Paloma Costa Oliveira*
Escrevi
esse texto, a pedido do Professor José Geraldo, sobre as minhas impressões do
meu intercâmbio no Chile, sentada no alto da Cordilheira dos Andes, enquanto
estava mochileando pela Patagônia chilena, pela região de Aysén – XI Região.
Cenário
mais simbólico que esse, fazendo referencia ao Chile, não há. Minhas impressões
do Chile são tão largas quanto esse país, o mais largo do mundo. E, por isso
mesmo, vou tentar não me alargar tanto. Dividi minhas impressões e meus
sentimentos por regiões e paisagens fazendo uma ligação com a cultura e o povo
de cada lugar – região.
Antes
de começar queria fazer uma ressalva: talvez foi a vista ou o sentimento que
levo no meu coração mas, já adiantando a conclusão, temos muito o que aprender
com o Chile e com os chilenos. Adianto também que a poesia das próximas linhas
nunca vai ser capaz de descrever tudo ou exatamente tudo como eu me senti em
cada situação. Mas, com esforço, tento relatar a seguir o que aprendi.
O
Norte é seco, o deserto mais seco do
mundo, lotado de escavações mineiras por todas as partes. Aqui se nota
claramente a cultura do cobre, principal fonte de economia chilena. O olhar
atento pelo caminho nota de longe, em meio ao deserto, tais explorações de
cobre. A relação com esse mineral é cotidiana. Á aqueles que desejam comprar um
artefato feito de cobre, San Pedro de Atacama é um ótima indicação. Mas não é
só de cobre que se faz o Norte do Chile. Cheguei a Calama em um dia especial, o
deserto estava todo nevado e, não nevava por ali há mais ou menos 25 anos. As
mudanças climáticas são notáveis no Chile. Como o deserto e seu céu estrelado,
os nortenhos, ao menos de San Pedro de Atacama, são lindos. Dizem que pela secura
do Norte não se aconselha que uma mulher viaje sózinha. Pois bem, eu viajei
sózinha sózinha desde Santiago até Calama e depois até San Pedro. Não sei se
foi sorte mas, em uma cidade com pouco habitantes como San Pedro eu encontrei
casa, encontrei trabalho e encontrei toda a buena onda que se espalha por todo
o Chile. Em meus dias sozinha vagando em bicicleta pelos arredores da cidade,
cometi vários erros, esqueci muitas coisas, julguei menos a força do deserto.
Ainda assim, a vida me foi justa e com a ajuda dos locais consegui a água que
esqueci de levar, um chocolate pra dar energia, uma coca-cola pra refrescar, um
teto pra passar o frio e uma maçã pra matar a fome. Ai aprendi minha primeira
lição: por todo o Chile, seja seco ou seja frio, o povo comparte o que tem,
mesmo que tenham pouco ou quase nada. Quando eu não tinha água em meio ao Valle
de la Luna conheci ao funcionário da Conaf Eduardo que, depois de eu muito
agradecer por essa bondade, me disse: “Oye, si somos hermanos! Lo mínimo que te
puedo regalar es una aguita heladita!”. Pedalando sozinha pelo percurso que
ainda me faltava tive certeza de que ele tinha toda a razão: ‘si somos
hermanos’ devemos compartilhar nossas coisas, aprendizados, habilidades e etc e
‘sí, somos hermanos’, todos nós. Então, para que serve meu aprendizado em
Direito se não para ser compartilhado com quem não teve a mesma
oportunidade/sorte que eu? O Deserto te aclara, te dá paisagens lindas mas, ao
mesmo tempo, ele é duro e pode te tapear passando uma falsa impressão de seguridade.
Os nortenhos são um povo alegre e lindo mas o Chile não podia ficar de fora, o
machismo é compartilhado por toda a América Latina. Infelizmente. Meu erro foi
estender a buena onda à todos os chilenos. Só que no mundo de hoje, se uma
mulher baixa a guarda por um minuto, essa pode ser sua ruína. Foi nas ruínas de
Pukará de Quitor que entendi que a luta feminista é todo dia, toda hora. Não
tem tempo ou espaço para parar. E, mesmo que você esteja triste porque não
conseguiu subir um vulcão (Volcano Laskar), não dá pra achar que qualquer guia por
aí vai ser seu amigo. Pode ser, como foi, justamente o contrário. Felizmente, a
benção que uma senhora Atacameña me deu serviu e me deixou com sorte, podia ter
acontecido algo bem pior. O deserto e o povo nortenho vem com suas duas
facetas: o bruto, seco e o espetacular.
