segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

As Rebeliões Prisionais na Região Norte do Brasil: a face oculta e sórdida do neoliberalismo brasileiro

Eduardo Xavier Lemos[1]

É possível definir, que a omissão do estado brasileiro[2] no trato da questão de segurança pública, em especial o sistema prisional, tem fundamental motivo para o acontecimento de tamanha barbárie que chocou a todos nos noticiários e que receberam fotografias e vídeos das decapitações e desmembramentos em seus celulares e redes sociais.

A omissão dos agentes estatais brasileiros é ainda mais absurda, uma vez que nosso país é regido por uma constituição que protege todos seus cidadãos de penas tortuosas e desumanas, e bem, já dos primeiros códigos republicanos que o Brasil procurou adequar-se a modernas legislações europeias e portanto, oficialmente, nossas leis se fossem respeitadas pelas autoridades, garantiriam aos cidadãos que cumprem pena privativa de liberdade nos presídios, a preservação de sua dignidade humana e consequentemente do seu tratamento como seres humanos.

Dessa forma, e sem exaurir as distintas visões possíveis para um problema tão complexo, proponho a reflexão sobre a questão prisional e as rebeliões sobre a perspectiva da desumanização dos aprisionados, isto é, como o sistema penal brasileiro e o modelo neoliberal de gestão de segurança pública instalado neste país conduziram tais cidadãos a uma condição bárbara, desumana que ocasionou uma rebelião de tamanha proporção violenta como poucas vezes se viu na história mundial.

Para bem dizer, ao contrário do que foi afirmado por importantes autoridades brasileiras, a recente cena de decapitação e desmembramento de dezenas de cidadãos brasileiros dentro de unidades prisionais deste país não foi um fato imprevisível, fortuito ou mesmo um “acidente” de percurso.

Na visão daqueles que cumprem penas, visitam seus familiares ou de alguma forma prestam serviço nas próprias unidades prisionais, ou de alguma forma tratam da temática, tal fato já havia acontecido em proporções menores em outros estabelecimentos prisionais e dadas as condições do sistema prisional brasileiro era apenas questão de tempo para que algo de extrema proporção viesse à tona.

E mais que isso, os noticiários ilustram que governadores e secretários de segurança reeditam as antigas prisões navio da época do Brasil colônia (presigangas), inovam em novíssimas e criativas prisões contêiner, ônibus prisão e afins, além do aprisionamento de cidadãos em lixeiras, em viaturas, o que são fatos cotidianos de nossos dias. Sendo assim, qualquer cidadão com mínima sanidade mental poderia prever que logo algo de pior aconteceria, pois não há homem no mundo que suporte tamanha humilhação e situação degradante.

Ressalto que é o primeiro aspecto a ser mencionado para entender a questão das rebeliões é a omissão estatal que causa tamanha inconsistência no sistema penal, pois o que se vê hoje em dia é um Estado que negligencia totalmente sua mão social, e infla-se erroneamente na mão punitivista, isto é, pune muito e de forma errada, pelos crimes errados, com penas equivocadas, de maneira retrógrada e não utilizando os instrumentos inovadores (e outros nem tão inovadores), que permitiriam a modernização do sistema de punição do país.

Porém para que não haja má compreensão do que se entende por omissão estatal, é importante compreender qual leitura de omissão estatal que temos, falamos da visão de Pierre Bordieu[3], qual seja, de que o Estado tem duas mãos, a esquerda e a direita, a esquerda representada pela assistência social, nesse caso do sistema prisional, celas dignas, saúde, higiene e alimentação dentro dos limites da humanidade, etc., e que é garantido pela Lei de Execução Penal deste país.

E a mão direita, representada pelo sistema de punição, o estado como autoridade (não menos importante) representando em um sistema de justiça eficaz, com penas proporcionais ao delito praticado, com defesa justa e verificando a situação daqueles que efetivamente devem estar presos (relembrando que 40% dos aprisionados do país são presos não sentenciados e quando realizados os mutirões carcerários,  percebe-se que muitos que encontram-se no cárcere já obtiveram os requisitos para progressão de regime[4]).

Outra demonstração das inconsistências do sistema punitivo brasileira é a desproporção nos selecionados pelo sistema, das 245.821 pessoas condenadas no país, 163.519 (INFOPEN, 2014[5]) pessoas foram condenadas por crimes contra o patrimônio ou crimes enquadradas na lei de entorpecentes, o que releva em torno de 66% dos crimes apenados no país[6].

