CARTAS DE VIAGEM: HISTÓRIAS DE
CAMINHOS NÃO CONTADOS, de Gladstone Leonel Júnior. Belo Horizonte: Editora
Crivo, 2018. Prefácio (José Geraldo de Sousa Junior)
Começo a minha
apresentação dessas “Cartas de Viagem: Histórias de Caminhos não Contados”, diários
de viagens de Gladstone Leonel Júnior, recortando trecho de um diálogo entre
Kublai Khan e Marco Pólo personagens de As Cidades Invisíveis do escritor Ítalo Calvino:
"Kublai:
Não sei quando você encontrou tempo de visitar todos os países que me descreve.
A minha impressão é que você nunca saiu deste jardim."
"Pólo:
Todas as coisas que vejo e faço ganham sentido num espaço da mente em que
reina a mesma calma que existe aqui, a mesma penumbra, o mesmo silêncio
percorrido pelo farfalhar das folhas.”
Não sei também, quando Gladstone encontrou tempo
para visitar todos os lugares, alguns deles revisitados, sobre os quais relata
em seus diários, nas quarenta e quatro cartas em que registrou suas impressões
e em fotos que são a maneira de imprimir “o
que o não inglês vê”: Achacati (Bolívia), Glasgow, Santiago, Amsterdã,
Porto, Barcelona, Berlim, Budapeste, Caracas, Valência, Havana, Santa Cruz,
Cidade do México, Tiwanaku (Bolívia) Edimburgo, Cusco (Machu Picchu), Cidade do
Panamá, La Paz, Lisboa, Liverpool, Madrid, Manchester, Buenos Aires, Coimbra,
Montevidéu, Santa Clara (Cuba), Toledo, Londres, Salar de Uyuni (Bolívia),
Titicaca, entre Puno e Copacabana (Bolívia), Praga, Roma, Santiago de Cuba,
Sevilha, Sucre, Potosí, Trindad (Cuba), Paris. Lima.
Mas, como Marco Pólo, me dou conta de que Gladstone
dá sentido por meio de impressões vívidas dos lugares percorridos, no “espaço da mente” no qual tece “a mesma penumbra, o mesmo silêncio
percorrido”, com a sua inteligência e com a sua sensibilidade andarilhas.
A narrativa de Gladstone guarda a mesma “calma que existe” em Saramago (Viagem a
Portugal) que me guiou em minha primeira viagem àquela “jangada de pedra”, desvelando os sítios emotivos trançados pela “história de um viajante no interior da viagem
que fez, história de uma viagem que em si transportou um viajante, história de
viagem e viajante reunidos em uma procurada fusão daquele que vê e daquilo que
é visto”.
Como em Saramago, a viagem de Gladstone acaba sendo
o “encontro nem sempre pacífico de
subjetividades e objetividades”, inevitavelmente, “choque e adequação, reconhecimento e descoberta, confirmação e
surpresa”, e a confirmação, afirma o escritor português, de que “nenhuma viagem é definitiva”.
Assim, as histórias e as fotografias de Gladstone
remetem a recortes objetivos suficientemente descritos de tal modo que possam
ser reconhecidos por outros viajantes, mas oferecem sobretudo, tal como ele
sugere, um mapa de mistérios, para o percurso de “caminhos não contados” que são aqueles que assinalam ali onde a
crônica se bifurca com a sociologia, a exposição do “silêncio percorrido”.
Como na “Glasgow que o não inglês vê”, em que
penumbra e silêncio intransitam entre o passado (o gaitista vestido com o kilt antes proibido)) ao lado da ponte que
não leva ao Reino Unido, lembrando Gladstone que “Conhecer
a Escócia a partir de Glasgow na tentativa de decifrar o povo escocês é ter a
certeza que a história de autodeterminação dos povos falará mais alto em algum
momento, e não haverá monarquia que suportará aquele clamor”.
O “farfalhar
de folhas” no passeio suleador (e
jamais norteador) do Outro feito Sujeito descobrindo a Europa, vislumbra o
mundo velho pelo olhar de outro mundo possível que experimentou a libertação.
