Ísis Menezes Táboas[1].
El
Crucero /Nicarágua, outubro de 2016.
A
estrada é de terra e a mata, fechada. Quanto mais caminhava, mais ameno o clima
ficava, em cima da montanha havia brisa fresca, apesar do sol quente. A placa
indicava que chegávamos à Comunidad Santa
Julia del Crucero, de longe vi que a comunidade estava em festa. Decorada
com bexigas verdes e lilás e faixas de boas-vindas, a Cooperativa de Mulheres Glória Quintanilla se apresentou como
espaço político em que jovens, adultas e idosas da comunidade se organizam,
buscando alcançar a soberania alimentar com projetos que promovem a
agroecologia e estabelecer relações igualitárias entre mulheres e homens da
comunidade, enfrentando relações de violência e de opressão.
Ao longo do dia, elas nos apresentaram suas construções, uma escola que conta com
duas professoras e atende a trinta e cinco crianças pequenas da comunidade,
suas casas e, especialmente, suas lavouras. A produção é desenvolvida com
sementes crioulas, sem agrotóxicos, com variedade na plantação de alimentos
saudáveis e diversas técnicas para o armazenamento de água da chuva. A
comunidade não tem água encanada, possui apenas um poço feito durante a
ditadura Somozista. Há um projeto, parceria entre a Cooperativa de Mulheres e a
ATC (Asociación de Trabajadores del
Campo), que já arrecadou parte do valor para a construção de um novo poço.
Esta
é uma das montanhas onde acampavam guerrilheiras e guerrilheiros na época
clandestina da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), assim chamada
desde 1963, quando a Frente de Libertação Nacional se inspirou nas ideias
anti-imperialistas de Augusto César Sandino, general guerrilheiro do Exército
Defensor da Soberania Nacional composto por camponeses que combateram
fuzileiros navais estadunidenses de 1927 a 1932. Dois anos depois de vencerem
os marines, General Sandino foi
assassinado pela Guarda Nacional, financiada e treinada por norte-americanos, a
mando de Anastásio Somoza García.
Na
década de 1970, neste acampamento nas montanhas de El Crucero, os guerrilheiros e as guerrilheiras inspiradas pela
Revolução Cubana estudavam marxismo-leninismo, e treinavam para luta armada organizadas
pela clandestina FSLN, que teve o protagonismo e o comando feminino em diversas
batalhas.
Dora
Maria Tellez comandou a Frente Ocidental do exército guerrilheiro e foi a
“Comandante Dois” do ataque ao Palácio Nacional. Nora Astorga foi a responsável
pela emboscada que levou à morte um dos mais odiados torturadores da Guarda
Nacional de Somoza. Doris Tijerino, com 23 anos, de classe média, compunha as
fileiras da FSLN e assinou o manifesto “Sandino sim, Somoza não” como integrante
do Diretório Nacional e foi descrita pelo jornal como traidora da sua classe e
sexo, “comunista fanática, não teve escrúpulos em oferecer sua intimidade
feminina como elemento de escândalo”.
Em
Ticuantepe, na Escuela Obrera Campesina Internacional
- Francisco Morazán, eu ouvi depoimentos de algumas senhoras que na
juventude lutaram contra a Ditadura de Somoza, uma delas contou como perdeu o
braço em uma emboscada da Guarda Nacional, outra porque com 12 anos contribuía
com a guerrilha, e aos 16 subiu às montanhas. A terceira contou sobre gravidez,
parto e maternidade durante a guerrilha. Conheci também como homens da Guarda
Nacional que subestimaram a força e a capacidade política e militar das
mulheres sandinistas foram enganados e executados por elas; com as mulheres armadas
e preparadas para guerrear, as relações de poder com os homens foram alteradas.
