"Publicado 5 de Outubro, 2016
Por Cristiano Paixão
Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UnB. Procurador Regional do Trabalho em Brasília. Mestre em Teoria e Filosofia do Direito (UFSC). Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Estágios pós-doutorais em História Moderna na Scuola Normale Superiore di Pisa e em Teoria da História na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris). Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB (2012-2015).
Na data em que a Constituição da República completa 28 anos, muitas dúvidas se apresentam acerca do futuro da “Constituição Cidadã”. Os efeitos e desdobramentos do processo de impeachment inconstitucional e ilegítimo consumado em agosto de 2016 ainda se farão sentir por muito tempo. As medidas propostas pelo governo federal afetam diretamente o conjunto de princípios e direitos construído pelo texto constitucional de 1988. Os movimentos sociais e entidades sindicais que possuem um vínculo histórico com as lutas e conquistas obtidas no processo constituinte de 1987-1988 encontram-se dispersos e fragmentados, com pouca capacidade de mobilização.
Diante desse quadro, o que se pode esperar do futuro da Constituição?
As constituições possuem estruturas temporais complexas. Como documento político, uma constituição cristaliza as opções fundamentais adotadas pelas chamadas “gerações favorecidas”, aquelas que possuem a capacidade de elaborar as decisões cruciais de uma determinada comunidade. Em sua função de norma jurídica de tipo superior, uma constituição redefine todo o direito preexistente e estabelece as bases da normatividade que se seguirá.
Contudo, esse “momento privilegiado”, ou seja, essa enorme abertura para deliberação sobre o futuro que marca a atividade do poder constituinte originário, não deve ter sua importância supervalorizada. A principal qualidade de uma constituição é sua capacidade de durar: a possibilidade de ter uma vigência que sobreviva à geração que a criou.
Para que isso ocorra, é necessário, talvez paradoxalmente, que a constituição não seja a mesma ao longo do tempo. É fundamental que ela se transforme e que seja passível de constante atualização. Mantendo seus compromissos originários, suas normas (aqui compreendidas numa dimensão interpretativa) precisam ser ativadas em novos contextos, transformadas pela realidade, moldadas por novas demandas e reivindicações. A chave, portanto, para o êxito de uma constituição é a sua plasticidade, o que significa dizer que ela deve modificar-se constantemente, conservando, neste movimento de mudança, seu conjunto de princípios estruturantes.
No caso do Brasil, percebe-se que as aspirações da sociedade civil que se mobilizou em 1987-1988 para o processo constituinte permanecem válidas. A sociedade daquela época, impulsionada pela pluralidade de sujeitos coletivos que lutaram contra a ditadura durante todo o regime, foi a responsável pela elaboração de um texto constitucional avançado e comprometido com os direitos fundamentais. A Assembleia Constituinte de 1987-1988, que tinha um perfil conservador, com muitos constituintes ligados ao regime militar, foi o veículo das reivindicações sociais.
Evidentemente, há na Constituição muitos elementos de continuidade em relação à ordem jurídica autoritária. Basta pensar na estruturação das polícias e na organização da segurança pública. Mesmo assim, numa perspectiva comparativa em relação ao regime inaugurado em 1964, fica claro que o texto de 1988 representa uma ruptura com a ordem constitucional anterior. Como exemplos disso, estão o compromisso do Estado brasileiro com os direitos humanos (art. 4º, II), o respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a previsão da tortura como crime inafiançável e insuscetível de graça e anistia (art. 5º, XLIII), o reconhecimento de que o regime militar praticou atos de exceção contra os cidadãos brasileiros (art. 8º do ADCT) e, principalmente, a opção em constituir-se como Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput).
Esses exemplos são úteis para demonstrar que as principais bandeiras dos amplos setores sociais que lutaram pela redemocratização eram a liberdade e a igualdade. Quem poderia afirmar que a sociedade brasileira não anseia, hoje, por essas mesmas causas? Qual discurso político sobreviveria, no Brasil de hoje, sem incluir essas demandas?
Exatamente por isso, é cedo, demasiadamente cedo, para decretar o fim da ordem constitucional inaugurada em 5 de outubro de 1988. As lutas políticas de hoje continuam a ser pautadas pela Constituição. Devemos estar atentos, nessas lutas, às práticas constituintes e desconstituintes que se manifestam nas dimensões políticas e sociais do Brasil contemporâneo.
Uma constituição democrática se reescreve a todo momento. Essa reescritura se manifesta por meios de práticas constituintes, ou seja, por atos, discursos, movimentos e gestos de aprofundamento da democracia existente. O Brasil tem frutíferos exemplos dessas práticas. As manifestações da sociedade voltadas à melhoria da educação, por exemplo, são típicos casos de práticas constituintes. Assim deve ser interpretada a resistência de estudantes secundaristas de São Paulo que se opuseram a uma reforma que precarizava o acesso à educação. Algumas práticas constituintes atingem uma tal repercussão na sociedade que terminam por ser reconhecidas por órgãos do Estado. Os movimentos em prol da liberdade de opção sexual e de combate às desigualdades produzidas pelo racismo foram responsáveis pela geração de vários direitos: casamento homossexual, uso de nome social em espaços públicos, políticas de ação afirmativa, cotas para negros e indígenas.
Nenhuma sociedade, contudo, está imune ao efeito de práticas desconstituintes. No Brasil isso é ainda mais visível, considerando que alguns setores da sociedade – aqueles mais identificados com o regime anterior – nunca aceitaram completamente o resultado do processo constituinte de 1987-1988. Essas forças, que não são insignificantes, estão sempre se articulando para desmontar o arcabouço normativo construído em 1988. E muitas delas estão representadas no Estado e nos partidos políticos. Como dito em artigo anteriormente veiculado no Jota (http://jota.uol.com.br/democracia-e-constituicao-um-golpe-desconstituinte), todo o processo de impeachment (iniciado em dezembro de 2015 e encerrado em agosto de 2016) pode ser compreendido como um golpe desconstituinte: por detrás do afastamento ilegítimo, sem crime de responsabilidade, de uma Presidente da República eleita diretamente, reside uma resistência à Constituição de 1988, cujos movimentos já vinham sendo percebidos desde a década de 1990, quando começaram a surgir tentativas de modificar os processos de alteração das normas constitucionais. Além disso, a apresentação, pelo Governo, da PEC 241/2016, que congela os investimentos públicos e impõe um regime de corte de despesas pelos 20 anos subsequentes à sua aprovação, retirando o direito da próxima geração de dispor sobre política econômica, é uma prática desconstituinte (http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2088351).
O futuro da Constituição de 1988 será escrito no confronto entre práticas constituintes e desconstituintes, nas arenas públicas e privadas de discussão e deliberação e nos processos eleitorais. É impossível antever o resultado dessas disputas. Mas é possível afirmar que a Constituição de 1988 continuará a ser a referência fundamental para setores da sociedade que persistirem lutando por liberdade e igualdade. Nessa perspectiva, muitos outros aniversários da Constituição poderão ser celebrados."
FONTE: Texto de autoria de Cristiano Paixão, publicado em "Jota", online, aos 5 de outubro de 2016. Disponível em: <http://jota.uol.com.br/28-anos-esta-noite-o-futuro-da-constituicao-de-1988>.
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