E porque especificamente essa espécie delinquente é captada pelo sistema penal? São tais crimes estritamente vinculados com o sistema capitalista neoliberal, as condutas as quais os excluídos do sistema, os vulneráveis, estão mais sujeitos a realização, dado que os pontos de venda de entorpecentes localizarem-se em comunidades carentes e também o fato inerente de necessariamente cometerá crime patrimonial aquele que é desprovido de bens patrimoniais.  Resta claro, pois, que as absurdas taxas de encarceramento no país, recaem sobre pessoas que não se encaixam no modelo capitalista, e o cárcere, no projeto neoliberal, é um fundamental meio de controle social de vulneráveis, assim como fora em seu surgimento na idade média (mesmo que o discurso oficial seja ressocializador).

E nesse sentido, as rebeliões que trouxeram à tona uma feia fotografia social de um país que não tem por costume enxergar-se no espelho, tem como fundamental ponto de consideração a hiperpopulação carcerária brasileira, o que se dá em todos os estados da nação e consequentemente nos específicos estados onde passaran os fatos.

De fato, existem mais pessoas presas que vagas nos presídios e os custos do sistema prisional são altos, negar que o país (e os estados) vive uma crise econômica não é salutar. Nesse sentido, o debate sobre construção de novos presídios torna-se irracional, é um planejamento incorreto que não soluciona o problema nem em curto muito menos em longo prazo.

Outro aspecto importante para compreender as rebeliões passam as facções criminosas brasileiras, que estão relacionadas também com a crise do sistema, a negligência do estado e as más condições do cárcere brasileiro. A primeira grande facção criminosa brasileira nasce posteriormente ao período militar, da convivência de presos políticos com presos comuns, o Comando Vermelho aprende a organização, hierarquia e arrecadação de fundos dos presos políticos (dentre outros aspectos), e organiza-se em lideranças. Nos anos 1980, os presídios cariocas bem como o tráfico de drogas daquele Estado são praticamente tomados pelo Comando Vermelho, outros grupos dissidentes são formados no Rio de Janeiro, e a ideia central de organização e hierarquia espalha-se pelo país, com grupos menos famosos de alguma forma afiliada (ou rival) de tal grupo.


Na década de 90, motivado pela violência (Carandiru e o maus tratos prisionais) e negligência estatal nos presídios, buscando uma união entre delinquentes, dentro e fora dos presídios surge o Primeiro Comando da Capital, que também com hierarquia, lideranças e estabilidade, instituiu estatuto, regramento e julgamento da membros da facção e ainda um pagamento dos afiliados soltos, além de claro haver a mantença da facção a partir do cometimento de delitos. Em uma década o PCC abrangeu presídios em quase todos os estados do país, sob promessa de proteção dos afiliados mas também de coação, realizando “paz” nos presídios a partir de que os presos coligados tivessem obediência ao comando.

Outras lideranças espalham-se no país, a reflexo do surgimento e da rivalidade do Comando Vermelho e Primeiro Comando da Capital, como exemplo a Facção do Norte (que realizou a rebelião em Manaus), Facções regionais do Sul e Nordeste, que quando tem sua liderança ameaçada por alguma das grandes facções, ou mesmo disputa de zona de fronteira ou zona de tráfico, entram em violentos confrontos nos presídios ou nas comunidades onde se localizam, e em consequência os moradores dessas localidades ficam a mercê de tais conflitos.

O fenômeno das facções é evidentemente outro exemplo da omissão do estado, e de face dupla, porque ele se dá tanto na comunidade, onde este nega a proteção policial e sua mão social, abandonando os moradores, bem como no sistema prisional, que a partir da criação dos “depósitos” de gente, dá origem a formação das facções criminosas. O efeito é nefasto, pois depois de estruturados e organizados no presídio, os aprisionados voltam ao convívio e ocupam as comunidades coagindo os moradores e instituindo verdadeiros locais de proteção da facção, seja para venda ou seja para manter o a presença estatal afastada, espalhando pontos de controle de vendas e de monitoria do espaço físico da comunidade, para protegerem-se da ação policial.

Ainda quanto as facões criminosas, nossa visão é de que não podem de forma alguma ser comparadas a um movimento social, porém que são cidadãos do estado brasileiro e precisam ter seus direitos preservados quando cumprem suas penas, nesse sentido, José Geraldo de Sousa Jr.

Uma facção criminosa não é um movimento social. Porém, é  fundamental afirmar: pertencendo ou não a organizações criminosas, os presos, em sua condição de exclusão, conservam uma reserva inalienável de cidadania, que deve encontrar formas de  reconhecimento e de exercício (SOUSA Jr.,2006, p.3[7]).