Contaram-me
algumas das regras para as guerrilheiras mulheres: aquelas que ficavam nos
aparelhos deveriam dormir de calças compridas e botas para fugir rapidamente em
caso de ataque; durante a guerrilha, deveriam cortar relações com familiares,
companheiras/os e filhas/os que não compusessem a FSLN. Para casais em que ambas/os
estivessem na organização, era permitido viverem juntas/os, desde que
obtivessem autorização de suas/seus superioras/es. A história é tão viva como
suas sobreviventes e faz brilhar os olhos de cada uma que a construiu e, agora,
a conta.
No
centro de Manágua, ouvi o cantor Carlos Mejía Godoy que, juntamente com seu
irmão, criou a Guitarra Armada, uma tática
da guerrilha sandinista em que, através de música, passavam instruções
militares e informações sobre armas e explosivos para a população majoritariamente
analfabeta.
O
fato é que na década de 1970, a massa popular nicaraguense se armou contra o
regime ditatorial financiado pelo Império Estadunidense, que detinha grande
parte das terras nacionais e explorava camponesas/es e trabalhadoras/es urbanas/os.
Nas regiões rurais, o índice de analfabetismo era de setenta e cinco por cento e
no caso da população feminina tendia a cem por cento; oitenta por cento dos lares
não tinham nem água encanada, nem eletricidade. Com a crescente concentração de
terras nas mãos de estrangeiros, o povo camponês migrava para as cidades,
especialmente para Manágua, onde viviam em favelas de casas de papelão. Nicarágua
tinha a mais baixa expectativa de vida da América Central (53 anos) e segundo
maior índice de mortalidade infantil.
Essa
intensificação da crise capitalista e a violência do regime ditatorial contribuíram
com o aumento da revolta popular e a criação de condições concretas para o
triunfo a Revolução Popular Sandinista. Em 1979, a FSLN venceu a Guarda
Nacional e o povo tomou o poder. Anastásio Somoza, cuja família governava o
país havia quatro décadas, fugiu para Miami.
Os
anos subsequentes à Insurreição Popular foram de reforma agrária, confisco das
terras de estrangeiros e de somozistas, alfabetização da população, reconstrução
da história nicaraguense e renomeação de espaços públicos, a partir dos anseios
populares. Ao mesmo tempo, foi uma década de bloqueio econômico imposto pelos
Estados Unidos e fortes ataques contrarrevolucionários.
No
início da década de 90, diante das intensas pressões políticas e econômicas
imperialistas, o neoliberalismo ganhou as eleições para Presidência da
Nicarágua. Tão logo assumiu o governo, entregou aos estrangeiros as terras que
haviam sido confiscadas pelo povo, e rebatizou os espaços com nomes que
possuíam antes da Insurreição Popular.
Voltando
ao dia em que estive em El Crucero, uma
refeição foi gentilmente servida pela Cooperativa. Em um prato verde, eu comi
feijão vermelho sentada nas longas e envolventes raízes de uma árvore que me
dava sombra. A minha cabeça estava a milhão, recordava cada uma das histórias
que conheci nos dias anteriores e sentia a experiência pulsante daquela
cooperativa de mulheres na montanha de El
Crucero. Em cada colherada eu sentia o gosto irresistível de sonhar com uma
outra sociedade, de desconstruir as relações desiguais de poder entre ricos e
pobres, homens e mulheres. Cada colherada tinha o gosto da realidade: da
relação dialética entre a dor das mulheres que passam cotidianamente por
situações de violência e opressão naturalizadas pelo patriarcado e têm seus trabalhos
reprodutivos invisibilizados e produtivos super explorados pelo capitalismo, em
contraposição à energia feminina, socialista e feminista de resistência, de
denúncia das injustiças, de organização e de luta para transformar os espaços
políticos, públicos e privados. Desceu em minha garganta o feijão mais denso
que já comi, temperado ao sabor da mística feminista, camponesa e popular.
Foi
naquela mesma tarde que Lola, a dirigenta da comunidade, foi questionada por
uma liderança do Anamuri, organização chilena de mulheres rurais e indígenas,
sobre uma possível troca de nome da comunidade, cuja placa na entrada indicava Comunidad Santa Julia (nome dado em
homenagem à genitora do ditador Somoza).