O
Centro do Chile abriga mais da
metade de toda a população chilena. É super lotado de gente, de prédio, de
tudo. É uma megacidade com todo o caos que esse nome trás. Mas parar ali, no
meio da Alameda – Avenida Libertador General Bernardo O’Higgins e olhar para o
oriente – naciente, leste é a maior paz que se pode ter dentro de uma cidade
como Santiago. Ali está a grande Cordilheira dos Andes, quase todo o ano
nevada, pertinho de tanta gente, de tanta história. Isso sempre me fazia pensar
no tamanho dos problemas da vida na cidade. Os meus nunca eram tão grandes.
Mas, onde tem muita gente e muito caos, tem gente com problemas tão grandes
quanto a cordilheira e a repressão policial à quem vai as ruas por seus
direitos é igualmente grande. É a policia menos corrupta da America Latina e,
talvez por isso, a mais brutal. Em uma tarde de quinta-feira de abril, eu levava
apenas 1 mês no Chile e resolvi ir a uma marcha Mapuche. Segundo o evento iam
ter falas e uma marcha conjunta. Para mim, que fui justamente com o intuito de
estudar Direitos Indígenas, ir a uma marcha Mapuche me soava como um grande
privilégio. Escutei sentada em uma roda com umas 200 pessoas, penso, sobre a
opressão estatal frente ao pueblo Mapuche. Escutei sobre prisões ilegais de
menores, sobre desaparecimento de parentes, sobre prisões sem fundamentos,
ameaças civis e etc. Tudo o que escutei me pareceu uma grande chacina de
direitos. Me doía cada nome que eu via de desaparecido nos cartazes e isso,
sabe-se lá desde quando. Mal sabia eu que o filme de terror ainda estava por
começar, essa era só a introdução. A marcha começou, as pessoas começaram a se
movimentar pela Alameda, pacificamente. Quando olhei, a Plaza Baquedano estava
cercada por aquela cor verde musgo. E o mais espantoso era que se via mais o
verde musgo que todas as outras cores das vestimentas Mapuches. A polícia
começou a impedir que a marcha avançasse pela avenida, imagino que porque isso
atrapalharia o trânsito, mas os guerreiros mapuches entoando canções com seus
instrumentos, não se deixaram intimidar e continuaram forçando para seguir seus
caminhos. A tensão cresce mas não se descontrola. O descontrole foi meu quando
vi dois tanques de guerra chegando. E, o mais espantoso é que só eu me
descontrolei, para todos esse era um cenário normal, cotidiano. Um tanque era
grande e trazia em si um jato de água muito forte. O outro era menor com gás de
pimenta. O cenário era típico de guerra e é em momentos assim que se perde a
humanidade. Uns corriam, outros resistiam enquanto os tanques avançavam na
direção das pessoas. Quando me dei conta de mim estava correndo e chorando, não
sei se pelo gás de pimenta ou por tudo o que eu estava sentindo muito. No meio
dessa visão turva vi a uma Machi com um bebê no colo e outro, que tinha no
máximo seus cinco anos, sendo puxado pela mão em meio a toda aquela correria. A
bolsa dela caiu, já estava tudo desordenado e os tanques estavam chegando. Ela
hesitou: “volto pra buscar ou continuo correndo?”. Nisso, eu gritei: “avance no
más que busco para ti”. Busquei a bolsa e lhe entreguei, ela me abraçou muito rapidamente
e logo saiu gritando: “Waii Mapu Libre”. Essa foi minha primeira lição chilena
sobre resistência. A segunda aula de resistência foi com os estudantes, aqueles
famosos estudantes chilenos que em 2006 com “la revolución de los pingüinos”
mostraram ao mundo que eles não aceitariam mais a deturpação de seus direitos.
