vence?
Quem vence?

Segato observa,
Que o Estado, o direito,
não preza a justiça,
prefere a ordem,
A justiça ordinária
É falha
Como julgar três corpos?
– físico, espiritual e astral –
Só por meio
de uma perspectiva intercultural?
E professora, o que nos resta?
O Amor e a amizade,
relações subjetivadas.

Para mim, similar à Ortega y Gasset,
relações de acolhimento e de troca,
baseado no olhar, do alter,
é isso que importa.

Direitos Humanos,
Não são um fim em si,
Vão além do famoso
Direito a ter direitos...
Como diz Flores:
Falácia do positivismo,
do mercado e da globalização.

Direitos Humanos,
Luta de classes,
Luta de visões e opiniões,
Luta de foices...
Luta pela "verdade"...

Direitos Humanos,
Para Flores,
Direito à dignidade,
Representada pelo acesso aos bens,
Materiais e imateriais,
Que são conquistados.

Afinal,
Tenho direito, inerente, à vida,
Mas como essa pode ser vivida?
Apenas para sobreviver?
Com que condição,
Apenas pão?
Nem isso todos têm.

Como Ortega y Gasset alude:
Yo soy yo y mi circunstancia
Y si no la salvo a ella
No me salvo yo.”

Direitos Humanos
São contextualizados,
Circunstanciados,
E, possuem sentido, assim só.
Onde eu nasci,
De onde eu vim,
A cor da minha pele,
Meu gênero,
Minha herança familiar,
Minha identidade coletiva,
Tudo isso tem significado,
E não é só pra mim...
Tudo isso me coloca em um papel,
Domesticado,
Já escrito e delineado.
E pra perpassá-lo, só com mais luta!

E a bancada conservadora, astuta,
defende: Direitos Humanos
Só para humanos direitos!

Mas a conquista do meu direito,
Pode ser pessoal,
Mas é, essencialmente, coletiva
E perpassa todas/os
Porque eu, na minha subjetividade,
carrego a humanidade inteira.

Assim, realmente, sou mais eu...
Mas também sou o outro.
Aí sim, encontro-me
Aí sim, encontram-se
Os direitos humanos

Porque eu sou o mundo,
Eu sou mais eu e o mundo,
Porque, eu sou um universo em si,
e o mundo me contém
como universo
em si e em mim.

Realmente, relendo tudo, é uma poesia bem “acadêmica”. Digamos assim. Prefiro aquele que fala de sentimentos. Por isso, neste último jantar (ontem), apresentei uma poesia da Dodi Leal – aquela mulher trans maravilhosa que conheci ano passado. Abri seu livro “De trans pra frente”, de 2017. Escolhi uma poesia. Todo mundo gostou. E eu gosto muito do que ela escreve.

Seja poesia “de enfrentamento”....

POESIA TRAVADA, Dodi Leal

Se uma vez você tirou palavras
Não da minha boca, mas do meu âmago
Hoje eu te chamo: ouça a trava
minha poesia esfrego na tua cara.

Engole meu verso
Entupa com minha rima
Atormente com meu refrão
Te esgano no meu título.

Não queria ter tanta raiva,
Mas te dei de comer com minha colher
Não vês que estou linda, me abandonou.
agora engula minha poesia, sou mulher.

Seja poesia de amor....

NAMORO GAY, Dodi Leal

Menino doce,
Com você aprendi
A ser menino.

De forma menos sutil do que o Pablo Gentili fez quarta-feira passada, no Seminário Internacional “O Futuro das Ciências Sociais”, ao finalizar essa carta poderia até dizer: Marielle, presente! Marielle, vive! Inclusive, nas ruas de Coimbra. Dá para ver o stencil cor-de-rosa?

Mas, como é uma carta pessoal (não é isso?) – mesmo que o pessoal seja político –, o mais adequado é dizer que no meu ano, que termina/começa em 9/9, vai ter uma reviravolta. Meu ascendente da Revolução Solar vai sair de câncer (introspecção, emoção e intuição) para virgem (organização da vida). Eu, já virginiana e com vênus, marte e roda da fortuna em virgem! Ou seja, ano que vem vou estar impossivelmente burocrática/analítica/crítica/prática... Só com muitas doses de poesia para engolir a trava. Aconselho a vocês a, também, fazerem seus mapas astrais. Afinal, o que é conhecimento? E para QUEM serve esse conhecimento, hegemônico, “científico”, “neutro” e racional?

Para mim, neste momento, mais vale é implodir o discurso, falar a linguagem da loucura, da liberdade e das ausências, com a poesia e outras...
 

Vannessa Carneiro
Mestra em Direitos Humanos e Cidadania, Universidade de Brasília
Doutoranda no Programa Direitos Humanos nas Sociedades Contemporâneas, Centro de Estudos Sociais/Universidade de Coimbra
Bolsista da CAPES
 

4 comentários:

  1. Bela carta Vanessa. Dá para seguir a mirada de seu balcão, ornado de flores, e debruçar-se sobre essa Coimbra que encanta. Senti falta de um pouco de fado, embora a linguagem e a poesia sejam puro afago. Voltei ao Casarão agora levado pela sua narrativa, saudoso dos saraus nesse espaço de fato que é o lado de autoconhecimento desse modo de conhecer tão bem conduzido por Boaventura e pela turma acolhedora do CES. Já espero a próxima carta.

    ResponderExcluir
  2. Van, amei sua poesia sobre os Direitos Humanos. Não a conhecia! E, que delícia, passear pelas ruas e experiências de Coimbra por meio da sua carta! Sentir que está feliz alegra meu coração! Saudades desde as Minas Gerais! ❤️ beijos, Chris

    ResponderExcluir
  3. Amiga, mergulhei na sua carta! Quando vi, pensei que estava em Coimbra, ansiosa pelo próximo sarau!! Linda sua poesia!! Gostoso aprender assim!! Saudades!!! Beijos, Fe!!

    ResponderExcluir
  4. Que massa Van! Curso de Escrita Criativa da/na Emigração!!😍😍😍 Como já dizia Paulo Freire precisamos nos apropriar da escrita para tomar a palavra das maos dos grupos opressores
    Que coincidência tô fazendo uma disciplina de composição coreográfica. E estou exercitando o meu lado criativo. Tá sendo muito bom pra mim criar versos, danças, cenas. A academia as vezes faz com q nossa potência criativa fique adormecida.
    💚: E é tão rico o q produzimos! A criação e a arte por muito tempo foi algo colocado para alguns poucos. Minha resistência,hoje, no meu trabalho, tem sido estimular os jovens de origem popular se perceberem como criadores de cultura e de arte. 💚: Estou trabalhando com Slam, poesia de resistência! A palavra como instrumento de luta e transformação de si e da sociedade. Se puder compartilhar comigo os matérias do curso de escrita criativo, ficarei muito agradecida.🙏😉
    💚:Ahhh, amei a sua poesia sobre DH e a de Dodi Leal👏👏👏

    ResponderExcluir