No caso da operação Lava Jato, a sequência de eventos demonstra, até agora, uma Justiça pouco hábil para dar conta do desafio da luta contra a corrupção.
Em texto no qual reflete sobre os desafios democráticos da justiça no limiar do século XXI, Boaventura de Sousa Santos já antevia que os Tribunais teriam de enfrentar vários dilemas na medida em que começassem a atuar em casos de corrupção.
Por um lado, argumentava Santos, este novo tipo de atuação ajudaria a ampliar a legitimidade dos Tribunais nas sociedades.
Por outro lado, ressalvava o sociólogo, este tipo de atuação traria riscos de politização (e, portanto, descrédito) da Justiça, em especial porque suscita casos em que “parte da classe política, não podendo resolver a luta pelo poder pelos mecanismos habituais de distribuição dos recursos do sistema político, transfere para os tribunais os seus conflitos internos através de denúncias cruzadas, quase sempre através da comunicação social, esperando que a exposição judicial do adversário, qualquer que seja o desenlace, o enfraqueça ou mesmo o liquide politicamente”.
As advertências de Santos ganham especial relevo no Brasil dos fins de 2014, quando, em meio às mais acirradas eleições presidenciais desde a redemocratização, o eleitorado se vê às voltas com vazamentos seletivos de textos e áudios coligidos no âmbito de medidas judiciais ou administrativas decorrentes da operação Lava Jato, a qual culminou com a prisão e a delação premiada do ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa.
Aqui, como no texto de Santos, o dilema está em se colocar como um Poder que ajuda a esclarecer autores e beneficiários de desvios, servindo, neste caso, como agente de promoção da democracia; ou como Poder que ajuda a instrumentalizar a fragilização de candidaturas, subvertendo a livre formação de opinião do eleitorado, servindo, neste caso, como agente de negação da democracia e, no limite, da viabilização de pretensões golpistas.
No caso da operação Lava Jato, a sequência de eventos demonstra, até agora, uma Justiça pouco hábil para dar conta deste desafio.
Primeiro – e pouco antes do primeiro turno das eleições –, houve divulgação, por revista de grande circulação, de informações supostamente obtidas do depoimento de Costa no âmbito de sua delação premiada.
A delação, a rigor, deveria permanecer sob sigilo absoluto, tendo inclusive sido criptografada para envio ao STF e obtenção de homologação. Diante da inusitada divulgação, políticos e partidos pediram acesso à íntegra depoimento.
O pedido, como se sabe, foi negado em diversas instâncias e oportunidades, sob o argumento de que o material é protegido por sigilo.
Mas enquanto adotava essa posição, a Justiça não repudiava o que havia sido divulgado pela revista (nem mesmo para defender a segurança de seus procedimentos de sigilo); tampouco abria qualquer procedimento interno para investigar as origens do vazamento.
Depois – e logo no início da campanha do segundo turno –, houve divulgação dos áudios dos depoimentos de Costa e do doleiro Alberto Youssef, em ação penal conexa com a delação.
Desta vez, como ganhou destaque, o Juiz da causa afirmou não ver problema na circulação, que considerou um “consectário normal do interesse público e do princípio da publicidade dos atos processuais”, especialmente em um processo que “não corre sob segredo de justiça”.
No entanto, os áudios não foram disponibilizados na íntegra e de maneira oficial pelo Tribunal, e o eleitor permanece tendo que formar sua opinião sobre a cronologia, a natureza e a organização social da corrupção na estatal a partir dos diversos fragmentos que a grande mídia, mais uma vez seletivamente, resolve disseminar.
Se houver, como se diz que há, referências a origens mais remotas do esquema, alcançando inclusive governos do PSDB, isso não é algo que o eleitor será capaz de saber. E uma coisa é contar a história de um esquema ocorrido no governo Dilma. A outra é contar a história de um esquema de décadas que foi descoberto e estancado exatamente no governo Dilma.
Afirmar que a delação é sigilosa, mas calar-se diante de reportagem que se diz baseada na delação, é permitir que se crie ampla e fundada suspeita sobre a consistência de seus procedimentos.
Por que não emitir nota negando o teor de reportagens quando extraídas, supostamente, de delação protegida por sigilo?
Por que não apurar se houve ou não vazamento, frente à divulgação pela revista?
Manter a delação sigilosa, mas liberar o acesso aos áudios de processo crime derivado da delação, é permitir que os cidadãos (assim como os sujeitos envolvidos) conheçam as descrições de condutas tidas como criminosas, ao mesmo tempo em que se lhes é negado o acesso ao quadro geral em que tais descrições estão sendo deduzidas.
Por que não decretar, como alternativa, sigilo em todos os procedimentos correlatos à delação – ou ao menos suspendê-los até que todas as questões relacionadas à delação estejam resolvidas?
Dizer que os depoimentos do processo crime derivado da delação são “públicos”, mas permitir que sejam divulgados de maneira fragmentada, pela imprensa, é usar o princípio da “publicidade” para render homenagem à opacidade.
Se é para ir por aí, por que não colocar a íntegra dos áudios disponível na página do Tribunal?
A atomização das decisões e a ausência de qualquer política judiciária a guiar suas implementações, enfim, indicam faltar o senso de responsabilidade de que, em momentos e casos difíceis como o atual, devem dispor Juízes e Promotores.
Seus danos, por sua vez, tampouco recairão apenas sobre o processo eleitoral ou a candidatura de Dilma. Se elevar atos que depois se descubra inconsistentes à condição de diferenciais para o resultado de pleito tão significativo na história recente do Brasil, a Justiça está correndo o risco de contribuir para sua própria deslegitimação.
Querem os seus integrantes, em quem Tocqueville já enxergou a aristocracia natural da república, seguir adiante?
(*) Graduado (USP ‘02) e Mestre (UnB ‘07) em Direito; PhD em Direito, Política e Sociedade (Northeastern University, EUA, ‘13) . Integra o coletivo "Diálogos Lyrianos".
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