Por isso é um olhar afetuoso, solidário, que ao contrario do percurso
colonizador que alienou e excluiu, humaniza o reencontro para alcançar sob a
crosta da acumulação egoísta, resquícios de possibilidades não experimentadas,
do que na Europa permanece pré-moderno como condição de pós-medernidade
(Boaventura de Sousa Santos).
Isso significa ver a Europa olhando-a por Portugal,
como num filme de Wim Wenders (O Céu de Lisboa), com a trilha sonora do
Madredeus. Por isso Gladstone pode dizer que “avistar o Tejo da Torre de Belém e tentar seguir a vista, até onde os
olhos alcançam, na busca pelo mar, sintetiza o percurso por onde passa o
sentimento transformado em fado e poesia na alma portuguesa”.
Não causa estranheza pois, que Gladstone, em terras
ibéricas – Lisboa, Coimbra, Porto, Madrid, Toledo, Sevilha, Granada e Valência
- tenha encontrado primeiro, talvez pelo efeito, o impacto do retorno
emancipado do Outro da colonialidade e tenha percebido no discernimento
progressista da leitura de seus colegas acadêmicos, a emergência de novos
sujeitos, gritando novidades conceituais para auditórios mais amplos que o de
Valladolid, acerca de um constitucionalismo democrático, transformador, de um novo constitucionalismo latinoamericano.
Na Pátria Grande (Darcy Ribeiro), Gladstone vai de
Buenos Aires e Montevidéu a Santiago de Cuba, como num sonho de Bolívar (Cartas
da Jamaica), que como o grande condestável, ficando de fora os Estados Unidos,
expresse “o desejo, mais do que qualquer
outro, (de) ver formar-se na América a maior nação do mundo, menos por sua
extensão e riquezas do que pela liberdade e glória."
E assim, notadamente na Bolívia (Achacati, Santa
Cruz, Tiwanaku Salar de Uyuni, Titicaca, Puno, Copacabana, Sucre, Potosí e La
Paz), representar teoricamente esse novo constitucionalismo latinoamericano,
tendo por base o experimento boliviano, para debater com as institucionalidades
constituídas na sua expressão estatal plurinacional e com as sociabilidades
ativas do pluralismo jurídico comunitário participativo, os fundamentos desse
novo direito constitucional.
No percurso teórico-conceitual e político desse
debate poder avançar a proposta de um Constitucionalismo Achado na Rua,
enquanto prática de construção de direitos que expresse essa decolonialidade do
direito. para compreender por poder constituinte a emergência histórica de
sujeitos coletivos dotados de legitimidade política e capacidade social
suficientes para irromper violações sistemáticas e instituir novas condições
concretas de garantia e exercício de direitos e novos projetos de sociedade. Um
Constitucionalismo Achado na Rua que venha aliar-se à Teoria Constitucional que
percorre o caminho do retorno à sua função social. Uma espécie de devolução
conceitual para a sociedade, da função constitucional de atribuir o sentido
político do Direito, através do reconhecimento teórico-conceitual da luta
social como expressão cotidiana da soberania popular.
Se é verdade o que diz Benedetti na epígrafe escolhida por Gladstone
de “que el
mundo es incontable”, nas Cartas aquí publicadas,
com o zêlo do editor e do ilustrador que mais ainda as realçam, o que importa é o que nos oferece o autor,
não tanto pelo que conta, mas tal como orienta García Márquez (Viver para
Contar), pelo que “recorda, e como
recorda para contar”.
José Geraldo de Sousa Junior
Ex-Reitor da UnB
(2008-2012); Coordenador do Projeto O
Direito Achado na Rua
Quanta poesia...o professor José Geraldo, mais uma vez consegue trazer, até ao leitor mais desatento, as nuances variadas de uma obra. "As Cartas de Viagem: histórias de caminhos não contados" com certeza é uma obra singular. Impossível deixar de ler e, esse ato de viajar com o autor e uma aventura indizível...vou mergulhar nesta leitura, tenham certeza. Parabéns a todos os envolvidos na constituição da coletânea. Abraços. Sirley
ResponderExcluirOi Sirley, as Cartas são um estímulo para novas impressões. Veja no Blog as várias cartas de muitos viajantes que circulam nas ruas mundializadas em busca de solisariedade e justiça.
ResponderExcluir