A Lei de Gratuidade que entrou em vigor em 2016 era para ser uma lei para
acalmar as reivindicações estudantis. Infelizmente essa lei se mostrou
ineficiente e sem capacidade de abarcar ou solucionar grande parte dos
problemas já suscitados pelos estudantes. A reação dos estudantes, agora em sua
maioria universitários, foi parar, parar tudo. A maior parte das Faculdades e
das Universidades foram ocupadas e pararam suas atividades, fossem elas
públicas ou privadas. Os serviços básicos, como o Hospital Universitário e a
Clínica de Direitos, seguiam funcionando. O prédio da Facultad de Derecho de la
Universidad de Chile é um marco simbólico patrimonial de resistência e atividade
intelectual. Chegar lá e ver ele ocupado com cadeiras na porta, cheio de
cartazes em favor de uma educação justa e da gratuidade de educação foram 3
meses de uma obra de arte. No Chile praticamente toda a educação é paga, com
exceção daqueles que conseguem bolsas e dos que saíram na nova lei como isentos
de pagamentos. Até as escolas vulneráveis cobram um valor simbólico de
pagamento o que, tendo visitado a uma, ficou claro que não é revertido para
nenhuma melhoria dentro do próprio edifício ou mesmo educacional. Como é de
praxe, no Chile sempre tem alguma marcha, compareci a marcha pela educação
gratuita e sobre ela posso dizer que não se via começo ou fim, estudantes em
massa, universitários e do ensino médio, compareceram. A Casa Central de la
Universidad de Chile – Casa Amarilla – que fica localizada no centro de Santiago,
muito próxima ao Palácio de La Moneda, também estava ocupada. De lá os gritos
não ecoavam somente sobre educação, o sistema estatal chileno escutou de perto suas
criticas vindas das vozes estudantis. Os 3 meses de greve não foram
improdutivos, dentro da Facultad discutia-se planos de melhorias para o
sistema, teve um ciclo de palestras sobre a situação atual e sobre a tão
esperada Nueva Constituición Chilena – já que a Consituição do Chile ainda data
do governo do General Pinochet –, compareceram artistas típicos chilenos para soltarem
a sua voz, sua musica e sua intervenção. O clima era de união em prol de um bem
maior, todo mundo fazia aquilo: juntos. Conversando com as representações
estudantis entendi que aquilo era como um sacrifício para o bem maior, afinal
de contas, se eles perdessem um semestre porque teve muita greve, era o bolso
de cada um dos estudantes que estava ali lutando que ia sentir. Por isso, toda
semana votava-se pela continuidade da greve e media-se os avanços (prós e
contras) que a greve estava causando. A pressão foi grande e ao final de 3
meses eles voltaram para as aulas. Mas essa resistência toda, ao menos no
coração de um brasileira, ficou guardada pra sempre. Sinto que no Brasil a
gente tem muito medo ou pouco tempo para se dedicar 3 meses pelos nossos
direitos. E escrever/reconhecer essa frase já é um problema enorme que vale uma
tremenda reflexão. Em contraposição ao avanço da luta do povo chileno, a Corte
Suprema do Chile, onde as leis não são vinculantes, segue representando a mente
ultrapassada da aparelhagem estatal. Eu tive a oportunidade – pela Clínica
Jurídica de Derecho Ambiental y Resolucción de Conflictos – de sentar em um
alegatto na Corte Suprema. Infelizmente, sentei para ver Direitos Humanos serem
negados por mera influência do poder dominante. Com isso entendi porque alguns
grupos tem a tarefa/dever de resistir.
O
Sul do Chile é Patagônia, beleza
natural. Muito frio, muita chuva, muito sol. A começar, lá amanhece umas 7h30/8h
da manhã e vai escurecer somente umas 22h da noite. Apesar dos dias largos a
lei é a de que “quien se apura pierde el tiempo”, lá quem dita o tempo é a
natureza mesma. O bom disso é que a gente vive lá é tranqüila, calma e humilde.
Lá o costume é que quando se vai dizer não eles preferem dizer: “nono” para não
soar tão rude. Essa vida rústica e tranquila difere em vários sentidos da nossa.
