César Augusto Baldi (**)
Tem se tornado comum divulgar, em redes sociais, uma afirmação de Morgan Freeman, de que só seria necessário um dia da consciência humana...
Tem
se tornado comum divulgar, em redes sociais, afirmação, que teria sido
dada por Morgan Freeman, de que não é necessário um dia da consciência
branca, negra, amarela, parda, etc., mas sim uma dia da consciência
humana. Seguindo um pouco por essa linha, outros sugerem que a escolha
de legisladores de fixar essa data comemorativa teria algo de
inconstitucional, pois implicaria estabelecer desigualdade de tratamento
entre cidadãos, privilegiando uns em detrimento de outros.
Para avaliar essas afirmações, penso eu, é preciso considerar ao menos cinco pontos.
Primeiro: elas
próprias escondem um processo intenso de racialização presente na
“descoberta” das Américas e que se mantém mesmo após os processos de
independência e as revoltas anticoloniais. É o que Aníbal Quijano tem
denominado de fim do colonialismo político com a manutenção da
colonialidade do poder.
A emergência da ideia de “Europa” e de “ocidente” é a admissão de “diferenças com outras culturas”, mas “admitidas antes de tudo como desigualdades, no sentido hierárquico”:
percebidas como desigualdades de natureza, pois somente a cultura
europeia é racional e pode conter “sujeitos”, sendo as demais não
racionais. Desta forma, as “outras culturas são diferentes no sentido de ser desiguais, na verdade inferiores, por natureza” e, pois, “só podem ser 'objetos' de conhecimento ou de práticas de dominação”.
De
fato, para ele, desde o começo mesmo da América, “os futuros europeus
associaram o trabalho não pago ou não assalariado com as raças
dominadas, porque eram raças inferiores”, de modo que “a inferioridade
racial dos colonizados implicava que não eram dignos do pagamento de
salário” e “o menor salário das raças inferiores por igual trabalho aos
dos brancos, nos atuais centros capitalistas, não podia ser, tampouco,
explicado à margem da classificação social racista da população do
mundo.” O processo de racialização, portanto, ao contrário de se
extinguir com as revoltas contra as metrópoles ou mesmo com a abolição
da escravatura, manteve-se de forma permanente, ainda que sob novas
formas.
Segundo: a
atual valorização da miscigenação tem operado no sentido de uma
“racialização para inclusão cultural”, como salienta Lilian Gomes, ao
contrário do período inicial da República, em que ela se deu para
“assimilação” – e Gilberto Freyre simboliza, neste aspecto, a manutenção
do espaço público para brancos e heterossexuais, deixando o espaço
privado e da intimidade para não-brancos. É uma lógica que, no entender
de Rita Segato, coautora do primeiro projeto de ações afirmativas para
indígenas e negros em universidade pública, ainda não reconhece que, ao
contrário de uma “expropriação e canibalização de símbolos negros pela
sociedade brasileira em geral”, estamos agora diante de uma “forte
presença africana que invadiu e colonizou o espaço cultural branco em
processo irreversível”.
Terceiro: medidas
inclusivas recentes, como as ações afirmativas nas universidades
públicas, iniciadas a partir da reprovação de aluno negro no mestrado de
antropologia da UNB, não se fizeram, em momento algum, sem grandes
resistências. Não é demais lembrar o longo período de quase dez anos
para que o programa pudesse ser considerado constitucional pelo Supremo
Tribunal Federal. Ironicamente, acabou por ser o mesmo curso de
pós-graduação um dos primeiros a implantar o programa em nível de
seleção de mestrado.
Mas,
em que pese experiências como a do Itamaraty, que criou programas
específicos para estimular o acesso de candidatos negros aos quadros da
diplomacia já em 2002-2003, somente agora, em novembro de 2013, o
Executivo propôs criação de uma cota de 20% para os concursos públicos.
E, por enquanto, nem Legislativo, nem Judiciário o fizeram; e mesmo o
Ministério Público sequer se arvorou em tomar medida similar, na
prática, tanto para concursos de servidores, quanto para Procuradores da
República e promotores.
Quijano e Wallerstein, já em 1992, sustentavam, de forma veemente, que “dada
a hierarquização étnica, um sistema de exames favorece,
inevitavelmente, de maneira desproporcionada, os estratos étnicos
dominantes” e essa vantagem adicional é “o que, no sistema
meritocrático, justifica as atitudes racistas sem necessidade de
verbalizá-las”: “aqueles estratos étnicos que se desempenham mais
pobremente o fazem assim porque são racialmente inferiores” e a
evidência, sendo estatística, passa a ser “científica”. O não
questionamento da forma de acesso aos cargos públicos, nem menos ainda
da própria dinâmica da seleção realizada – como se ela fosse “neutra” –
é, de uma forma ou de outra, a manutenção de um efetivo “racismo
institucional”, que merece ser combatido.