Negar a condição digna aos aprisionados é automaticamente condicioná-los a uma situação de não-humanos, e isso necessariamente fará com que suas atitudes sejam abaixo da linha da dignidade humana[8], isto é, violentas, bárbaras, primitivas. 

Ainda é importante compreender, que, a um dos pontos que dão base aos fatos, foi o  caldeirão que o sistema neoliberal formou, que é o da extrema desigualdade social, onde os necessários excluídos, miseráveis e oprimidos necessariamente precisam não ter recursos básicos para que uma camada mínima de pessoas tenha um percentual enorme de todos os recursos da sociedade.

A esses seres invisíveis ao sistema, e que lhes são negados o mínimo dos recursos, retira-se a condição basilar da dignidade[9], a oportunidade de desenvolver-se como seres humanos, a higiene, a saúde, a alimentação, o estudo, o trabalho, o lazer. O isolamento em guetos e favelas, sem urbanização, é uma das formas de segregar a condição humana e o desenvolvimento, o sistema neoliberal dá como única opção ao ser humano sua luta pela sobrevivência, e nada mais.

Um percentual desses oprimidos e excluídos, recaem nas condutas sociais  oportunizadas pelas facções, vez que tais facções e suas lideranças, e suas oportunidades, muitas vezes são mais próximas que as opções do Estado, negligente e distante, e assim, em algum momento algumas dessas pessoas que vem a delinquir acabam cooptadas pelo sistema penal, sendo aprisionadas.

É nesse sistema penal que encontrarão o limite máximo da indignidade humana, onde serão reduzidos a esfera do não-viver, separados por espaços mínimos com outras cinco ou dez pessoas, alimentando-se de comida pútrida, contaminando-se das mais diversas doenças sem sequer ter assistência médica, muitas vezes tendo o banho de sol negado, e em um ambiente belicoso. Outros, antes sequer conectados com facções criminosas, obrigatoriamente tem que se sujeitar a filiação a tais gangues, para garantir sua sobrevivência no sistema prisional, do contrário dificilmente tem sua incolumidade física garantida.

Seriam os fatores existenciais para explicar a lógica da rebelião: a omissão estatal que negligência sua ação como agente propulsor de igualdades, de mediador de dignidade à população, auferindo controle ao capitalismo selvagem, protegendo os cidadãos que não tem condição de manter sua condição humana frente à “lei de mercado”; o efeito nefasto do neoliberalismo que segrega e cria excluídos em seu sistema econômico e social; o cárcere utilizado como controle social da pobreza e a consequente hiperlotação do sistema prisional; as facções geradas por esses dois fatores anteriormente mencionados; a desumanização dos indivíduos aprisionados que tem reações desesperadas e violentas proporcionais à condição degradante que lhes é proporcionada;

O Estado e a sociedade esquecem o aprisionado, que vive durante o período de sua pena em uma condição humilhante e aberrante, e que necessariamente voltará para o convívio social e tentará se reintegrar em sociedade, uma vez não conseguindo, só lhe restará reproduzir o comportamento que aprendeu no período do cárcere, e por isso o índice de reincidência no país beira os 70% (INFOPEN, 2014).

Ao olhar os vídeos das execuções realizadas nas rebeliões de Manaus e Boa Vista, onde cabeças são decepadas, corpos esquartejados com seres humanos ainda vivos urrando de dor, centenas de corpos desmembrados em um pátio ensanguentado, e uma fileira de cabeças expostas como troféus, vem à interrogação de como qualquer ser humano pode sujeitar outro ser humano a tamanha crueldade?

E o texto propôs essa reflexão, de que tais pessoas são a crise máxima desse sistema neoliberal, e por isso a face disforme do projeto mundo que lhes enterrou, pois foi projetado para que estas pessoas aceitassem tal condição indigna passivamente, como a grande maioria, no momento que delinquiram, tentando ascender a uma vida mais digna, a resposta do sistema foi enjaula-los em depósitos de gente, para depois de anos ver o que aconteceria.

Em meu livro, ao perguntar para um aprisionado o que ocasionava as rebeliões, me disse:
[...]O motivo do motim, da rebelião, seja lá o que for, as vezes é um modo de...Que o preso tem pra chamar a atenção, ou vamos usar o mais brasileiro, pedir socorro. Tem coisas que acontecem por provalecimento... De tudo um pouco que acontece com o preso, que tem um...Muitos que acha que o preso é preso tem que sofrer, tem que tomar bode ele tem que apanhar, é posto na solitária...Escorraçado e pré-julgado.[10][..]