Lá, o conceito de propriedade é recente. Há pouco tempo atrás os “arrieros”
chilenos movimentavam seus animais pelos Puestos de la Patagônia, pernoitando
nesses locais mesmo. Essa jornada era uma jornada de sobrevivência em meio aos tantos fenômenos da
natureza. Não tinha propriedade de terra, todos os animais e pessoas compartilhavam
o mesmo espaço. No Governo Pinochet, com a implantação da Carretera Austral,
esse cenário mudou por completo e onde ainda permanecia um nomadismo virou
sedentarismo. Ainda se pode ver os Puestos de la Patagônia espalhados pelas
propriedades rurais, perto da Carretera Austral e etc. No Chile ser “Patagón” é
um orgulho. A dureza da natureza reflete na atitude forte dos sureños. Conheci
a um menino que tinha seus 14 anos e ele me contou como foi quando explodiu o
Vulcão em Chaitén em 2008. Ele tinha apenas 5 anos e ficou sem nada, pôde levar
só um boneco e um casaco porque era o que ele podia carregar. Nunca tinha
pensado sobre o que é perder todos os seus bens materiais, perder o local que
você chama de casa. Normalmente com o local que chamamos de casa temos um sentimento
de pertencimento. Lá isso é um pouco distinto porque, devido aos fenômenos
naturais, a qualquer momento a sua casa pode ser destruída. Lá a questão da
propriedade comum segue no imaginário das pessoas pois, eles não se consideram
de tal cidade ou de tal parte, eles se consideram: Patagones. Pelo Sul conheci
também a um senhor que morava na Cordilheira, com seus gados livres, no governo
Pinochet ele se tornou dono de um espaço pequeno de terra, com a explosão do
Volcán Hudson – uma das explosões mais violentas do Chile em 1991, ele foi
obrigado a sair de onde estava e reconstruir tudo de novo. O seu
hostal/restaurante/supermercado/camping era fruto de um trabalho de quase 30
anos que tinha sido feito com a ajuda de todos os moradores do local, sem muito
apoio do governo, e que ainda estava em expansão. Talvez, porque na sabedoria
comum é óbvio que os Patagones sabem que tem que se ajudar eles ajudam a
qualquer pessoa que apareça necessitando, é natural à eles esse sentimento de
ajudar. E eles não são de reclamar das desgraças naturais, eles são muito
agradecidos. Com os sureños eu recebi todas as regalias que um mochileiro
poderia esperar: casa, comida, mantimentos, abrigo, amizade e etc. Refletindo
sobre o meu país, a cultura do Brasil muitas vezes é a de tirar o melhor
proveito de cada situação e isso dificulta que sejamos proativas, empáticas e
com disponibilidade de ajudar quando os outros estão passando por momentos de necessidade.
Como é duro chegar aonde chegamos, até mesmo fornecer uma assessoria jurídica
gratuita torna-se muitas vezes um peso. Mas lá no sul do Chile a gente é forte
para enfrentar qualquer coisa e dar conta de tudo. E, com isso, nós brasileiros
só podemos aprender. Seja sobre comportamentos, seja sobre desapegos, seja
sobre o respeito à natureza, seja sobre empatia.
Meus dias no Chile me trouxeram muitos
ensinamentos e, apesar de ter aprendido na Universidad de Chile muitas leis
ainda ultrapassadas e outras demasiado avançadas, para mim a experiência com o Chile
e com os chilenos tem muito o que ensinar a nós, Brasil e brasileiros. Por isso
carregarei todos esses ensinamentos como mantra diário.
*Paloma
Costa Oliveira
Graduanda
em Direito pela Universidade de Brasília – UnB
A matéria elaborada por Paloma Costa Oliveira surge do intercâmbio
realizado pelo INT/UnB relativo ao Convênio entre Cortes dentro do marco do
Convênio Teixeira de Freitas que permitiu a realização de uma pesquisa e
experiência na Corte Suprema do Chile.
A pesquisa que ela fez na
Corte Suprema do Chile tem a seguinte descrição:
Este trabajo es
parte del marco del Programa Teixeira de Freitas que tiene como objetivo
promover un diálogo académico regional en el ambito legal de los países del
MERCOSUR y Asociados, contribuyendo a una comprensión mutua de las realidades
jurídicas de los países.
“La intención es
expandir y construir un entendimiento común que puede ayudar a consolidar los
esfuerzos de integración económica y promover la capacitación y desarrollo de
docentes y estudiantes, además de estimular el desarrollo de la investigación y
extensión en el área jurídica en el MERCOSUR y asociados.”[1]
En ese marco,
surge la investigación sobre el tema: “La Participación Ciudadana y la Consulta
Indígena en Matéria Ambiental, una comparación entre Brasil y Chile” con la
orientación del Ministro de la Corte Suprema de Justicia de Chile Sr. Manuel
Valderrama en conjunto con la abogada tutora de la Dirección de Asuntos
Internacionales y Derechos Humanos – DAIDH, Paloma Alvarado.
[1] Programa de Trabajo Teixeira de Freitas de la Alumna
de la Universidad de Brasília: Paloma Costa – Corte Suprema de Justicia de
Chile/Dirección de Asuntos Internacionales y Derechos Humanos – DAIDH
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