Quarto: desde
a Lei nº 10.639/2003 existe a obrigatoriedade de ensino de história e
cultura afro-brasileira e africana, mas persiste enorme resistência,
para sua implantação, em grande parte na esfera municipal do país. Que
tipo de conteúdo vem sendo veiculado nas novas obras editadas para tais
fins? De que forma vêm sendo tratadas as histórias e as culturas tanto
afro quanto indígenas nos livros didáticos? De que modo isso tem
colaborado (ou não) para o combate ao racismo? Em que sentido os Poderes
constituídos – mas também Ministérios Públicos e Defensorias Públicas –
têm estabelecido a observância dos preceitos legais e do combate às
distintas formas de racismo como diretrizes de sua atuação? Quantos
alunos das disciplinas de Sociologia e Antropologia ouviram falar nos
nomes de Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos, Lélia González e Beatriz
Nascimento? Em que sentido ainda continuam sendo invisibilizadas outras
formas de conhecimento, no exato momento em que, ao se adicionarem
“outros” scholars não-eurocêntricos, não se envolvem, nem se comprometem
com suas conceptualizações e críticas?
Como
salienta Julia Suárez-Krabbe, é necessário questionar o “privilégio
epistêmico” que permite que, nas palavras do caribenho Lewis Gordon, o
“corpo branco seja visto pelos outros sem ser visto como tal”, de forma
que “vivido como ausência ofereça sua perspectiva como presença”. Contra
um racismo epistêmico, há de se desenvolver novas formas
de justiça cognitiva, “o direito de diferentes formas de conhecimento
coexistirem sem serem marginalizadas pelas formas de conhecimento
oficiais, patrocinadas pelo Estado” (Shiv Visnanathan). Trata-se, pois,
mais que isso, de “controle social dos conteúdos ou, também, da
intervenção dos interesses e perspectivas dos usuários do sistema de
ensino sobre o que se ensinará e também sobre como se ensinará” (Rita
Segato).
Quinto: as
manifestações de junho – que, em algumas cidades ainda continuam –
colocaram em evidência, dentre outras reivindicações, a democratização
dos espaços públicos, em especial da cidade.
Nesse
sentido, oficina da Universidade Popular dos Movimentos Sociais
realizada em Brasília, em parceria com o Conselho Nacional do Ministério
Público, reunindo quase quarenta e cinco movimentos sociais no início
do mês de novembro, concluiu sobre a existência de um processo
sistemático de criminalização das manifestações (e, portanto, das
distintas formas de inconformismo, rebeldia e, no limite, de lutas por
direitos humanos), a segregação espacial e racial das grandes obras
tanto para a Copa do Mundo quanto para as Olimpíadas (de que a Aldeia
Maracanã e “Porto Maravilha” são apenas alguns exemplos), a necessidade
de se repensar a desmilitarização das polícias (sendo evidente que os
casos de tortura, hoje em dia, são superiores aos do período
ditatorial), o extermínio da população negra (e, pois, necessidade de
políticas públicas específicas e de atuação no sentido de coibir tal
prática, por parte de Ministérios Públicos e Defensorias) e a
necessidade de pensar a forma sistemática que a atuação de empresas
nacionais brasileiras – em especial dentro do denominado Projeto ProSAVANA, de estímulo ao agronegócio – deve
atingir, diretamente, cinco milhões de africanos, empurrando camponeses
de um sistema de “agricultura itinerante” para um sistema de “produção
por contratos”.
Mas
a oficina tornou evidente, também, que é o momento para afirmação e
reconhecimento das comunidades quilombolas, de defesa da
constitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003 e de luta contra distintas
intolerâncias religiosas praticadas contra os praticantes de religiões
de matriz africana. Daí porque Quijano afirme, categoricamente, que a
única forma que as promessas da modernidade podem ser cumpridas é pela “desracialização total da classificação social das gentes”,
ou seja, não é possível levar, na prática, as referidas promessas “sem a
destruição da colonialidade”. A luta pela justiça cognitiva se
entrelaça, desta forma, com processos de solidariedade transnacionais e
de descolonização.
Estas
são algumas dimensões que têm sido ocultadas neste tipo sistemático de
campanhas em redes sociais. De fato, o dia da consciência negra continua
cada vez mais necessário para questionar os distintos privilégios da
“branquitude” e para recordar que o racismo, da mesma forma que o
colonialismo e o sexismo, está longe de estar erradicado em nossas
sociedades pós-coloniais, mesmo quando elas estabelecem como um de seus
objetivos fundamentais: “promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação” (CF, art. 3, IV).
(*) Este texto foi publicado na Seção Princípios Fundamentais, do Blog Carta Maior. A editoria da Seção está a cargo de Fábio Sá e Silva
(*) Este texto foi publicado na Seção Princípios Fundamentais, do Blog Carta Maior. A editoria da Seção está a cargo de Fábio Sá e Silva
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