E outro, colega de presídio dele, disse uma frase que nunca esqueci, [...] aquilo ali é tipo colocar uma brasinha, vai acendendo, acendendo né[11] [...] .

Pois bem, as rebeliões expuseram cabeças, braços e pernas, um rio de sangue e vísceras, que chegaram aos três poderes dessa nação e todos agentes públicos correram para dizer que a culpa não era sua. Nessas duas semanas, muitos foram escutados pela mídia, porém nenhum aprisionado que sobreviveu foi escutado, nenhum plano para redução dos presos provisórios foi traçado, nenhum vírgula foi mencionada de que o recente julgamento do STF que admite execução da pena após condenação em segunda instancia, vai aumentar em muito a superlotação nos presídios (que já estão explodindo), ou sobre a estapafúrdia proposta de redução da maioridade penal que se tiver votação aceita no Senado colocará todos os menores entre 16 (dezesseis) e 18 (dezoito) anos automaticamente para dentro dos presídios já hiperinflados.

Significativamente, mais uma vez ficou muito claro, que existem mundos distintos, um é o mundo dos seres humanos, outro é o mundo das leis e por fim o terceiro é mundo dos agentes públicos, o direito das ruas[12]. (quanto mais o direito do cárcere[13]) é completamente negado pelos agentes do estado

No mundo dos seres humanos as coisas acontecem, tais rebeliões eram prementes, os problemas sociais são cotidianos, a desigualdade nos aflige, nos afronta e queremos uma solução para um país mais justo.

Quanto ao planeta das leis não deveria ser um mundo irreal, porém de fato, tornou-se um mundo fantasioso e muitas vezes impraticável, lutar para que se efetive a constituição virou algo revolucionário, efetivar o código penal, o de processo penal, ou mesmo a lei de execução penal, uma vez aplicadas no mais frio dogmatismo (por incrível por pareça) traria imensos avanços aos cidadãos.

Por fim o mundo dos agentes públicos (com muitas e exceções é claro), cujos discursos realizados nessas últimas semanas transladavam tal distanciamento frente à família das pessoas esquartejadas, que causou vergonha e perplexidade. Talvez tenham perdido o senso do cotidiano, o nexo de realidade e o elo interpessoal com o povo que vive no dia a dia dessa nação.

Esse episódio serve para mostrar que o sistema que pregava a necessária desigualdade, que cada um viveria e venceria pelas suas próprias capacidades e que os demais deveriam suportar suas próprias consequências, talvez esse sistema não esteja dando tão certo. As cabeças estão aí para provar, as vísceras e o sangue também, e não creio que sequer os liberais extremos tenham gostado do que viram.

Há de se refletir sobre um modelo de sociedade mais humano, que permita opções e condições para que todos os seres desenvolvam-se em patamares dignos de humanidade, sob pena de esses tristes acontecimentos tomarem praças públicas e a situação caótica de descontrole ser a regra e não episódios isolados[14].





[1] Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília, Especialista em Ciências Penais pela PUC-RS, Advogado, Professor Universitário, Pesquisador do Grupo o Direito Achado na Rua.

[2] LEMOS, Eduardo Xavier. O Pluralismo Jurídico na Omissão Estatal: O Direito Achado no Cárcere. 1. Ed. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2013. V. 1. 
[3] Bourdieu, Pierre, Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neo-liberal, Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1998.
[4] MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Levantamento Nacional de Informações enciárias: Infopen 2014
[5] Idem.
[6] Idem.
[7] SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de. Jornal do SINDJUS. a.XV, n.33, p.3, jul. 2006.
[8] FLORES, Joaquín Herrera.A re(invenção) dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.
[9] ESCRIVÃO, Antonio  Filho, SOUSA JÚNIOR José Geraldo De. Para um debate teórico conceitual e político sobre os direitos humanos, Belo Horizonte: Editora DPlácido, 2016.
[10] LEMOS, Eduardo Xavier. O Pluralismo Jurídico na Omissão Estatal: O Direito Achado no Cárcere. 1. Ed. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2013. V. 1. 
[11] Idem.
[12] SOUSA JUNIOR. José Geraldo de. Direito como Liberdade - O Direito Achado na Rua. Porto Alegre: Editora Fabris, 2011.
[13] LEMOS, Eduardo Xavier. O Pluralismo Jurídico na Omissão Estatal: O Direito Achado no Cárcere: Porto Alegre: Editoria Núria Fábris,  2014.
[14] O autor presta condolência e pêsames aos familiares dos cidadãos que perderam suas vidas nas tragédias.

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