Com absurda convicção e um pequeno sorriso entre os lábios, Lola nos explicou que há um projeto de lei municipal para, formalmente, retirar o
nome da placa e dos documentos, retornando ao nome escolhido pelo povo logo que
triunfou a Insurreição de 1979. Com voz firme e segura, a dirigenta termina: el nombre de esta comunidad es La Revolución!
[1] Integrante
de O Direito Achado na Rua, doutoranda em Direito, Estado e Constituição na
Universidade de Brasília. Participante da III Escuela Continental de Mujeres Lideresas de la CLOC- La Via Campesina como
representante do Movimento de Mulheres Camponesas- MMC.
Ísis, parabéns pela carta!!
ResponderExcluirImportantíssimo o registro, gostei demais! Se já é fundamental o resgate histórico das lutas e processos de resistência que nos forjam, a nós, às hermanas e hermanos da América Latina, mais valioso ainda esse resgate desde uma perspectiva das mulheres e de suas lutas - capítulo frequentemente ignorado nos relatos hegemônicos da história.
Muito obrigada por compartilhar conosco um pouco dessa experiência, que visivelmente foi riquíssima!!
Um beijo!
Que lindeza de relato, Isis! Mulheres viajantes, ativistas e escritoras, divulgando processos históricos, lutas populares e experiências agroecológicas! Parabéns!
ResponderExcluirBela carta Isis. Combina consciência e existência. Conhecimento e biografia. No facebook vi que Raquel Yrigoyen curtiu a postagem, o que dá uma medida da interlocução que o seu texto está provocando. Espero que você traduza a Carta e a envie para as mulheres com as quais - tal como descreve, você conviveu nesses dias, compartilhou conhecimentos, vivências e esperanças, ao embalo da Utopia.
ResponderExcluirRelato maravilhoso e importantíssimo!! Me emocionei! Obrigada por compartilhar sua experiência conosco Ísis!
ResponderExcluirAprendi demais com sua carta, Ísis!
ResponderExcluirNão tenho dúvidas de que você também faz parte dessa revolução. Uma análise muito madura, de quem tem os pés fincados nas lutas populares e a cabeça à serviço dessas mesmas causas.
Lindo e inspirador o seu relato, Isis. Obrigada por compartilha-lo!
ResponderExcluirQuanta beleza nessas memórias e no teu relato. Nada se compara a conhecer a história pela voz de suas protagonistas. Lindo, Isis! Obrigada! Muito obrigada!
ResponderExcluirA volta de decoro no Brasil:
ResponderExcluirUM MOMENTO, APENAS UM!, SUI GENERIS. EIS:
Em 2016 houve fato fabuloso sim, apesar de Vanessa Grazziotin falar que não, dessa forma assim:
"O ano de 2016 é, sem dúvida, daqueles que dificilmente será esquecido. Ficará marcado na história pelos acontecimentos negativos ocorridos no Brasil e no mundo. Esse é o sentimento das pessoas", diz Grazziotin.
Mas, por outro lado, nem que seja apenas 1 fato positivo houve sim! É claro! Mesmo que seja, somente e só, um ato notável, de êxito. Extraordinário. Onde a sociedade se mostrou. Divino. Que ficará na história para sempre, para o início de um horizonte progressista do Brasil, na vida cultural, na artística, na esfera política, e na econômica.
Que jamais será esquecido tal nascer dos anos a partir de 2016, apontando para frente. Ano em orientação à alta-cultura. Acontecimento esse verdadeiramente um marco histórico prodigioso. Tal ação acorrida em 2016 ocasionou o triunfo sobre a incompetência. Incrementando sim o Brasil em direção a modernidade, a reformas e mudanças positivas e progressistas. Enfim: admirável.
Qual foi, afinal, essa ação sui-generis?
Tal fato luminoso foi o:
-- «Tchau querida!» [impeachment de Dilma].
Eis aí um momento progressista, no ano de 2016. Sem PeTê.
Feliz 2017.